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A verbalização do sagrado e as características gerais da literatura

2 A SENSIBILIDADE DO TEXTO SAGRADO

3.3 A verbalização do sagrado e as características gerais da literatura

Uma das formas por que o sagrado se manifesta diz respeito aos livros sagrados. Muitas religiões possuem escritos que são tidos e vistos como uma revelação do divino entregue ao homem. Essa seria, portanto, uma forma de comunicação encontrada em palavras que não advêm de uma mente falível, mas de um ser infinito e desconhecido. Considera-se, na mensagem sagrada, a fala do próprio Deus, que assume um papel norteador para a vida do homem. Seja qual for a religião, o livro que a rege se tornará, diante de seus seguidores, um objeto sagrado que deve ser reverenciado com zelo e temor.

Dentre os diversos livros considerados sagrados, pode-se citar a Bíblia, o

Alcorão, o Bhagavad Gita, o Vedas, entre outros. Esses livros apresentam

características que lhes são próprias e que os diferenciam de uma literatura considerada profana. Como se viu, uma determinada comunidade lhe atribui um valor e o livro passa a desempenhar seu papel como voz divina. Tem-se um novo olhar sobre o objeto.

Silva (2004, p. 98-99), ao falar sobre religiões e textos sagrados, aponta para a existência de características gerais que podem ser encontradas em uma literatura sagrada:

Origem divina. Os textos sagrados, como regra geral, são considerados palavra de Deus, ou dos deuses, revelada aos seres humanos; são reconhecidos como ‘inspirados’. A inspiração verbal é considerada infalível para muitas religiões.

Inviolável, canônica e imutável. Estes livros formam uma classe à parte, distinta da literatura profana; constituem um cânon fechado, ao qual não se pode tirar nem acrescentar nada.

Fundamento permanente das religiões. Estes livros, como palavra da Divindade, tornam-se o fundamento sobre o qual as religiões foram edificadas; são reconhecidos como a fonte de autoridade para as religiões fundamentarem suas verdades, seus dogmas e suas vivências. As escrituras passam a ser a orientação sobre a vontade divina para a vida humana.

A primeira característica apontada pelo autor, origem divina, desponta como um diferencial em relação a qualquer outro texto. A autoria é atribuída a um ser divino que, com perfeição, deixou registrada a sua palavra a fim de que homens e mulheres tivessem acesso a ela. Esse fato traz à tona a idéia de que houve uma inspiração verbal19, advinda do próprio Deus, ou dos deuses. Essa manifestação verbal faz que o homem entenda que, na palavra escrita, encontra-se o padrão de vida que o ser humano deve seguir. Afinal, o que foi dito vem do alto, do lugar que o homem nunca pôde alcançar.

A segunda característica proposta pelo autor remete ao fato de que esses livros são invioláveis, canônicos e imutáveis. Esses aspectos tão somente revelam a natureza sagrada do texto. Como se viu, a realidade de um objeto transmuda, na medida em que ocorre a hierofania. O texto considerado sagrado assume um novo valor, o que implica uma atitude zelosa da parte do receptor em relação ao livro. Não se admite que haja qualquer violação, pois esses textos não podem ser mudados, defraudados ou subordinados a atuações humanas. Deve-se reconhecer sua

19 A questão da inspiração, em relação à Bíblia, objeto de estudo desta pesquisa, foi discutida durante

séculos e remonta à idéia de que “Deus já tinha preparado os autores, de modo soberano e concursivo, para a tarefa instrumental, de maneira que registrassem de boa vontade e espontaneamente a revelação de Deus da forma como ele requeria. Assim, pode-se descrever a Bíblia como totalmente da parte de Deus e totalmente da parte do homem” (ELWELL, 1990, v. 2, p. 335)

autoridade canônica, respeitando-se seus escritos tal como foram registrados, sem tirar nem acrescentar nada às suas palavras.

A terceira característica, que remete à questão de que os livros se tornam fundamentos permanentes na religião, refere-se à posição que esses escritos ocupam. Tornam-se um fundamento em que se baseiam todas as doutrinas. Sua permanência dá-se justamente pela sua aceitabilidade como infalível. O texto torna- se, portanto, um registro da verdade, que deve prosseguir como um instrumento que serve de base para a religião. Dessa forma, toda a teologia e todo o corpo de doutrinas submetem-se ao crivo do livro, que é a palavra divina. Todo dogma que fugir da diretriz dada por esse fundamento permanente é considerado heresia. Todavia, até mesmo para poder-se estudar as doutrinas de uma determinada comunidade religiosa, faz-se necessário delimitar-se um corpo de escrituras dignas de aceitação:

Um primeiro passo para a elaboração das doutrinas é a formulação de um corpo escriturístico que é entendido, afirmado e vivenciado como ‘revelação’, seja na linha de uma religião profética, seja na linha de religião mística. A dimensão desse corpo escriturístico pode variar de uma expressão religiosa para outra. No cristianismo a Bíblia tem essa função. Uma parte dessa Bíblia, isto é, o Antigo Testamento (ou Bíblia hebraica) é o corpo de textos revelados para o Judaísmo. Para o islamismo, o Alcorão (ou Corão) desempenha essa função. Em outras religiões, como o Hinduísmo antigo, os Vedas funcionam como corpo escriturístico. Em tais textos estão as narrativas fundamentais que orientam a vida e a prática de fé numa determinada expressão religiosa (REIMER, 2004, p. 67).

São as próprias comunidades religiosas que selecionam seus livros e lhes atribuem valor. Algumas delas também optam por acrescentar outros livros que expliquem o texto canônico. Contudo, essa literatura complementar não possui a autoridade do texto a que se atribui a voz divina. Os escritos sagrados revelam-se como a forma mais contundente e aceita de verbalização do divino.

As três principais características apresentadas por Silva (2004), por exemplo, trazem grandes implicações sobre a discussão inicial referente à sensibilidade do texto sagrado, tendo em vista que a relevância dos livros sagrados como voz divina revela-se tanto na própria crença de sua natureza divina e canonicidade como em sua conservação como fundamento da religião.

Textos sagrados são livros que regem o comportamento humano e que desencadeiam um valor sentimental por parte daquele que os sacraliza. Por isso, o sagrado é uma marca fundamental que distingue um texto de outros, fazendo que ele seja visto além de sua concretude. Trata-se da palavra divina, e, portanto, quando essa palavra é traduzida, o tradutor traz à realidade os ensinamentos do próprio Deus ou dos próprios deuses.

Pode-se perceber o Transcendente, como voz divina, interagindo com o humano e comunicando-se com ele. O ‘teor’ (Halliday, 1989) do discurso resolve-se nos participantes, cujas posições e papéis ocupados são bem distintos, desde a sua natureza até o conhecimento que cada um tem de si na interação verbal. Se, por um lado, há um ser divino, absoluto e onisciente comunicando-se com o homem, por outro lado verifica-se um ser humano limitado e que vê o Transcendente como um ser desconhecido. Dessa forma, convém refletir sobre que tipo de interação ocorre entre os participantes envolvidos nesse discurso.