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O texto-fonte: um ‘Original’ reconstruído

6 ANÁLISE DO TEXTO SAGRADO

6.1 O texto-fonte: um ‘Original’ reconstruído

Traduzir significa lidar com a relação entre textos: um texto-alvo e um texto- fonte. Em relação à Bíblia, convém salientar que há ainda muitas discussões sobre o que vem a ser o texto-fonte, tendo em vista que o que se tem é produto de cópias do que realmente fora o ‘Original’: “É importante notar que não há nenhum manuscrito

original, ou autógrafo44, nem do Antigo Testamento, nem do Novo”45 (WEGNER,

1999, p, 165, tradução nossa). Qual texto, então, tem servido de base para as traduções? Cabe à crítica textual, como “ciência que procura restabelecer o texto original de um trabalho escrito cujo autógrafo não mais exista” (PAROSCHI, 1993, p. 13), essa tarefa de reconstruir um possível texto original. Até hoje muitas pesquisas têm sido feitas pela crítica textual com base nos diversos manuscritos existentes, de forma que se pode traçar atualmente um histórico sobre a instituição do texto-fonte da Bíblia que tem servido hoje como base para as traduções.

Embora a preocupação desta pesquisa se volte à crítica textual do NT, neste ponto do trabalho, convém fazer uma observação geral do histórico do estabelecimento do texto hebraico usado como fonte, para assim se observarem as divergências quanto ao texto do NT.

Em relação ao Antigo Testamento46, Miller e Huber (2006, p. 116) afirmam que, antes de 70 d.C., os textos da Bíblia hebraica eram algumas vezes modificados, devido a pequenos erros dos escribas ou grandes erros (como duas versões distintas de Jeremias). A partir do segundo século, movidos por uma preocupação de constituir um texto-padrão, os escribas judeus passaram a copiar, com extrema precisão, seus textos. Mas somente no período de 500 d.C. a 1000 d.C. um grupo especial de judeus, chamados massoretas, começou um trabalho de conservação do texto hebraico. Eles eram extremamente cuidadosos com o texto, tratando-o com grande reverência e preocupando-se em não modificar nem sequer uma letra. Com esse cuidado, esse grupo conservou um texto hebraico do AT que

44 Termo técnico que designa o manuscrito original de uma obra.

45 It is important to note that there are no original manuscripts, or autographa, of either the Old

Testamento or the New.

hoje é considerado como oficial, havendo, segundo Geisler e Nix (1997, p. 170), várias razões para acreditar-se que as cópias são boas. Dentre elas estão:

1) as poucas variantes existentes nos manuscritos massoréticos47; 2) a

harmonia quase literal existente entre a maior parte da LXX (Septuaginta) e o Texto massorético hebraico; 3) as regras escrupulosas dos escribas que copiavam os manuscritos; 4) a similaridade de passagens paralelas do Antigo Testamento; 5) a confirmação arqueológica de minúcias históricas do texto; 6) a confirmação fenomenal do texto hebraico advinda das descobertas dos rolos do mar Morto.

Essas evidências promovem uma unidade de pensamento em relação ao texto-fonte do AT, o que facilita a identificação do que teria sido o original. Por isso, atualmente, a edição-padrão do AT usada é a Bíblia hebraica Stuttgartensia, baseada em um texto massorético, o Códice de Leningrado, que data de 1010 d.C., e é considerado a cópia mais antiga e completa da Bíblia hebraica.

Já a história de reconstrução dos textos do NT enfrenta maiores divergências, tendo em vista as circunstâncias em que eles foram produzidos. Ao contrário do AT, o NT apresenta inúmeras cópias – no mínimo mais de 5.000 manuscritos gregos datados do século II e seguintes – em que fica marcada a presença de inúmeras variantes. Estas decorrem de diversos fatores, e dentre eles verificam-se as circunstâncias em que as cópias foram produzidas:

Tendo as cartas apostólicas sido enviadas a uma congregação ou a um indivíduo, ou os evangelhos escritos para satisfazerem às necessidades de um público leitor em particular, os autógrafos do NT estavam separados e espalhados entre as várias comunidades cristãs e, ao ser copiados, não tiveram a oportunidade de receber um tratamento profissional: uma edição oficial que respeitasse as formas precisas do texto. Em sua pobreza e diante da necessidade de

47 Segundo Barrera (1993, p. 318), o texto massorético “é o texto consonântico hebraico que os

massoretas vocalizaram, acentuaram e dotaram de massorá. O termo massorá significa ‘tradição’ e cumpre uma dupla função: conservar o texto em sua integridade e interpretá-lo”.

reproduzir os escritos apostólicos, tanto pela pouca durabilidade do papiro quanto pela rápida expansão do cristianismo, as igrejas muitas vezes tinham de empregar copistas amadores ou até mesmo irmãos bem-intencionados mas de pouca habilidade gráfica. E assim, tão logo os originais começaram a ser reproduzidos, o que deve ter acontecido ainda dentro do período apostólico (veja 1 Cl 4:16; 2 Pe 3:15, 16), as primeiras variantes textuais começaram a surgir e, pela falta de um revisor que checasse o trabalho, passaram a se multiplicar nas cópias seguintes. (PAROSCHI, 1993, p. 16-77)

Pode-se, então, notar que a necessidade de retransmitir a mensagem, associada aos poucos recursos, requer hoje a atividade da crítica textual no que diz respeito à observação das variantes lingüísticas do Novo Testamento. Essas variantes estão subdivididas, segundo Barrera (1996), em mudanças acidentais – como, por exemplo, erro de ditado (eirênen ékhomen “temos paz”; eirênen ékhômen “tenhamos paz” Rm 5:1); confusão de letras ( “tendo recebido”

“tendo escolhido” At 15:40); ditografia (repetição de uma ou várias letras) e mudanças deliberadas, tais como mudanças de ortografia e gramática (correção do que se julgava serem erros gramaticais e ortográficos), esclarecimentos históricos e geográficos (harmonização dos relatos retratados nos evangelhos, padronizando hora, lugar, etc.), mudanças por motivos doutrinais (correções exegéticas esclarecendo passagens de difícil interpretação).

Por essas divergências hoje a crítica textual tem buscado resgatar o original. Há uma longa história traçada ao longo dos anos. Contudo, convém salientar a existência de dois textos que serviram ou têm servido de base para a produção de traduções: o “texto recebido” (textus receptus) e o “texto eclético”.

O textus receptus teve como base para a sua formação várias edições, começando por Desidério Erasmo, de Roterdam, em 1516, 1519 e 1522; depois por Stephanus, famoso editor de Paris, em 1546; depois por Teodoro de Beza em 1565,

1582, 1588 e 1598. E foi consagrado pelos irmãos Boaventura e Abraão Elzevir em 1624, 1633 e 1641:

A edição que se tornou célebre foi a publicada em 1624 pelos irmãos Boaventura e Abraão Elzevir, impressores de Leiden, em formato pequeno e conveniente, cujo texto foi tomado principalmente de Beza, edição pequena de 1565. O prefácio à segunda edição informa que o leitor tem o “texto recebido agora por todos, no qual nós não damos nada corrompido ou mudado”. O Textus Receptus, ou o Texto comumente aceito, texto standard, que era também a denominação das edições de Stephanus, Beza e Elzevir, se estabeleceu como único texto verdadeiro do Novo Testamento e se tornou a base de todas as versões até há muito tempo (BITTENCOURT, 1993, p. 121).

Esse texto tornou-se, portanto, a base, e assumiu durante certo período uma autoridade canônica, sendo respeitado e aceito pela igreja. Contudo, por volta do século XIX, surgiram questionamentos em relação ao textus receptus, tendo em vista que se baseava no manuscrito bizantino48 (de origem mais recente). Com a descoberta de outros manuscritos, passou-se a discutir se de fato o textus receptus seria o texto mais próximo dos autógrafos. Os críticos começaram, portanto, a compilar um novo texto, levando em consideração outros manuscritos e a comparação entre as variantes. Dentre esses estudiosos, destacam-se John Anthony Hort e Brook Foss Westcott, que apresentaram uma notável edição crítica do NT, produto de um trabalho de cerca de 28 anos, denominada The New

Testament in the Original Greek (1881), em dois volumes: o primeiro contém o texto

e o segundo uma introdução e um apêndice explicando os princípios utilizados pelos

48 Trata-se de um dos tipos de texto classificados na atualidade. Segundo Paroschi (1993), os

manuscritos bíblicos do NT subdividem-se em quatro tipos: a) Texto alexandrino – é considerado, atualmente, como o melhor tipo de texto por conservar-se na região de Alexandria em que se conservava uma tradição literária e por possuir poucas mudanças gramaticais e estilísticas, conservando, assim, a idéia de a brevidade ser um identificador do texto original; b) Texto ocidental – apresenta-se com mudanças bem radicais, demonstrando gosto pela paráfrase; c) Texto cesareense – caracteriza-se por uma mescla das formas alexandrinas e ocidentais, sem, contudo, apresentar uma quantidade exacerbada de paráfrases; d) Texto bizantino – é um texto mais recente, provavelmente, resulta de uma revisão de antigos textos feitas por Luciano de Antioquia e demonstra “um esforço no sentido de suavizar qualquer aspereza de linguagem, de polir o estilo, de acrescentar breves interpolações para facilitar a interpretação etc.” (1993, p. 88)

autores. Produziu-se, então, um texto eclético, baseado em uma quantidade reduzida de manuscritos.

Atualmente, como texto eclético, duas edições gregas do Novo Testamento têm servido a tradutores e estudiosos: Novum Testamentum Graece, conhecido como o texto de Nestle-Aland (seus editores), publicado pelo Deutsche Bibelstiftung, já na 27ª edição; e The Greek New Testament, editado por uma comissão composta por eruditos da área (Barbara Aland, Kurt Aland, Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini, e Bruce M. Metzger), publicado pela United Bible Societies (Sociedades Bíblicas Unidas), já na sua 4ª edição.