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A violência no campo e a participação policial

3. A POLÍCIA MILITAR COMO PARTE DO CONFLITO

3.3. A violência no campo e a participação policial

Já se quis diminuir a amplitude do conflito existente no estado do Pará, relacionando sua existência ou não aos casos que efetivamente chegam ao conhecimento do Poder Judiciário.126 Essa análise, que reduz o problema a alguns nichos de violência, identificados pontualmente no Estado e que atestam um “Pará tranquilo”, desconsidera o dia-a-dia de medo e de tensão em que vive um grande número de pessoas no campo paraense.

Treccani demonstra claramente o viés privado que tomou conta da Polícia Militar, principalmente durante as décadas de 1970 e 1980, em que mesmo sem o respaldo de decisões judiciais se verificou diversas investidas dessa força pública contra as famílias de posseiros, em diferentes regiões do Pará. Usando as palavras

125

Ibid., p. 56.

126 PARÁ. SECRETARIA ESPECIAL DE DEFESA SOCIAL. Inventário de registros e denúncias de

mortes relacionadas com posse e exploração da terra no Estado do Pará: 1980-2001. Osmar

de Bertha Becker, desnuda de vez a instrumentalização desvirtuada ocorrida, notadamente nesse período:

As polícias civil e militar não deixam de ser instrumento do Estado a serviço dos detentores do poder e, neste caso específico, dos latifundiários e empresas rurais, dando guarida a um processo de expropriação, expulsão e morte de camponeses. Assim o bloco do poder gera a violência e agrava a situação do campo à medida que permite a elevação do índice de conflitos, ameaças, expulsões, agressões e assassinatos das lideranças dos movimentos camponeses.127

Ainda hoje, há um processo de promiscuidade inaceitável entre a força policial e os fazendeiros interessados em proteger suas propriedades, no sentido de que, por exemplo, as operações de reintegração de posse, muitas vezes ainda são

patrocinadas pelos latifundiários. Transporte, combustível, víveres, alojamento,

todas essas situações que, obviamente, em uma atuação dessa natureza deveriam ser responsabilidade do Estado, ao serem oferecidas pelo fazendeiro, automaticamente criam uma relação de dependência para com ele e geram uma ação totalmente parcial em prejuízo dos posseiros.

Agindo como verdadeira milícia privada, sob o manto protetivo do Estado, com sua legitimidade presumida, aliado ao real abandono que o poder público propiciou a esses agentes, principalmente àqueles que se encontravam em locais de mais difícil acesso, armou-se um panorama que facilitou a transformação de policiais militares em exatamente funcionários de fazendas ou empreendimentos.

Essa realidade pode ser identificada inclusive na atualidade, pois as relações entre grandes proprietários e a polícia, em muitos locais, são bastante íntimas. Diretamente, ou por intermédio de prepostos, os fazendeiros ou empresários rurais controlam todas as forças que podem lhe facilitar o domínio sobre a terra, utilizando, além do poder econômico, a estratégia da imposição do medo:

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Estes prepostos, temidos, conhecidos e até denunciados pelas populações locais. Apesar de fazerem jus à reputação de “matadores”, invariavelmente circulam pelas vilas e localidades dos municípios, sem que suas atividades constituam objeto de investigação formal e sem serem indiciados pelas forças de polícia locais. Estas são, com freqüência, no mínimo coniventes com os criminosos, quando não mantêm com eles relação de franca cumplicidade.128

Exemplificando essa realidade, é possível verificar essa promiscuidade entre Polícia Militar e a empresa que é conhecida por ser a maior grileira do mundo:

No caso célebre da grilagem de milhões de hectares pelo grupo CR Almeida, em Altamira, membros do corpo da Polícia Militar do Estado chegam a figurar na folha de pagamentos da Companhia Incenxil, ligada à CR Almeida. Isso, porém, não constitui uma exceção: policiais militares são remunerados e têm suas operações (deslocamentos, “reintegrações de posse” ilegais) financiadas por comerciante – “donos” de terras na região que têm nesses policiais verdadeiros braços armados.129

Essa atuação, longe dos ideais republicanos, implica em analisar a situação em outra perspectiva, que é a da carência de recursos de manutenção desses agentes, por parte do Poder Público, o que os torna muito mais vulneráveis a essa cooptação. Por exemplo, tal problemática faz recordar um caso que chegou ao conhecimento da Comissão Permanente de Corregedoria do Comando de Policiamento Regional I da PMPA, sediada em Santarém, oeste do Pará.130 Um Capitão, oficial corregedor, se viu em um dilema causado pela necessidade de indiciamento em um Inquérito Policial Militar (IPM) de um Tenente que trabalhava na conhecida localidade de Castelo de Sonhos, pertencente ao Município de Altamira, mas sob forte influência de Novo Progresso, haja vista sua localização na BR-163 (Santarém-Cuiabá). O Tenente estava sendo acusado de corrupção e extorsão, na medida em que cobrava para realizar determinados tipos de policiamento, como por exemplo, reuniões públicas, no entorno de festas, quermesses, ou quaisquer outros

128

INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (IPAM). A grilagem de terras públicas

na Amazônia brasileira. Brasília: MMA, 2006 (Série Estudos, 8), p. 27.

129 Ibid., pp. 27 e 28. 130

eventos que contassem com aglomeração popular. O curioso é que a denúncia chegou à Corregedoria em função do desajuste, ou do descontentamento com o

preço cobrado em determinada ocasião, a qual, segundo o contratante seria justo

pagar em torno de R$ 300,00 (trezentos reais), todavia foi cobrado o valor de R$ 500,00 (quinhentos reais). A indignação não foi pela cobrança, mas pelo preço

abusivo. Mas qual o dilema mencionado? Na qualificação e interrogatório do

acusado, segundo o Capitão, ele não negou a prática, mas ao contrário, estava até aborrecido com um procedimento investigativo que não reconhecia o esforço dele e de sua equipe em realizar o policiamento na região. Declarou o Tenente que aquelas cobranças eram necessárias, na medida em que era a partir delas que ele administrava as necessidades mínimas de sobrevivência do Destacamento131, como a compra de gêneros alimentícios, o combustível para a viatura, etc. Nesse caso, não há dúvida, não se justificando a falta do policial militar em questão, que o Estado, na pessoa de quem não faz chegar os insumos que gerem as condições mínimas de subsistência de um efetivo afastado do centro, também é responsável pela irregularidade.

Essa prática comum por muito tempo também restou comprovada em um dos episódios mais tristes da história do Pará, principalmente para sua população, mas também para a Polícia Militar, como instituição, que foi o Massacre de Eldorado

dos Carajás, onde parte do transporte utilizado para conduzir a tropa até o local foi

131

Destacamento é denominação para um efetivo com aquartelamento próprio, normalmente sob a forma de um grupo ou pelotão, mas que pode corresponder em alguns casos a uma Companhia (reunião de pelotões), o qual permanece distante da sede do Quartel principal, e detém responsabilidade pelo policiamento de determinada área. Uma reunião de Companhias corresponde a um Batalhão.

providenciado pela então denominada Companhia Vale do Rio Doce, hoje somente

Vale. Isso confirmou uma relação antiga da empresa com a Corporação.132

Para não deixar dúvidas sobre essa lógica, a polícia sob a ótica dos fazendeiros é demonstrada nessa passagem trazida por Luciana Costa, citada por Ataíde Júnior:

Para os fazendeiros, a polícia é “cara” e necessária. A polícia é responsável pelo cumprimento de um mandado de reintegração de posse, mas apenas a ordem judicial, segundo os fazendeiros, não é suficiente. A ação policial tem que ser bancada pelo fazendeiro, pois a própria polícia não tem recursos financeiros para garantir transporte e alimentação para os policiais durante o despejo. [...] O fato do fazendeiro arcar com as despesas o tornava uma espécie de “comandante indireto” da operação, que podia instruir os policiais para que os posseiros não retornassem à área, para que suas casas fossem queimadas e seus pertences destruídos, além deles serem humilhados. Algumas vezes, para garantir que isso ocorresse, empregados dos fazendeiros acompanhavam os despejos nas fazendas Riachão, Montes Claros e Pintada, vestidos de policiais.133

Com o inventário organizado por Ronaldo Barata, tomando por base somente o ano de 1989, já sob a vigência do novo ordenamento constitucional, é possível verificar que dos quarenta e quatro (44) casos de violência relatados, dezenove (19) tiveram participação policial, seja militar ou civil. Então, em pouco mais de 43% dos episódios, as organizações que tinham o condão de efetuar proteção agiram como algozes.134

Com todos esses relatos, não é difícil verificar por que a relação entre as comunidades que vivem no espaço amazônico e as forças policiais é de extrema desconfiança.

132 Depoimento do gerente geral da Vale na região informou: “A Companhia costuma fornecer ônibus, alimentos e cobertura de despesas a policiais participantes de operações na região”. Cf. TRECCANI, G. D. Op. cit., p. 270.

133

ATAÍDE JÚNIOR, Wilson Rodrigues. Os direitos humanos e a questão agrária no Brasil: a situação do sudeste do Pará. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006, p. 258.

134 BARATA, Ronaldo. Inventário da Violência, Crime e impunidade no campo paraense (1980-