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4. A POLÍCIA MILITAR E A CULTURA DE MEDIAÇÃO

4.3. As lições para a mediação

A modificação dos procedimentos de resolução de controvérsias através da força passa necessariamente por um sistema jurídico forte, centrado nas aspirações de toda a comunidade, como a preservação da vida, da dignidade, da igualdade e da solidariedade. Direitos como esses devem ser compulsoriamente garantidos.

E é justamente esta a pergunta que não sai da cabeça do homem há séculos: como desenvolver sistemas ou aparatos de contenção pública que consigam, ao mesmo tempo, coibir lesões ou ameaças à ordem e à segurança jurídica emanada do Poder Público sem ferir frontalmente direitos fundamentais. Para alcançar essa meta, é mister que se faça primeiro uma análise do que se quer combater.

Essa capacidade de se reconhecer no outro, deveria gerar no homem, automaticamente, a repulsa a uma hierarquia centrada no desrespeito, uma aversão ao ódio, à exploração e à violência de qualquer sorte. Se levarmos em consideração que essa hierarquia citada, quase sempre, teve como alicerce algo transcendental, é de se louvar o caminho rumo a laicização dessas questões, porquanto ensejadoras de uma concretização efetiva do respeito aos direitos humanos fundamentais, mormente afastando-se da instrumentalização do ser humano, defendida com muita veemência no medievo, notadamente por São Tomás de Aquino187, e aproximando- se de uma concepção mais racional.

Diante de tudo isso, o policial, seja civil ou militar, conforme a dicotomia estabelecida no ordenamento brasileiro, tem o dever institucional e moral de fundar

187 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, Moral e Religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

sua conduta no sentido de não somente cumprir a lei secamente, mas além disso, procurar ser instrumento de diminuição de desigualdades sociais, consoante isso ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como visto, além de contribuir para a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária188. Nesse sentido, as palavras do Coronel paulista Carlos Alberto de Camargo:

O conceito não se resume apenas a estratégias, táticas ou técnicas de polícia. Deve alcançar uma redefinição da postura e da forma de entender o serviço policial, na qual o agente público encarregado de fazer o policiamento não se limite ao cumprimento das suas destinações legais, mas exerça-as com vocação para promover a dignidade humana, indo além do singular respeito aos direitos das pessoas e alcançando o patamar da atuação deontológica, na completa acepção do termo.189

Entretanto, o mesmo autor constata tristemente a dificuldade de transformar um círculo vicioso existente em um círculo virtuoso possível e necessário:

Nós não afirmaríamos que estamos vendo, em realidade, a previsão de Thomas Hobbes de que “a condição do homem (...) é a da guerra de todos contra todos”. Mas, seguramente, a equação que está armada hoje nas metrópoles brasileiras é a seguinte: as pessoas desconfiam umas das outras, todos desconfiam da polícia e a polícia desconfia de todos. Esse é o circulo vicioso a romper, o desafio a ser enfrentado em matéria de segurança pública.190

A chave para essa transformação paradigmática encontra-se na reunião de três grandes linhas de ação, as quais são indissociáveis no trabalho policial, em virtude de que se determinarem sozinhas os desempenhos dos agentes, fatalmente gerarão sentimentos de injustiça, desconforto, descrédito e revolta da comunidade contra a atividade policial. Essas três faces são a atuação dentro da legalidade, o desempenho técnico-profissional, e o comportamento ético durante os atendimentos. O princípio da legalidade é muito importante para as atividades públicas, sendo um de seus nortes. Encontra-se definido no Art. 5º da Constituição federal, no

188

Art. 3º da Constituição Federal de 1988.

189 CAMARGO, Carlos Alberto de. Dignidade humana e prevenção. In Curso Nacional de Polícia

Comunitária. São Paulo, 2001 (mimeografado).

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inciso II, cuja determinação é no sentido de que ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer, qualquer coisa, senão em virtude de lei. Está também expressamente disposto no Art. 37 da Carta Magna como um dos princípios que regem a Administração Pública, ao lado da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Não se espera, portanto, do policial que sua atuação ultrapasse os limites impostos legalmente, posto que esse parâmetro, supõe-se, define o caminho escolhido pela sociedade por intermédio de seus representantes. O policial é um aplicador da lei. Mas só isso não é suficiente.

Esse cumprimento não pode realizar-se de qualquer forma, sob pena mesmo de ir contra um dos princípios constitucionais que mencionamos, que é o da eficiência. Esta, entendida como a melhor maneira de alcançar determinado objetivo, somente pode materializar-se na atividade policial se esta for verdadeiramente

profissional. A técnica é exigência primordial nos tempos atuais diante da carência

da população de serviços que possam ser realizados com profissionalismo, isto é, que denotem claramente que aquela pessoa encarregada de determinada tarefa tem competência técnica para fazê-lo. Para Bayley, o profissionalismo é uma das características mais complexas de serem analisadas:

A profissionalização conota uma atenção explícita dada à conquista da qualidade no desempenho. Indicadores mínimos de uma polícia profissional são o recrutamento de acordo com padrões específicos, remuneração alta o suficiente para criar uma carreira, treinamento formal e supervisão sistemática por oficiais superiores.191

Nessa esteira, se tratamos de uma profissão policial, não há espaço para atuação desregrada, despadronizada, a ponto de que seja determinada pelo bel prazer do indivíduo fardado, ao invés de se encontrar escudada em uma forte estrutura doutrinária, que determine os procedimentos, enfatizando que essa

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doutrina deve estar centrada na promoção e proteção de direitos e garantias fundamentais.

A atuação ética, ao final, implica na consecução de valores que vão ajudar na escolha correta diante das situações que se apresentam, em um primeiro momento, como conflituosas. Não basta somente conhecer a legislação amplamente, de forma a aplicá-la na prática, mas também é imperioso que a lei seja aplicada no sentido de alcançar justiça social, sendo que

ainda que as compilações de leis e constituições possam prestar serviços às pessoas capazes de estudá-las, de distinguir o que é bom do que é mau e a que circunstâncias melhor se adapta cada lei, as pessoas que examinam essas compilações sem a ajuda da experiência não terão o reto discernimento (a não ser acidentalmente), não obstante talvez possam tornar-se mais entendidas em relação a tais assuntos.192

A técnica por si só também não tem o condão de bem encaminhar a atividade, em virtude de que sem base valorativa a lhe dar o rumo, há sério risco dela ser utilizada para fins que não os esperados em uma sociedade republicana. Destarte, de nada adianta o respeito à legalidade e uma capacitação técnico- profissional adequada sem o alicerce ético.

Se no aspecto urbano essas relações são complicadas, no meio rural esses desdobramentos assumem contornos até mesmo dramáticos, pois se dão longe dos olhos da maioria da sociedade, que é reconhecidamente mais citadina que campestre, distante do aparato público que não alcança os mais variados rincões amazônicos, deixando quem mais carece de proteção a sua própria sorte.

A Polícia Militar, a cada dia, tem sido acionada para a resolução de uma gama cada vez mais variada de problemas sociais. A ordem pública, estabelecida em diversos diplomas legais como o escopo primordial da força de segurança em epígrafe, por ser um conceito extremamente abrangente e indeterminado, acaba por

192 ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 238 (Coleção obra-prima de cada autor).

conferir à Polícia Militar um raio de ação muito maior do que qualquer outro órgão da Administração direta ou indireta.

O que é indispensável saber é se essa amplitude de atuação, que gerou a oportunidade de enfrentamentos de todos os tipos tratados, para a Polícia Militar, criou também o fundamento para a edificação de uma mediação mais qualificada daqui para frente.

5 A POLÍCIA MILITAR CONSEGUE APRENDER COM OS