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A violência sexual no Brasil e o papel simbólico da Lei Penal

Em que pese à preocupação com as situações de violência sexual e as recorrentes mudanças legislativas apresentadas, no ano de 2014, as polícias brasileiras notificaram 47.646 estupros no Brasil, ante 51.090 em 2013. Sinala-se que o recuo de 7,5% na taxa média nacional de estupros em 2014, deve ser visto com cautela, isso porque, segundo o Anuário Nacional de Segurança Pública (2015, p. 116),

[...] estudos de diferentes países demonstram que o crime de estupro é aquele que apresenta a maior subnotificação e, como consequência, é muito difícil afirmar que há uma redução do fenômeno no Brasil. Para se ter uma ideia do que isso significa, o

U.S. Department of Justice produziu estudo que verificou que, em 2010, apenas 35%

das vítimas nos EUA reportaram o crime à polícia. Já o Instituto de Criminologia Australiano divulgou no "The Women’s Safety Survey" que 15% das vítimas de violência sexual australianas reportaram o incidente à polícia no período de 12 meses anterior à pesquisa.

A Pesquisa Nacional de Vitimização (2013) verificou que, no Brasil, somente 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia. A mais recente pesquisa do gênero, “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, produzida pelo IPEA, fala em 10% de casos notificados e estima que, no mínimo, 527 mil pessoas sejam estupradas por ano no país.

Cerqueira e Coelho (2014, p. 06), relatam que

[...] em 2013, o Ipea levou a campo um questionário sobre vitimização, no âmbito do Sistema de Indicadores de Percepção Social9 (SIPS), que continha algumas questões sobre violência sexual. A partir das respostas, estimou-se que a cada ano no Brasil 0,26% da população sofre violência sexual, o que indica que haja anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, dos quais 10% são reportados à polícia.

Tais dados evidenciam que, em que pese as alterações promovidas pela Lei n.º 12.015/2009, que buscou não apenas adequar as normas penais aos valores da Constituição Federal, mas também aumentar o rigor punitivo em relação aos crimes sexuais, essa forma de violência ainda é muito presente na sociedade brasileira. Trata-se de uma violência ainda invisível e naturalizada, e que, em larga medida, é justificada pelo suposto “comportamento inadequado” das vítimas.

Tais fatores reacendem a discussão sobre a capacidade de, por meio do aparato repressivo do Estado assegurar-se efetivamente a proteção dos bens jurídicos fundamentais à pessoa humana, em especial a sua liberdade e dignidade sexual, o que coloca em discussão a dimensão meramente simbólica do Direito Penal, especialmente porque “[...] em que pese o aumento do rigor punitivo e das normas protetivas [...], percebe-se que esta forma de violência não recua” (HAUSER e WEILER, 2015, p. 08).

Analisando as funções da pena e do Direito Penal, Alessandro Baratta (apud HAUSER; WEILER, 2015, p. 08), destaca que a partir de 1980, “as funções instrumentais clássicas de prevenção à violência e de proteção de bens jurídicos perdem espaço no âmbito dos discursos legitimadores da pena e também na práxis dos sistemas punitivos”, cedendo

fundamental do D. Penal não é tutelar bens jurídicos e reduzir a violência na sociedade, mas apenas assegurar a vigência da norma e a estabilidade do sistema normativo, mediante a imposição da sanção penal aos fatos criminais visíveis.

Para Baratta (apud HAUSER e WEILER, 2015, p. 08 e 09), a partir desse contexto,

[...] segundo esta teoria, a função da pena não se dirige nem aos infratores atuais nem aos potenciais. Ela se dirige sobretudo aos cidadãos fiéis a lei, aos que supostamente manifestam uma tendência “espontânea” a respeitá-la. Em relação a estes, a previsão de aplicação de penas não tem a função de prevenir delitos (...), senão a de reforçar a validade das normas (...): isto significa também restabelecer a “confiança institucional” no ordenamento, quebrada pela perspectiva do desvio (...). A teoria da prevenção geral positiva é, portanto, uma teoria da função simbólica do direito penal, no sentido de que as funções indicadas se relacionam diretamente com a expressão dos valores assumidos pelo ordenamento e com a afirmação da validade das normas, confirmação esta simbólica e não empírica, por ser independente da quantidade de infrações e de sua redução.

Para Ester Eliana Hauser e Ana Luísa Dessoy Weiler (2015, p. 09),

[...] em nível teórico, a perspectiva simbólica da pena não a concebe como um sistema de produção de segurança real de bens jurídicos, mas somente como instrumento de resposta simbólica as exigências de pena, de segurança e de estabilidade social e normativa por parte do público e da política. Paralelamente, no âmbito da realidade política criminal, em que pese se reafirmar a função de defesa de bens jurídicos, verifica-se que as funções simbólicas tendem a prevalecer sobre as funções instrumentais.

Isso porque, segundo Baratta (apud HAUSER e WEILER, 2015, p. 09),

[...] o déficit da tutela real dos bens jurídicos é compensado pela criação, junto ao público, de uma ilusão de segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e nas instituições que tem uma base real cada vez mais fragilizada. De fato, as normas continuam sendo violadas; e a cifra obscura das infrações permanece altíssima, enquanto as agências de controle penal continuam a medir-se com tarefas instrumentais de realização impossível.

Sanchez (apud MELIA, 2005, P. 96) aduz que o papel exclusivamente simbólico do D. Penal tem se produzido a “partir do mero ato de produção e promulgação de normas penais destinadas a produzir, frente à opinião pública, a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido”. Ao afirmar que o fenômeno de nossos tempos é a infração penal, que se manifesta mediante muitas neocriminações e poucas descriminalizações, Meliá (2005, p. 95) considera que a norma penal deixou de ser um “meio para constituir a identidade da sociedade

- ou seja, para marcar os padrões mínimos de convivência – ou para resolver um determinado problema social em termos de prevenção (instrumental) do delito” para transformar-se, em si, com o mero ato de sua aprovação e publicação a solução aparente do problema.

Hauser e Weiler (2015, p. 11), ainda sobre o Direito Penal Simbólico, aduzem que,

[...] é necessário reconhecer, todavia, que os fenômenos de natureza simbólica integram, necessariamente, as entranhas do Direito Penal. Ao criminalizar ou ampliar o rigor das penas para determinados comportamentos pretende-se, sem dúvida, reforçar o valor/importância dos bens jurídicos protegidos, elevando-os a condição de bens jurídico-penais. Por meio das normas penais são emitidas mensagens à sociedade, com o objetivo de motivar seus membros a respeitar os valores tutelados e fortalecer a confiança nas instituições.

Para Andrade (2005, p. 78), referir-se ao sistema de justiça criminal como simbólico implica nos “discursos (as representações e as imagens) da Ciências criminais que, conjuntamente com o discurso da lei, tecem o fio de sua (auto)legitimação oficial, pois é do processo de reprodução ideológica do que aqui se trata”. Com efeito, a Lei e o saber juntam- se para legitimar um discurso que justifica e legitima a existência de determinada Lei Penal, “constituindo do senso comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social, com ênfase, contemporaneamente, para a mídia”.

Com isso, tem-se as funções ou promessas legitimadoras do sistema de justiça criminal, quais sejam, segundo Andrade (3005, p.78),

[...] proteção de bens jurídicos que interessam igualmente a todos os cidadãos (o bem) por intermédio do combate eficaz à criminalidade (o mal), a ser instrumentalizado por meio das funções da pena: uma combinatória de retribuição ou castigo com prevenção geral (intimidação erga omnes pela ameaça da pena cominada em abstrato na lei penal) e especial (reabilitação in persona mediante execução penal) a ser aplicada dentro dos mais rigorosos princípios penais e processuais penais liberais (legalidade, igualdade jurídica, devido processo etc.)

O papel simbólico do Direito Penal se apresenta por meio de uma ideologia sedutora, inclusive para as mulheres, como se cada Lei que criminaliza novas condutas ou majora a pena dos crimes já tipificados, sentença publicitada na mídia ou cumprimento de pena diminuísse a violência, quando na realidade, ocorre o oposto.

No Brasil, com a reforma do Código Penal em curso, vislumbra-se um processo de via dupla:

[...] ao mesmo tempo em que se discute a descriminação e despenalização de condutas tipificadas como crimes (adultério, sedução por inexperiência, casa de prostituição, aborto, etc.) se discute a criminalização de condutas até então não criminalizadas (como violência doméstica e assédio sexual) agravamento de penas (como no caso de assassinato de mulheres) e, enfim, a redefinição de crimes sexuais como o estupro, objetivando a sua neutralização sexista. E segmentos muito representativos do movimento feminista no Brasil e da população em geral tem apoiado esta dupla via, e em especial a criminalização do assédio sexual, apontando tal como um progresso ou avanço do movimento feminista. (ANDRADE, 1996, p. 89).

Por fim, questiona-se se o sistema de justiça penal, face suas características simbólicas, é o instrumento mais eficaz para a desconstrução da violência sexual, no momento em que se utiliza da criminalização de condutas, e tratamento desigual - à vítima e ao criminoso -, em respeito aos interesses das classes de poder, o que será tratado com mais rigor no próximo capítulo.

2 CULTURA DO ESTUPRO E OS LIMITES E POSSIBILIDADES DO SISTEMA