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Cultura do estupro, violência sexual e sistema jurídico penal

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Academic year: 2021

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ANA LUÍSA DESSOY WEILER

CULTURA DO ESTUPRO, VIOLÊNCIA SEXUAL E SISTEMA JURÍDICO PENAL

Ijuí (RS) 2017

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ANA LUÍSA DESSOY WEILER

CULTURA DO ESTUPRO, VIOLÊNCIA SEXUAL E SISTEMA JURÍDICO PENAL

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Monografia.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais

Orientadora: Ms. Ester Eliana Hauser

Ijuí (RS) 2017

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Dedico este trabalho à todas mulheres e crianças que são violentadas no Brasil e no Mundo.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço Deus, pelo Seu cuidado, força e por me mostrar, todos os dias, que para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento (Ecle, 3:01), inclusive esse trabalho que vem sendo pensando desde 2013, e agora se materializa, marcando o final de mais uma etapa vencida.

Agradeço à minha orientadora e amiga, Professora Ester Eliana Hauser, que, desde o momento em que surgiu a ideia da temática, me apoiou e aceitou caminhar comigo. Obrigada por seus conselhos, apoio e por ser um exemplo para mim.

Agradeço aos Professores do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ, dos quais fui aluna durante os 05 anos da graduação, com especial atenção à Professora Eloisa Nair de Andrade Argerich que me motivou a ingressar no curso me presenteando com meu primeiro livro de Direito Constitucional, e acompanhando minha caminhada durante esses anos.

Agradeço também aos integrantes do Projeto de Extensão Cidadania para Todos, do qual sou bolsista desde 2015, pela honra de fazer parte da equipe e por me ensinar em cada reunião e oficina a ser mais humana. Aonde eu estiver, levarei comigo o que aprendi nestes 02 anos de Projeto, e já sinto saudade. Contem sempre comigo.

Por fim, mas não menos importante, devo um agradecimento enorme a minha família, na qual incluo meu namorado João, porque sem eles não sei se teria persistido. Obrigada por cada abraço (mesmo que distante), palavra de encorajamento e apoio, por me deixarem chorar todas as lágrimas de cansaço, e principalmente, por acreditarem em mim e no meu potencial. Podem acreditar que isso fez toda diferença. Amo muito vocês, pra sempre!

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“Que entre o preconceito e a justiça, fique o Estado com a justiça e, para tanto, albergue no direito legislado novos conceitos, derrotando velhos preconceitos”

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa monográfica faz uma análise do tratamento dos crimes sexuais pelo sistema jurídico penal brasileiro, com especial atenção a figura do estupro. Discute aspectos histórico-conceituais do delito de estupro com destaque a legislação brasileira, analisando, por fim, o papel simbólico do Direito Penal na construção da violência sexual. Na sequência, tendo como viés a criminologia crítica de Alessandro Baratta e a criminologia crítica feminista, discute a cultura do estupro na sociedade e no sistema jurídico penal brasileiro, com destaque aos processos de criminalização, aos fenômenos da vitimização e culpabilização da vítima e questões de gênero.

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ABSTRACT

The present work of monographic research made an analysis of the treatment of sexual crimes by the Brazilian criminal legal system, with special attention to the figure of rape. It was discussed, historical-conceptual of the crime of rape, highlighting the Brazilian legislation, finally discussing the symbolic role of Criminal Law in the construction of sexual violence. Following the critical criminology of Alessandro Baratta and critical feminist criminology, the culture of rape in Brazilian society and in the Brazilian criminal justice system was discussed, with emphasis on processes of criminalization, phenomena of victimization and blame, and issues of genre.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...8 1 O DELITO DE ESTUPRO E A TUTELA PENAL DA LIBERDADE SEXUAL NO BRASIL: ASPECTOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS E LEGAIS

1.1 Direitos humanos, dignidade humana e violência sexual... ... ...10 1.2 A figura do estupro: aspectos histórico:conceituais ... ...14 1.3 A proteção dos costumes e a regulação Jurídica do estupro no Brasil até o advento da Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009 ... ...17 1.4 A proteção a dignidade sexual e o delito de estupro no Código Penal Brasileiro após a Lei nº 12.015/2009 ... ...21

1.4.1 As Leis nº 11.340/2006, nº 12.845/13 e nº 13.471/17, e as propostas de alteração legislativa visando a ampliação da proteção à liberdade sexual... ...25 1.4.2 A tutela da dignidade sexual no anteprojeto do Código Penal ... ...30

1.5 A violência sexual no Brasil e o papel simbólico da Lei Penal ... ...32 2 CULTURA DO ESTUPRO E OS LIMITES E AS POSSIBILIDADES DO SISTEMA PENAL NO PROCESSO DE ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA SEXUAL

2.1 Os processos de criminalização, a seletividade e a reprodução da violência no âmbito do sistema penal: considerações a partir da criminologia crítica ... ...37 2.2 Questões de gênero, o corpo como objeto e a cultura do estupro ... ...40 2.3 Os processos de criminalização e a dupla vitimização e culpabilização da vítima...46 2.4 Função simbólica do Direito Penal e os limites e as possibilidades do sistema punitivo no processo de enfrentamento a violência sexual e a cultura do estupro...48 CONCLUSÃO...53 REFERÊNCIAS...56

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho de conclusão de curso tem como temática central o estudo da cultura do estupro, da violência sexual e o papel do sistema jurídico penal no seu enfrentamento.

Tem como objetivo responder se há de fato, no Brasil, uma cultura do estupro, como essa se manifesta e, se há, de fato, um processo de culpabilização das vítimas de violência sexual. Também analisa qual o papel desempenhado pelo sistema penal no enfrentamento da violência sexual e da cultura do estupro no Brasil, questionando se, e em que medida, os mecanismos punitivos hoje vigentes são aptos a combater ou reproduzem esta cultura.

Isso por que, estatísticas indicam que a violência sexual representa, no Brasil, uma das principais e mais graves formas de violência contra mulheres e crianças, uma vez que ano a ano são denunciados milhares de casos em todo o país. No ano de 2014, por exemplo, foram registrados, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 47.646 casos de estupro, o que representa, segundo estimativas, apenas uma pequena parcela de casos, pois em média, apenas 35% dos crimes sexuais são notificados, chegando ao conhecimento dos órgãos de segurança pública.

Considerando que a Lei Penal brasileira define como estupro toda a ação que envolve prática de atos referentes a sexualidade não consentidos, realizados com emprego de violência moral ou física, ou ainda aqueles praticados contra pessoas vulneráveis, e que, em grande parte dos casos, há resistência das vítimas em denunciar seus agressores, visualiza-se uma espécie de banalização/naturalização desta forma de violência e, simultaneamente, de culpabilização das vítimas, que, não raramente são acusadas de provocarem a agressão ou consentirem com a agressão.

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Neste contexto transparece a existência de uma espécie de cultura que procura legitimar a violência sexual, em suas distintas modalidades e graus de intensidade, a qual parece estar enraizada em nossa sociedade.

E para melhor demonstrar os objetivos e problemáticas envolvendo o tema, o trabalho é composto por dois capítulos, quais sejam: 1) O delito de estupro e a tutela penal da liberdade sexual no Brasil: Aspectos histórico/conceituais e legais; e, 2) A cultura do estupro e os limites e possibilidades do sistema penal no processo de enfrentamento da violência sexual.

No primeiro capítulo, serão conceituados os delitos sexuais, com atenção ao crime do estupro, apresentando o aspecto histórico do mesmo no contexto mundial e nacional. A partir da conceituação, serão abordadas questões que envolvem esse tipo penal incriminador no Brasil e sua regulação a partir do advento da Lei nº 12.015/2009, a qual alterou o tratamento dado aos crimes sexuais com a adequação a Constituição Federal de 1988. Por fim, será discutido acerca do papel simbólico do Direito Penal na construção ou desconstrução da violência sexual.

Já no segundo capítulo, o estudo da cultura do estupro, da violência sexual e do papel do sistema jurídico penal no seu enfrentamento serão aprofundados, tendo como embasamento teórico a criminologia crítica de Alessandro Baratta, retratado na obra “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal”. Além de Baratta, serão utilizadas referências tradicionais do direito penal, da política criminal e criminologia, com atenção aos autores que discutem os processos socioculturais que estão na origem do fenômeno da violência sexual, em especial, sob a perspectiva de gênero, quais sejam Foucault, Eugênio Raul Zaffaroni e Vera Andrade.

Por fim, a escolha de temática justifica-se, uma vez que se busca por respostas aos questionamentos que trazem inquietação desde a realização de trabalho junto à disciplina de Direito Penal III, ministrada pela Professora, e da divulgação dos dados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) nos anos de 2013/2014.

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SEXUAL NO BRASIL: ASPECTOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS E LEGAIS

O presente capítulo tem como finalidade conceituar os delitos sexuais, com atenção ao crime de estupro, apresentando o aspecto histórico do mesmo no contexto mundial e nacional. Também aborda as questões que envolvem esta forma de violência sexual no Brasil e sua regulação a partir do advento da Lei n.º 12.015/2009, a qual modificou o tratamento dado aos crimes sexuais, adequando-se a Constituição Federal de 1988, que traz como elemento central o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por fim, também discute o papel simbólico da Lei Penal para a (des)construção da violência sexual, apresentando dados estatísticos referentes a esta forma de violência publicados no Brasil no ano de 2015.

1.1 Direitos humanos, dignidade humana e violência sexual

Para definir Direitos Humanos, primeiramente se faz necessária a definição de direitos fundamentais. Assim, para Pérez Luño (apud SALGADO, 2009, p. 171 e 172),

[...] no seu significado objetivo, os direitos fundamentais representam o resultado do acordo básico das diferentes forças sociais, obtido a partir de relações tensão e os consequentes esforços de cooperação destinados à realização de objetivos comuns ... os direitos fundamentais constituem o do consenso sobre o qual toda sociedade democrática deve ser construída

Na sua dimensão subjetiva, os direitos fundamentais determinam o estatuto jurídico dos cidadãos, bem como nas suas relações com o Estado.do que nas suas relações umas com as outras. Tais direitos tendem, portanto, a proteger a liberdade, autonomia e segurança da pessoa não só contra o poder do Estado mas também contra os outros membros do corpo social.1

Sendo assim, Direitos Humanos são, segundo olhar de Jamille Morais de Siqueira (2003, p. 69), às obras de Norberto Bobbio,

[...] aqueles princípios e valores aplicados a todos os seres humanos e que servem para afirmar e proteger sua condição humana. Possuem valor universal, no sentido de que devem ser reconhecidos e respeitados por todos, em todas as sociedades, em

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qualquer tempo. São esses direitos que tornam os homens iguais, independentemente de raça, sexo, classe social ou crenças morais e religiosas. Por isso, são considerados fundamentais para a existência digna do homem.

Historicamente, os dois grandes marcos para uma profunda mudança histórica para que pudesse se estabelecer um novo modelo de sociedade que possibilitasse o surgimento dos Direitos do Homem, foram a Declaração de Direitos (1776) da Virgínia e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A partir de então, inaugurou-se uma nova era, chamada por Norberto Bobbio de Era dos Direitos (BEDIN, 2000, p. 38).

O processo de reinvindicação e consolidação normativa dos direitos do homem é dividido ou classificado em fases e gerações distintas. Para Gilmar Antônio Bedin (2000, p. 42), os direitos do homem podem ser classificados como: a) direitos civis ou de primeira geração; b) direitos políticos ou direitos de segunda geração; c) direitos econômicos e sociais ou direitos de terceira geração; e, d) direitos de solidariedade ou direitos de quarta geração. Para o autor,

A primeira geração de direitos surgiu com a declaração de direitos de 1776 (Declaração de Virgínia) e de 1789 (Declaração da França) e pode ser denominada de direitos civis ou liberdades civis clássicas.

[...] A segunda geração de direitos surgiu no decorrer do século XIX e pode ser denominada de direitos políticos ou liberdades políticas.

[...] A terceira geração de direitos surgiu no início do presente século, notadamente no decorrer de sua segunda década, por influência da Revolução Russa, da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, e pode ser denominada de direitos econômicos e sociais.

[...] A quarta geração de direitos surgiu no final da primeira metade do presente século, tendo como grande marco o ano de 1948, e pode ser denominada de direitos de solidariedade. (BEDIN, 2000, p. 43, 56, 61 e 73)

Assim, em se tratando do direito a sexualidade, Maria Berenice Dias (2001, p. 01), afirma que

[...] ao serem visualizados os direitos de forma desdobrada em gerações, é de se reconhecer que a sexualidade é um direito do primeiro grupo, do mesmo modo que a liberdade e a igualdade, pois compreende o direito à liberdade sexual, aliado ao direito de tratamento igualitário, independente da tendência sexual. Trata-se assim de uma liberdade individual, um direito do indivíduo, sendo, como todos os direitos de primeira geração, inalienável e imprescritível. É um direito natural, que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza.

Igualmente, o direito a sexualidade pode se enquadrar como da quarta geração (segundo a classificação de Gilmar Antonio Bedin, supracitada), quais sejam direitos da

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humana, mas não tomados individualmente, porém genericamente, solidariamente, a fim de realizar toda a humanidade, integralmente, abrangendo todos os aspectos necessários à preservação da dignidade humana”. Ainda, “é um direito de solidariedade, sem cuja implementação a condição humana não se realiza, não se integraliza”.

Na atualidade, o grande marco para a consolidação normativa dos Direitos Humanos se deu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que em seu 1º artigo, afirma que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. A dignidade da pessoa humana, assim, torna-se o núcleo central dos Direitos Humanos, sendo “um princípio-direcionador, não princípio-especificativo, isso significa dizer que é uma exigência inerente ao campo da moral, ou seja, sugere uma orientação de algo que deve ser realizado na maior medida possível dentro dos limites reais e jurídicos.” (SIQUEIRA, 2003, p. 85).

Cabe ressaltar ainda que, conforme Jamille Morais de Siqueira (2003, p. 85), o “valor da dignidade da pessoa humana é inerente e se manifesta singularmente em cada indivíduo através da autodeterminação do mesmo como responsável pela própria vida”. É essa ideia de dignidade que assegura a liberdade e a autonomia de cada indivíduo e que o torna insubstituível.

No Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a dignidade humana é reconhecida como um princípio fundamental, basilar para todo sistema jurídico, político e social do país. Segundo José Henrique Rodrigues Torres (2011, p.186) todos os atributos da pessoa humana foram submetidos a proteção no âmbito da dignidade humana, dentre os quais a sexualidade humana. Nesse sentido, o autor aduz que,

[...] a violência sexual é uma das mais antigas expressões da violência de gênero e uma brutal violação de direitos humanos, de direitos sexuais e de direitos reprodutivos. E, embora comprometa pessoas de ambos os sexos e em qualquer idade, as evidências apontam contundentemente sobre as mulheres, particularmente as mais jovens e vulneráveis. (TORRES, 2011, p. 187)

A violência sexual é definida pela Organização Mundial da Saúde (KRUG et al, 2002, p. 147) como sendo,

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[...] qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários ou investidas sexuais indesejados, ou atos direcionados ao tráfico sexual ou, de alguma forma, voltados contra a sexualidade de uma pessoa usando a coação, praticados por qualquer pessoa independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer cenário, inclusive em casa e no trabalho, mas não limitado a eles.

Pesquisas realizadas por Daniel Cerqueira e Danilo de Santa Cruz Coelho (apud ENGEL, 2017, p. 15), estimam que a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil, sendo que apenas 10% desses casos chegam ao conhecimento da polícia. Estima-se que 88,5% das vítimas de estupro são do sexo feminino e 51% dos casos ocorrem com pessoas de cor preta ou parda. De todos os estupros que chegam à rede de saúde, 70% vitimam crianças e adolescentes.

Além das mulheres, crianças e adolescentes são as principais vítimas, configurando-se abuso infantil não apenas o envolvimento sexual (penetração anal e/ou vaginal ou sexo oral), mas também ligações obscenas ou mensagens de texto com conotação sexual, ou sempre que a vítima for obrigada a assistir um adulto se masturbando ou ver um filme pornô e receber caricias sexuais. Todas essas formas de abuso geram graves sofrimentos no futuro da criança e do adolescente.

Dados divulgados pelo Ministério da Saúde, e que tem por base os casos notificados de estupro em unidades de saúde entre os anos de 2011 e 2016, apontam para uma triste realidade no país, pois além do crescimento geral dos índices de violência sexual, também demonstram a significativa evolução das situações de estupro coletivo, o que representa a forma mais brutal de violência contra as vítimas, em regra mulheres.

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Estima-se que no mundo, cerca de 19,7% das garotas sejam violadas e 7,9% dos abusos infantis ocorrem com meninos. Em 30% dos casos, os agressores são parentes (irmãos, pais, tios ou primos); cerca de 60% são conhecidos como amigos da família, babás ou vizinhos; e 10% dos casos ocorrem com estranhos. No Brasil, segundo dados do Ipea, 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes (Guia Mundo em Foco: cultura do estupro, 2016, p. 87).

Segundo o relatório da Ocultos à Plena Luz (Hidden in Plain Sight – disponível somente em inglês), publicado pela UNICEF em 2014 e baseado em dados de 190 países, constatou-se que cerca de 120 milhões de meninas com menos de 20 anos de idade (aproximadamente uma em cada dez) foram forçadas a ter relações sexuais ou a praticar outros atos sexuais; e uma em cada três adolescentes que entre 15 e 19 anos de idade já estavam casadas (84 milhões) foram vítimas de violência emocional, física ou sexual cometida por seus maridos ou parceiros. Por fim, a forma mais comum de violência sexual para os dois sexos foi a vitimização por meio da internet.

Tendo em consideração os dados supracitados, não há o que se negar que o fenômeno do estupro no Brasil, uma vez que existe “um universo simbólico e de práticas que explica e justifica a ocorrência frequente de estupros e abusos de mulheres e crianças” (ENGEL, 2017, 15).

1.2 A figura do estupro: aspectos histórico-conceituais

O estupro, como forma de violência sexual, diz respeito, segundo Rogério Greco (2017, p. 1123) “ao fato de ter o agente constrangido alguém, mediante violência ou grave

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ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou com ele permitir que se pratique outro ato libidinoso” A prática do delito é punida com severidade desde os povos antigos, segundo Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 44), no antigo direito romano,

[...] a Lex Julia de Adulteris (18 d.C), procurou-se distinguir adulterius e stuprum, significando o primeiro o primeiro a união sexual com mulher casada, e o segundo, ilícita com viúva. Em sentido estrito, no entanto, considerava-se estupro toda a união sexual ilícita com mulher não casada. Contudo, a conjunção carnal violenta, que ora se denomina estupro, estava para os romanos no conceito amplo do crimen vis, com a pena de morte.

Ainda, a proteção dada pela legislação era dirigida aos cidadãos romanos, uma vez que, “na Roma Antiga, os sujeitos passivos do stuprum violento podiam ser tanto as mulheres como os homens”, e em se tratando da vítima feminina especificamente, “a violência sexual atingia não apenas a mulher agredida, mas a todos os seus familiares, sobretudo quando pensamos no valor que a honestidade feminina possuía na sociedade romana” (CANELA, 2012, p. 30).

Do ponto de vista religioso, o sexo forçado era um crime e um pecado. Por isso, durante o período medieval,

[...] a legislação tinha por objetivo punir aquilo que era que era considerado, ao mesmo tempo, uma ofensa grave à honra e ao patrimônio da família, instituição protegida pelo Estado e pela Igreja, e também, uma grave ofensa à Deus e ao Soberano. Assim, o estupro era punido com morte independente da condição social da mulher em questão [...]. Isso porque o estupro era um pecado do homem que cedia à tentação do que a mulher representava no período medieval (COULOURIS, 2010, p.100).

A tradição em infligir ao estupro a pena capital foi praticada durante um longo período de tempo, inclusive, às Ordenações do Reino, aplicadas ao Brasil, compreendendo às Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manuelinas, o Código de São Sebastião e as Ordenações Filipinas, que vigoraram até a aprovação do Código Criminal do Império, em 1830 (COULOURIS, 2010, p.100).

Nas Ordenações Afonsinas a violência sexual era disciplinada no Livro V, Título VI: “Da Molher, e como fe deve a provar a força”, o qual dispunha sobre a prova do estupro, a acusação, a pena, a participação e o consentimento da vítima. Quanto a pena, essa era aplicada ao condenado,

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[...] independentemente do seu estado ou condição, que violentasse mulher casada, religiosa, virgem ou viúva que vivia honestamente, era a morte. E nenhum privilégio podia ser alegado para evitar a aplicação da pena, nem mesmo o casamento ou o consentimento da vítima. Essa penalidade também era aplicada a qualquer pessoa que auxiliasse ou aconselhasse a prática criminosa. (CANELA, 2012, p. 34)

Nas Ordenações Manuelinas, o estupro é trazido no Livro V, Título XIV, sob a nomenclatura “Do que dorme por força com qualquer molher, ou traua della, ou a leua por

sua vontade”, tendo como característica a exclusão da proteção de escravas e prostitutas, em

que pese não ficar explicito na Lei a honestidade. Aqui, a pena permanece sendo a capital a qualquer homem “independentemente de seu estado ou condição, que dormisse por força, com uma mulher, salvo nos casos de escrava ou prostituta”, aplicando-se também “ao terceiro que houvesse ofertado ajuda, favor ou conselho” para a prática do crime. Ainda, cabe destacar que “a pena não era excluída mesmo se ocorresse o casamento entre o agressor e a vítima ou o consentimento posterior desta em relação a prática sexual” (CANELA, 2012, p. 34).

Por fim, as Ordenações Filipinas tratam do crime de estupro no Livro V, Titulo XVIII: “Do que dorme por força com qualquer mulher, ou trava dela, ou a leva por sua vontade,” repetindo os mesmos preceitos das Ordenações Manuelinas.

Apenas em 1830 o Livro V das Ordenações Filipinas foi substituído pelo Código do Império do Brasil. A partir deste, leciona Bitencourt (2012, p. 44), que “houve uma atenuação na punição dessa infração penal – estupro -. Com efeito, o Código Penal de 1830 passou a punir o estupro violento com a pena de prisão de três a doze anos, acrescida da obrigação de adotar a ofendida”. Ainda, é interessante observar foram catalogados, perante o crime de estupro, “uma série de delitos, tais como o defloramento (artigos 219 a 221), a sedução de mulher honesta, menor de 17 anos (artigo 224) e a cópula obtida por violência ou grave ameaça (artigo 224)” (CANELA, 2012, p. 35).

Posteriormente, o Código Penal Republicano de 1890 “atenuou ainda mais a punibilidade do estupro, cominando-lhe a pena de um a seis anos de prisão celular (artigos 269 e 268), além da constituição de um dote para a vítima” (BITENCOURT, 2012, p. 44). Segundo Canela (2012, p. 35 e 36),

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[...] foi justamente o Código Penal de 1890 que veio diferenciar o crime de estupro das outras espécies delitivas, definindo-o, no seu artigo 269, como “o ato pelo qual o homem abusa, com violência, de uma mulher, seja virgem ou não”. O tipo penal, entretanto, estava no artigo 268: “estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”. A pena foi abrandada: prisão celular de um a seis anos e dote. Se a vítima fosse mulher pública ou prostituta, a pena seria a prisão celular por seis meses a dois anos.

Em 1940, com a promulgação do Código Penal, verificou-se a mudança no tratamento dado aos crimes sexuais, revelando que a estes não eram mais considerados ofensa contra a honra da família ou do indivíduo. Segundo Caufield (apud COULOURIS, 2010, p.118), os legisladores definiram a honestidade e a integridade física da mulher bens sociais e coletivos, tutelados pelo Estado.

1.3 A proteção aos costumes e a regulação Jurídica do estupro no Brasil até o advento da Lei n.º 12.015, de 07 de agosto de 2009

O Código Penal Brasileiro de 1940, em sua redação original, trazia os delitos sexuais tipificados junto ao Título “Crimes contra os costumes”, do qual faziam parte os crimes contra a liberdade sexual, de sedução e corrupção de menores, de rapto, dos relacionados ao latrocínio e tráfico de mulheres, e os de ultraje público ao pudor. A expressão “costumes”, segundo Nélson Hungria (1981, p. 103-104) era empregada

[...] para significar (sentido restritivo) os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplinas sociais. O que a lei penal se propõe a tutelar, in subjecta materia¸ é o interesse jurídico concernente à preservação do mínimo ético reclamado pela experiência social em torno dos fatos sexuais.

Em outras palavras, buscava-se salvaguardar não a vítima, mas sim os comportamentos sexuais considerados adequados à moral dominante na época. No caso do crime de estupro, definido no artigo 2132, buscava-se proteger o direito da mulher em dispor de seu corpo aos genésicos, tendo o crime como conduta típica manter conjunção carnal, lê-se cópula vaginal, por meio de violência ou grave ameaça. Assim, para a configuração do crime de estupro exigia-se que a vítima se opusesse “com veemência ao ato sexual, resistindo com toda a sua força e energia, em dissenso sincero e positivo”, não bastando “uma platônica ausência de adesão, uma recusa puramente verbal, uma oposição passiva e inerte ou meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia” (MIRABETE, 1998, p. 408).

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Há época, só a mulher poderia ser vítima do crime de estupro, sendo os crimes sexuais praticados contra os homens caracterizados como atentado violento ao pudor. Acerca da vítima, Bitencourt (2006, p. 3) destaca que,

[...] no crime de estupro não se perquire sobre a conduta ou honestidade pregressa da ofendida, podendo dele ser sujeito passivo até mesmo a mais vil, odiada ou desbragada prostituta. Assim, qualquer mulher pode ser vítima de estupro: honesta, prostituta, virgem, idosa, menor etc.

Já, no artigo 2153, que definia a posse sexual mediante fraude, o bem jurídico protegido era a virgindade, ou, como refere à lei, a mulher honesta, conceituada por Hungria (1981, p. 139) como “não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes”, sendo assim, não estavam protegidas as prostitutas, as fáceis, de vários leitos, etc.

Na prática, refere Vera Regina Pereira de Andrade (2005, p. 98) que ao criminalizar o estupro e a posse sexual mediante fraude, definindo como sujeito passivo exclusivamente a mulher, a tutela penal referia-se, exclusivamente, a uma determinada concepção moral sexual, baseada na lógica do aprisionamento da sexualidade feminina. Isso porque,

[...] a sexualidade feminina referida ao coito vaginal diz respeito à reprodução. E a função reprodutora (dentro do casamento) se encontra protegida sob a forma da sexualidade honesta, que é precisamente a sexualidade monogâmica (da mulher comprometida com o casamento, a constituição da família e a reprodução legítima), de modo que protegendo-a, mediante a proteção seletiva da mulher honesta, protege-se, latente e diretamente a unidade familiar e, indiretamente, a unidade sucessória (o direito de família e sucessões), que, em última instância, mantém a unidade da própria classe burguesa no capitalismo.

Ainda, cabe mencionar o crime de sedução, tipificado no artigo 217 do Código Penal de 1940, que tinha como caput “Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança: Pena – reclusão de 1 a 4 anos”, tendo como objeto jurídico a proteção da virgindade feminina.

3

Artigo 215 – Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude.

Parágrafo único – Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 anos (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos.

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Quando do casamento da vítima com o ofensor, ou com terceiro, a violência sexual sofrida era simplesmente esquecida, uma vez que o artigo 107, incisos VII e VIII, do Código, aduziam

Art. 107: Extingue-se a punibilidade:

[…]

VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código; VIII – pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração.

Segundo Maíra Zapater (2015), “essas (nem tão) antigas causas de extinção da punibilidade tinham uma destinatária certa: a moça „honesta‟ que não conseguiria se casar (ou poderia ter seu casamento anulado) por já ter sido deflorada”, uma vez que o artigo 219, inciso IV, do Código Civil de 1916 (em vigor até o ano de 2003), considerava erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge “o defloramento da mulher, ignorado pelo marido”. Assim,

[...] possibilitando juridicamente o casamento da moça deflorada, entendia o legislador que os costumes – que era o bem jurídico atingido por um crime de estupro ou de sedução – estariam restaurados, e a honra da moça não sofreria nenhum prejuízo “injusto": afinal, ela fora "desonrada" por ter sido vítima de crime, e não por não ser “honesta".

Ao tratar-se de vítima menor de 14 anos, alienada ou débil mental, ou incapaz de oferecer resistência, o legislador criou a presunção legal do emprego da violência, uma vez que entendia “se não há capacidade para consentir ou para resistir, presume-se que o ato foi violento” (CAPEZ, 2008, p. 64). Nessas circunstancias, havia o caso de aumento de pena previsto, à época, no artigo 9º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90).

A ação penal para os crimes do título “dos crimes contra os costumes” era de iniciativa privada, exceto quando: I – a vítima e seus pais não podem prover as despesas do processo, sem se privarem de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família; ou, II – se o crime é cometido com abuso pátrio de poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. No primeiro, a ação penal era pública condicionada à representação da vítima, enquanto que no segundo, a ação penal era pública incondicionada.

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observa que,

[...] a história dos crimes sexuais é, em última análise, a história da secularização dos costumes e das práticas sexuais. E é também uma parte significativa da repressão ao corpo e ao prazer, sobretudo repressão ao corpo e ao prazer femininos. Não é por acaso que até recentemente a doutrina entendia que a mulher casada não podia ser vítima de estupro praticado pelo marido; que o casamento com o estuprador ou com o terceiro extinguia a punibilidade; que só a mulher honesta era passível de proteção por determinados tipos; que o homem podia ferir ou matar a mulher em legítima defesa da honra, em virtude de adultério.

Analisando a tutela penal conferida à liberdade sexual até do advento da Lei 12.015/09, Andrade (2015) observa que esta serviu mais para a consolidação de uma concepção moral baseada no aprisionamento da sexualidade da mulher, do que para a proteção de sua liberdade sexual. Ao elevar a virgindade feminina a condição de bem jurídico penal e exigir, em diversos tipos delitivos, a honestidade da mulher para a sua proteção penal, a Lei consagrou um imaginário pautado em concepções discriminatórias e desiguais, o que contribuiu, durante décadas, mais para a vitimização feminina do que para a sua proteção.

Relacionado tal questão ao patriarcado, a autora menciona que:

[...] Precisamente porque a essência do controle feminino no patriarcado é o controle da sexualidade, violência contra a mulher e vitimização feminina serão recortadas pelo sistema penal como violência e vitimização sexual, nuclearmente, o estupro. Aqui, o sistema penal, talvez com mais contundência que em qualquer outra, segue a lógica da seletividade, acendendo seus holofotes sobre as pessoas (autor e vítima) envolvidas, antes que sobre o fato-crime cometido, de acordo com estereótipos de violentadores e vítimas.

O diferencial é que há outra lógica específica acionada para a criminalização das condutas sexuais – que denomino “lógica da honestidade” –, que pode ser vista como uma sublógica da seletividade na medida em que se estabelece uma grande linha divisória entre mulheres consideradas honestas (do ponto de vista da moral sexual dominante) e vítimas, pelo sistema, e mulheres desonestas (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona porque não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostos pelo patriarcado à figura feminina. (ANDRADE, 2015, p. 11)

Ao referir-se especificamente ao estupro, Andrade (2015, p.11) afirma que muito embora a definição legal do mesmo jamais tenha exigido a honestidade da vítima, essa sempre esteve presente nos processos de julgamentos, nos quais “operam sub-repticiamente uma separação entre mulheres „honestas‟ e mulheres „não honestas‟”, entendendo-se como vítimas somente àquelas cujos comportamentos adequavam-se as concepções morais dominantes na sociedade.

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1.4 A proteção à dignidade sexual e o delito de estupro no Código Penal Brasileiro após a Lei n.º 12.015/2009

A partir da Constituição Federal de 1988, a qual traz como ideia central a proteção da dignidade da pessoa humana, se passou a questionar a expressão crimes contra os costumes, uma vez que não traduzia uma realidade trazida pelos crimes descritos no título. Assim, no ano de 2009, com o advento da Lei n.º 12.015, passou-se a tratar os crimes sexuais não mais como uma violação aos costumes, mas sim à dignidade da pessoa, motivo pelo qual houve a alteração do Título para “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”.

Ingo Wolfgang Sarlet (apud GRECO, 2013, p. 657), ao tratar sobre o tema esclarece que a dignidade é,

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Nesse sentido, a mudança nominal do título e capítulos que tratam de crimes sexuais representou grande mudança, uma vez que os mesmos tem o poder de “influenciar na análise da cada figura típica nele contida, pois que, por meio de uma interpretação [...] em que se busca a finalidade da proteção legal, pode-se concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, o intérprete, que não poderá fugir às orientações nele contidas” (GRECO, 2013, p. 657).

Referindo-se a dignidade sexual como objeto jurídico de proteção, Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 452) observa que esta representa

[...] o sentimento de respeitabilidade e autoestima do ser humano, bem como constitui elemento fundamental à sua formação pessoal. Diante disso, o ser humano pode realizar-se sexualmente como bem entender, sem que haja qualquer interferência, seja estatal ou da sociedade, pois a atividade sexual, parcela integrante da intimidade e da vida privada, merece respeito e liberdade.

Neste aspecto os crimes sexuais devem proteger, segundo dispõe Queiroz (2013, p. 512) “[...] a liberdade individual de autodeterminar-se sexualmente e assegurar, contra abusos

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crianças, adolescentes e incapazes”.

Nesse sentido, a mudança nominal do título e capítulos que tratam de crimes sexuais representou grande mudança, uma vez que os mesmos têm o poder de

[...] influenciar na análise da cada figura típica nele contida, pois que, por meio de uma interpretação [...] em que se busca a finalidade da proteção legal, pode-se concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, o intérprete, que não poderá fugir às orientações nele contidas. (GRECO, 2013, p. 657).

Com a nova lei, as figuras do estupro e do atentado violento ao pudor foram fundidas em um único tipo penal, ampliando assim o conceito do estupro, o qual ficou definido no artigo 213 do Código Penal como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, podendo configurar como vítima tanto a mulher quanto o homem. E o bem jurídico tutelado, passou a ser “a liberdade sexual da mulher e do homem, ou seja, faculdade que ambos têm de escolher livremente seus parceiros sexuais, podendo recusar inclusive o próprio cônjuge, se assim o desejarem” (BITENCOURT, 2012, p. 45).

Quando o legislador acrescentou “outro ato libidinoso” ao tipo penal, não se referiu apenas ao sexo oral e anal e a introdução do dedo no ânus ou na vagina da vítima, como também passar a mão nos seios da vítima ou em suas nádegas, esfregar o órgão sexual no corpo dela, introduzir objeto em seu ânus ou vagina, beijo lascivo. Da mesma forma, conforme leciona Victor Eduardo Rios Gonçalves (2012, p. 522), a configuração do estupro não depende de contato físico entre o autor do crime e a vítima, uma vez que “o pressuposto do crime, em verdade, é o envolvimento corpóreo da vítima no ato sexual”.

Dito isso, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal passou a ser “a liberdade sexual da mulher e do homem, ou seja, faculdade que ambos têm de escolher livremente seus parceiros sexuais, podendo recusar inclusive o próprio cônjuge, se assim o desejarem” (BITENCOURT, 2012, p. 45).

Bitencourt (2012, p. 45), ainda lecionando sobre a liberdade sexual, afirma que essa em relação a mulher,

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[...] significa o reconhecimento do direito de dispor livremente de suas necessidades sexuais ou voluptuárias, ou seja, a faculdade de comportar-se, no plano sexual, segundo suas aspirações carnais, sexuais, lascivas e eróticas, governada somente por sua vontade consciente, tanto sobre a relação em si como a escolha de parceiros. Esse realce é importante, pois para o homem parece que sempre foi reconhecido esse direito.

Outra inovação foi à criação de um capítulo que versa sobre os crimes sexuais praticados contra vulnerável, do qual se destaca o crime de estupro de vulnerável, o qual tem como bem jurídico tutelado “a dignidade sexual do menor de quatorze anos e do enfermo ou deficiente mental, que tenha dificuldade de discernir a prática do ato sexual” (BITENCOURT, 2012, p. 95).

Enfim a figura da presunção da violência presente na redação original do Código Penal foi abolida, se estabelecendo objetivamente como crime o ato de manter relação sexual com qualquer uma das pessoas vulneráveis elencadas no artigo 217-A do Código Penal (GONÇALVES, 2012, p. 543).

Para a configuração do crime não se exige o emprego de violência física ou grave ameaça, basta ser a vítima menor de 14 anos ou pessoa portadora de enfermidade ou doença mental, que a impeça de ter o entendimento do ato praticado.

A Lei 12.015/09, também tipificou as condutas de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, sob o seguinte teor:

Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente

Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou

induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável.

Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração

sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.

§ 2º Incorre nas mesmas penas:

I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo; II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo.

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cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.

Quanto ao crime tipificado no artigo 218-A, pode-se entender por lascívia, segundo Edgard Magalhães Noronha (apud GRECO, 2013, p. 720), como sendo “sinônimo de sensualidade, luxúria, concupiscência e libidinagem”. Assim, segundo Greco (2013, p. 720), aquele que permite que menor de 14 anos presencie a pratica de atos sexuais, ou mesmo que o induz a presencia-los deve ter como finalidade a satisfação própria ou de outrem de uma das características apostadas por Noronha para que se configure o tipo penal.

Acerca do crime previsto no art. 218-B, há uma ampliação do termo vulnerável para menores de 18 anos, não restringindo-se apenas a prostituição, mas a qualquer forma de exploração sexual, ou seja, “não há a necessidade que exista o comércio do corpo, mas que tão somente a vítima seja explorada sexualmente, nada recebendo em troca por isso, amoldando-se a esse conceito (...) o turismo sexual e a pornografia” (GRECO, 2013, p. 723).

A ação penal para os crimes definidos nos capítulos I e II do Título Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, também sofreu alteração com a Lei 12.015/2009, procedendo mediante ação penal pública condicionada à representação, com exceção de vítima menor de 18 anos ou vulnerável, procedendo-se mediante ação pública incondicionada. Pode-se entender, como regra, que,

[...] as ações penais serão de iniciativa pública condicionada à representação quando disserem respeito ao capítulo I (dos crimes contra a liberdade sexual), que abrange os crimes de estupro (art. 213), violação sexual mediante fraude (art. 215) e assédio sexual (art. 216-A). No que diz respeito ao capítulo II (Dos Crimes Sexuais contra Vulneráveis), eu prevê os delitos de estupro de vulnerável (art. 217-A), corrupção de menores (art. 218), satisfação da lascívia mediante a presença de criança ou adolescente (art. 218-A) e favorecimento a prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B) a ação será, sempre, de iniciativa pública incondicionada. (GRECO, 2013, p. 729)

As mudanças legislativas propostas pela Lei n.º 12.015/2009, surgiram a partir da instauração de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), no ano de 2003, mediante o requerimento da Deputada Federal Maria do Rosário. Isso porque, estudos realizados constataram um grande número de crianças e adolescentes explorados sexualmente no país. Ainda, vale ressaltar que a CPMI, na época, “investigou situações de violência não contempladas pela legislação penal, que resultam na impunidade dos agressores e na

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dificuldade de combate a essa situação, facilitando a sua perpetuação” (SENADO FEDERAL, 2004).

Em se tratando de crianças e adolescentes, sujeitos a proteção da Constituição Federal de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente, e Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, buscou-se respeitar a liberdade sexual de pessoas entre 14 e 18 anos, motivo pela qual, considera-se vulnerável o adolescente menor de 14 anos de idade.

Quanto ao estupro propriamente dito, a mudança no tipo penal se inspirou no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, quando não faz distinção entre vítimas homens e mulheres e não restringe a consumação do crime apenas a conjunção carnal.

1.4.1 As Leis nº 11.340/06, nº 12.845/13 e nº 13.471/17, e as propostas de alteração legislativa visando a ampliação da proteção à liberdade sexual

Visando estabelecer uma proteção mais adequada à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, categorizou as diferentes formas de violência contra a mulher, mencionando em seu texto como formas de violência a física, moral, psicológica, sexual e patrimonial. Estabeleceu, em seu artigo 7º que a violência sexual contra a mulher representa

[...] qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força, que a induza a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Referida Lei representou significativo avanço para a proteção da mulher contra a violência sexual, pois além de prever um conjunto de medidas protetivas para atendimento da vítima em situação de violência doméstica e familiar, admitiu expressamente a possibilidade de reconhecimento da violência sexual no âmbito familiar, mesmo entre cônjuges ou companheiros. Isso porque, “a tendência sempre foi identificar o exercício da sexualidade como um dos deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem, como se estivesse ele a exercer um direito” (DIAS, 2008, p. 49).

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largamente difundida na doutrina e também aceita na jurisprudência brasileira até o final dos anos 80 do século passado, de que não poderia haver estupro entre cônjuges, uma vez que a submissão a atividade sexual faria parte da obrigação conjugal da mulher. Sobre isso, Dias (2008, p. 48), refere que,

[...] a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência doméstica – chamada de Convenção de Belém do Pará – reconheceu a violência sexual como violência contra a mulher. Ainda assim, houve certa resistência da doutrina e da jurisprudência em admitir a possibilidade da ocorrência da violência sexual nos vínculos familiares.

A Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, também representou importante inovação pois passou a dispor sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoa em situação de violência sexual. Esta determina que,

[...] os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social, considerando como violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida, nos termos dos arts. 1º e 2º do referido diploma legal. (GRECO, 2017, p. 1167 e 1168)

Ocorre que a Lei considerou violência sexual qualquer atividade sexual não consentida, desconsiderando que existem atividades sexuais que independem do consentimento para serem ilícitas, como é o exemplo do estupro de vulnerável e da violência sexual mediante fraude. Tal equívoco não passou despercebido, visto que logo após a aprovação da Lei, a Câmara dos Deputados elaborou Projeto de Lei alterando o artigo 2º da Lei nº 12.845/2013, entretanto não se deu continuidade ao projeto.

No que diz respeito à Profilaxia da gravidez, ou seja, aplicação de meios para evitar a gravidez, esta está compreendida entre os serviços obrigatórios de atendimento imediato em qualquer hospital integrante da Rede SUS (artigo 3º, inciso IV). Sendo assim,

[...] no caso de gravidez decorrente de um estupro, a mulher é acolhida por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Durante a triagem, ela conta como os fatos ocorreram e os profissionais analisam questões psicológicas e sociais, e realizam-se exames. E seguida, a equipe decide se o aborto será realizado e de qual forma, pois o procedimento varia de acordo com o período gestacional. (Guia Mundo em Foco: cultura do estupro, 2016, p. 85)

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Também visando melhor proteger crianças e adolescentes que se encontram em situações de abuso e exploração sexual, a Lei nº 13.431/2017, a qual entra em vigor no ano de 2018, estabeleceu um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, e propõe alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente, visando proteger direitos destes quando expostos ao sistema de justiça criminal. Decorreu do Projeto de Lei da Câmara 21/2017, da Deputada Maria do Rosário, sob a justificativa de que

[...] O Brasil tem se ressentido da falta de legislação que proteja os direitos de crianças e adolescentes expostos ao sistema de justiça. Assim, a falta de atenção quanto à condição de pessoas em desenvolvimento resulta em violência institucional. Tal violência se verifica quando crianças adolescentes são expostos à vitimização secundária, produzida pela ineficiência no trato da questão, e à vitimização repetida, quando ocorre mais de um incidente delitivo, ou ação ineficiente do Estado, ao largo de um período determinado. (SENADO, 2017)

Em suma, a nova Lei visa à proteção das crianças e adolescentes expostas ao sistema de justiça, regularizando os mecanismos de escuta especializada (art. 7º) e depoimento especial (art. 8º), prevendo, no artigo 10, que estes “serão realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência.”.

No Relatório Legislativo nº 40, a Senadora Marta Suplicy (SENADO, 2017), destacou a importância do Projeto de Lei, uma vez que trata da formalização legal dos institutos de escuta especializada e do depoimento especial, permitido assim “a garantia da dignidade e a não continuidade da violação da dignidade do menor que se encontra em situação de gigantesca fragilidade emocional. Não se pode deixar de mencionar, ainda, a importante preocupação do projeto em evitar a revitimização.”.

Segundo Giselle Câmara Groeninga (2017), dois são os aspectos a se destacar da lei: “Um é o de ampliar o escopo da consideração da violência também às crianças e adolescentes que a testemunham, e o outro é o de especificar os tipos de violência: a física, a psicológica, a sexual, e a institucional”.

Em se tratando da violência sexual, o artigo 4º, inciso III, refere

Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas

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o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda:

a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro;

b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou por meio eletrônico;

c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação;

Ainda sobre os casos de violência sexual, prevê que o depoimento especial seguirá o rito cautelar de antecipação da prova (art. 11, § 1º, II) e que cabe ao responsável da rede de proteção garantir a urgência e a celeridade necessárias ao atendimento de saúde e à produção probatória, preservada a confidencialidade (art. 14, § 2º).

Além das normas já mencionadas, vale destacar também algumas propostas de alteração legislativa que se encontram em discussão no âmbito do Congresso Nacional. Referidas propostas, em regra, têm sido apresentadas como tentativa de resposta a situações específicas de violência sexual que se mostram presentes na sociedade e que, face a visibilidade pública e repercussão no âmbito da mídia tradicional ou redes de contato virtual, tem causado debate significativo na sociedade.

Dentre as propostas de alteração legislativa, vale destacar o Projeto de Lei do Senado nº 618/2015, proposto pela Senadora Vanessa Grazziotin, que busca acrescentar o artigo 225-A ao Código Penal Brasileiro, prevendo causa de aumento de pena em um terço para o crime de estupro (artigos. 213 e 217-A do Código Penal) cometido em concurso de duas ou mais pessoas.

A Senadora justifica o projeto tendo em vista a necessidade de “punir, de maneira diferenciada e exemplar os responsáveis por esses delitos”, considerando necessária a alteração legal e para isso propõe a criação de “causa de aumento de pena específica para os crimes de estupro e estupro de vulnerável, quando praticados por duas ou mais pessoas.” O

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objetivo da norma é aumentar o rigor repressivo especialmente nos casos em que se pratica o chamado estupro coletivo4.

Atualmente o Código Penal já prevê, em seu artigo 226, uma causa de aumento de ¼ (um quarto) de pena quando a violência sexual é praticado em concurso de duas ou mais pessoas, mas a proposta de recrudescimento punitivo para tais casos deveu-se a visibilidade pública que casos de estupro coletivo no Brasil. O estupro coletivo, como é chamado o crime quando praticado por duas ou mais pessoas, é cada vez mais corriqueiro no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde, divulgados pelo Jornal Folha de São Paulo (COLLUCCI, 2017) no dia 20 de agosto de 2017, no ano de 2016, 3.526 casos foram registrados pelas unidades de saúde de todo o país, o que representa um crescimento de 12,5% em relação aos 3.132 de 2015 e em comparação com 2011, o número subiu 124%. São uma média de 10 casos de estupro coletivo por dia no país.

O Projeto de Lei já foi aprovado pelo Senado e aguarda aprovação da Câmara dos Deputados desde o ano de 2016. Enquanto isso, ao crime de estupro coletivo é imputada a pena do artigo 217-A, quando praticado contra vulneráveis e do artigo 213, quando praticada contra maiores de 14 anos, combinado com o artigo 29 (concurso de pessoas), todos do Código Penal.

Outra proposta de alteração legislativa visando ampliar o rigor punitivo para crimes contra a liberdade sexual é a constante da Proposta de Emenda à Constituição nº 64/2016, a qual se encontra atualmente na Câmara dos Deputados, e que sugere a alteração do inciso XLI do artigo 5º da Constituição Federal, para tornar imprescritíveis os crimes de estupro. Isso porque, segundo o Senador Jorge Viana (SENADO, 2016),

[...] é preciso observar, todavia, que a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos. Diante desse quadro, propomos a imprescritibilidade do crime de estupro. Essa medida, por um lado, permitirá que a vítima reflita, se fortaleça e denuncie, por outro lado, contribuirá para que o estuprador não fique impune.

4 A Proposta legislativa teve como justificativa o grande número de estupros coletivos praticados durante o ano de 2015. Somente no mês de maio daquele ano, no Estado do Piauí, quatro adolescentes foram vítimas de “estupro coletivo”, sendo que uma delas morreu em razão das agressões sofridas. Já no Estado do Rio Grande do Norte, no mês de agosto, três casos de “estupro coletivo” foram amplamente noticiados pela mídia (SENADO, 2015).

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conforme o artigo 109, inciso I, do Código Penal.

Ainda, tem-se o Projeto de Lei do Senado n° 740, de 2015, proposto pelo Senador Humberto Costa, que acrescenta o art. 216-B ao Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar o crime de constrangimento ofensivo ao pudor em transporte públicos, sob a seguinte redação: “Art. 216-B. Constranger alguém, em transporte público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Segundo o Relator Magno Malta, a proposta encontra uma solução ao atual impasse da legislação penal, uma vez que

[...] conduta de frotteurismo (ato de se esfregar em outra pessoa) pode ser hoje enquadrada como importunação ofensiva ao pudor, que é uma contravenção penal com previsão apenas de multa; ou violação sexual mediante fraude, crime com pena de reclusão de dois a seis anos. São dois extremos e nenhum oferece uma descrição adequada da conduta. (SENADO, 2017)

A proposta de Lei foi aprovada em setembro de 2017, juntamente com o Projeto de Lei do Senado n° 312, de 2017, de autoria da Senadora Marta Suplicy, que altera o Código Penal para prever o crime de molestamento sexual e o Código de Processo Penal para modificar as hipóteses de internação provisória, acrescentando ao texto:

Art. 213-A. Constranger ou molestar alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de ato libidinoso diverso do estupro: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos.

Parágrafo único. Se o constrangimento ou molestamento ocorrer sem violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Tal alteração foi motivado pela lacuna na legislação ao solucionar diversas condutas delitivas, tendo como destaque ao caso do homem que ejaculava nas mulheres dentro do metrô na Cidade de São Paulo.

1.4.2 A tutela da dignidade sexual no anteprojeto de Código Penal

O anteprojeto de novo Código Penal foi elaborado por comissão de notáveis juristas brasileiros e encontra-se em tramitação no Congresso Nacional desde o ano de 2012. A exposição de motivos apresentada justifica o novo texto pela necessidade de unificação da

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legislação penal brasileira em um único diploma legal, bem como de sua adequação aos princípios constitucionais constantes do texto da Constituição Federal de 19885.

Transformado no Projeto de Lei do Senado Federal nº 236, 2012, apresentado pelo Senador José Sarney, traz a proposta de novo Código Penal Brasileiro e propõe inúmeras mudanças aos crimes contra a dignidade sexual. Quais sejam:

Estupro

Art. 180. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de ato

sexual vaginal, anal ou oral: Pena – prisão, de seis a dez anos.

Parágrafo único. Se o agente pratica o crime mediante mais de uma das condutas descritas no caput, a pena será aumentada de um terço a dois terços, sem prejuízo da aplicação de outras causas de aumento previstas neste Título.

Manipulação e introdução sexual de objetos

Art. 181. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a suportar a

introdução vaginal ou anal de objetos: Pena – prisão, seis a dez anos.

Molestamento sexual

Art. 182. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou se

aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima, à prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal e oral:

Pena – prisão, de dois a seis anos.

Parágrafo único. Se o molestamento ocorrer sem violência ou grave ameaça, a pena será de um a dois anos.

Quanto aos crimes sexuais praticados contra vulnerável, propõe as seguintes alterações:

Estupro de vulnerável

Art. 186. Manter relação sexual vaginal, anal ou oral com pessoa que tenha até doze

anos:

Pena – prisão, de oito a doze anos.

§ 1º Incide nas mesmas penas quem pratica a conduta abusando de pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental, ou de quem, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência ou não possui o necessário discernimento.

Aumento de pena

§ 2º A pena será aumentada de um sexto até a metade se resultar gravidez ou doença sexualmente transmissível.

§ 3º Se o agente pratica o crime mediante mais de uma das condutas descritas no caput, a pena será aumentada de um a dois terços, sem prejuízo da aplicação de outras causas de aumento previstas neste Título.

Manipulação ou introdução de objetos em vulnerável

5 Os principais juristas que compuseram a Comissão de Elaboração do Projeto foram: Ministro do STJ Gilson Langaro Dipp, Ministra do STJ Maria Thereza Moura, o Professor Luiz Flávio Gomes, a Procuradora de Justiça Luiza Nagib Eluf, o Procurador Regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, e o Promotor de Justiça Marcelo André de Azevedo.

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tenha até doze anos:

Pena – prisão, de oito a doze anos.

Molestamento sexual de vulnerável

Art. 188. Constranger alguém que tenha até doze anos à prática de ato libidinoso

diverso do estupro vaginal, anal ou oral: Pena – prisão, de quatro a oito anos.

Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem pratica a conduta abusando de pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental, ou de quem, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência ou não possui o necessário discernimento.

As alterações justificam-se de um clamor social na proteção efetiva da dignidade sexual, descriminalizando condutas já defasadas e criminalizando novas condutas de violência sexual.

A redação do crime de estupro passa a ser mais simplificada, uma vez que a proposta da comissão é “tornar a Lei de fácil compreensão”, e dar “às práticas sexuais os nomes que elas realmente têm, não há mais o risco de interpretações equivocadas ou exageradas, como considerar “estupro” o afago sexual nas partes íntimas da vítima, tendo em vista tratar-se de ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (SENADO, 2012).

Quando ao estupro de vulnerável, tem-se uma grande alteração ao conceito de vulnerável, que no Código Penal em vigor, tem o marco dos 14 anos. Isso porque,

[...] a Comissão entendeu apropriado acompanhar o critério estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que considera criança o ser humano até os 12 anos de idade. Além disso, é comum que pré-adolescentes iniciem a vida afetiva aos 13 anos, o que coloca o direito penal atual defasado em relação às alterações de comportamento.

Atualmente o projeto de Lei tramita junto a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sem previsão para entrada em vigor.

1.5 A violência sexual no Brasil e o papel simbólico da Lei Penal

Em que pese à preocupação com as situações de violência sexual e as recorrentes mudanças legislativas apresentadas, no ano de 2014, as polícias brasileiras notificaram 47.646 estupros no Brasil, ante 51.090 em 2013. Sinala-se que o recuo de 7,5% na taxa média nacional de estupros em 2014, deve ser visto com cautela, isso porque, segundo o Anuário Nacional de Segurança Pública (2015, p. 116),

Referências

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