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Os processos de criminalização e a dupla vitimização e culpabilização da vítima

2 CULTURA DO ESTUPRO E OS LIMITES E POSSIBILIDADES DO SISTEMA PENAL NO PROCESSO DE ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA SEXUAL

2.3 Os processos de criminalização e a dupla vitimização e culpabilização da vítima

A alteração normativa proposta pela Lei n.º 12.015/2009 mostrou-se necessária, uma vez que adequou, em larga medida, a legislação penal aos princípios constantes no texto da Constituição Federal de 1988. Contudo, o efeito esperado na diminuição da violência sexual, em especial contra pessoas mais vulneráveis, mostrou-se menor do que o esperado, revelando uma cultura que reforça os fenômenos da culpabilização e duplicação da vitimização feminina.

Ao tratar sobre o sistema jurídico penal, Andrade (2015, p. 90 e 91) leciona que “o sistema de justiça penal salvo situações contingentes e excepcionais, não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres – lê-se também homens vítimas - contra a violência sexual como também duplica [...] a violência exercida contra ela”, isso porque, segundo a autora, além de vítima do crime, a mulher

[...] torna-se vítima da violência institucional (plurifecetada) do sistema penal, que expressa e reproduz a violência estrutural das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e patriarcais (a desigualdade de gêneros) de nossas sociedades e os estereótipos que elas criam e se recriam no sistema penal e são especialmente visíveis .no campo da moral sexual dominante.

Analisando a violência sexual sob o viés da criminologia crítica, que se ocupa em descrever o fenômeno criminal a partir da lógica de funcionamento do sistema penal e também dos complexos processos de etiquetamento presentes na sociedade, os quais são determinados por fatores reais de poder, Andrade (1996) salienta a necessidade de revisão do paradigma criminológico etiológico tradicional, que localiza as causas da criminalidade em fatores exclusivamente individuais. Neste aspecto ao referir-se aos delitos sexuais observa a necessidade de romper-se com determinadas percepções, afirmando que é preciso abandonar certas crenças cristalizadas no senso comum.

[...] Em primeiro lugar, que os crimes sexuais são condutas majoritárias e ubíquas e não de uma minoria anormal. Em sendo lugar e correlativamente, que a violência sexual não é voltada, prioritariamente, para a satisfação do prazer sexual, o que retira a culpa, insistentemente atribuída à mulher, pela explicita ou latente provocação de sua prática. E em terceiro lugar, que nos crimes sexuais se julgam as „pessoas‟ (autor e vítima) envolvidas, antes que o fato-crime cometido, de acordo com estereótipos de estupradores e vítimas” (ANDRADE, 1996, pag. 101)

No mesmo sentido, Jolande Uit Beijerse e Renée Kool (apud ANDRADE, 1996, p. 102) lecionam que

[...] o estupro é praticado por estranhos e nas relações de parentesco, profissionais e de amizade em geral (por maridos, chefes, amigos) e não por homens “anormais”. Ocorre na rua, no lar e no trabalho, contra crianças, adolescentes, adultas e velhas, tendo sido denunciado contra vítimas com idades que variam desde poucos meses de idade até sexagenárias ou octogenárias.

Henry Steiner (apud ALMEIDA, 1996, pag. 102-103), leciona que embora já se tenha desconstruído, no âmbito científico e acadêmico o mito que circunda o estupro e que coloca o estuprador como um indivíduo diferente de todos os demais, no senso comum e na sociedade “continua-se reproduzindo o estereótipo do estuprador como um anormal e, numa preconceituação masculina, continua-se acentuando o encontro sexual e o coito vaginal antes que a violência.”.

[...] quanto à sua autoria o estupro é, pois, uma conduta majoritária e ubíqua, mas desigualmente distribuída, de acordo, sobretudo, com estereótipos de estupradores que operam ao nível do controle social formal (lei, dogmática, polícia, justiça) e informal (opinião pública). É mais fácil etiquetar como estupro a conduta cometida por um estranho na rua, que a realizada pelo chefe ou pelo marido, cuja possibilidade está, em algumas legislações, explicitamente excluída. (ALMEIDA, 1996, pag. 102)

O julgamento de um crime sexual, com destaque no crime de estupro, não é um campo onde se reconhece a prática de uma violência e violação a liberdade sexual feminina, muito menos um local aonde julga-se o homem culpado, mas é uma “arena onde se julgam simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de forças, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa”. Para a mulher, está em cheque a sua

reputação sexual “que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o

reconhecimento da vitimação sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina” (ANDRADE, 2005, p. 91 e 92).

assim, segundo Andrade (2005, p. 98),

[...] a função reprodutora (dentro do casamento) se encontra protegida sob a forma da sexualidade honesta, que é precisamente a sexualidade monogâmica (da mulher comprometida com o casamento, constituição da família e a reprodução legítima), de modo que protegendo-a, mediante a proteção seletiva da mulher honesta, protege-se, latente e diretamente a unidade familiar e, indiretamente, a unidade sucessória (o direito de família e sucessões), que, em última instância, mantém a unidade da própria classe burguesa no capitalismo.

Como regra geral, o conjunto probatório nos processos de estupro são extremamente frágeis limitando-se à prova pericial, testemunhal, ou, como na maioria dos casos, dependendo inteiramente da palavra da vítima. Acerca desta,

[...] parece consenso entre doutrina e jurisprudência que ela (palavra da vítima) tem alto valor probatório em se tratando de direitos sexuais, justamente pelas especificidades mencionadas. No entanto, o depoimento da vítima deve ser corroborado por outras provas nos autos. O problema é que esses “outros elementos probatórios nada mais são do que a vida pregressa da própria vítima”. É nesse ponto que incide, no processo, o julgamento moral da mulher, se ela é “honesta” etc. (LARA et al., 2016, p.173)

Assim, ocorre um retrocesso à tipificação dada aos crimes sociais antes da alteração legislativa em 2009, no qual há a separação entre a mulher considerada “honesta” e a “não honesta”, configurando elas como culpadas ou não pelo estupro conforme sua conduta socialmente aceita. Dessa forma, as “mulheres deixam de ser vítimas e passam elas próprias a ser, novamente, julgadas”. O julgamento, assim, tem por objetivo determinar se houve o crime e quem o praticou, atribuindo a alguém a culpa, terminando por culpabilizar a própria vítima “se estava usando determinada roupa, estava „pedindo‟; por não ter corrido é porque „gostou‟; se não gritou é porque „consentiu‟; está mentindo apenas para acabar com a vida do sujeito (especialmente se ele não corresponder ao estereótipo de estuprador) etc.” (LARA et al., 2016, p. 173 e 174).

2.4 Função simbólica do Direito Penal e os limites e as possibilidades do sistema punitivo