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Os caminhos da investigação

1. Sobre o Distrito Federal e as vítimas indiretas de violência urbana

1.4 A violência urbana é a violência contemporânea no Brasil?

Concluída a discussão sobre violência, entro agora no debate de um tipo específico de violência: a violência urbana, conceito que ajuda a compreender melhor um dos recortes do tema desta pesquisa.

Para conceituar a violência urbana, utilizei a definição do geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2005), que considera violência urbana não apenas aquela praticada na cidade, mas:

As diversas manifestações da violência interpessoal explícita que, além de terem lugar no ambiente urbano, apresentam uma conexão bastante forte com a espacialidade urbana e/ou com problemas e estratégias de sobrevivência que revelam ao observador particularidades ao se concretizarem no meio citadino, ainda que não sejam exclusivamente ‘urbanos’ (a pobreza e a criminalidade são, evidentemente, fenômenos tanto rurais quanto urbanos) e sejam alimentados por fatores que emergem e operam em diversas escalas, da local à internacional (p. 52).

Logo, a violência urbana não se refere tão somente à violência que tem como palco a cidade, mas sim àquela cujas diversas manifestações estão fortemente vinculadas à espacialidade urbana, que remetem a problemas como o estresse e a deterioração geral da ‘urbanidade’ ou ‘civilidade’ no ambiente de uma grande cidade contemporânea. Para o referido autor, podem ser tomados como “típicos exemplares da violência propriamente urbana a violência no trânsito, os quebra-quebras, os assassinatos debitáveis na conta de grupos de

36 extermínio e os atos violentos perpetrados por quadrilhas de traficantes de drogas ou gangues de rua” (p. 52), em particular nas condições da segregação residencial nas grandes cidades. Estariam fora desta conceituação de violência urbana: os atos terroristas, as guerrilhas urbanas com motivação ideológica e os crimes passionais. Assim, como núcleos do conceito de violência urbana stricto sensu, estão as reações ‘não políticas’ dos desprivilegiados – assaltos, quebra-quebras, saques (Souza 1996), além de outras formas de violência, como a violência no trânsito ou por parte das torcidas organizadas de futebol.

Em algumas cidades, esta violência tem proporções alarmantes, influindo diretamente no cotidiano, nas relações com o espaço e na saúde dos indivíduos. Alguns autores referem que a violência urbana afeta as relações, as rotinas de trabalho e as formas de circulação na cidade (Fernandes, 2009; Sonoda, 2008, 2013). Outros consideram que os homicídios (um dos indicadores desse tipo de violência) são uma epidemia (Soares, 2003). E, embora não seja, tradicionalmente, um problema da área saúde, a violência a afeta.

Souza (2006a, 2008) cunhou o termo “fobópole”, junção das palavras gregas “phobos”, e “pólis”, que significam, respectivamente, medo e cidade, para referir-se a cidades nas quais o medo e a percepção crescente do risco fazem parte do cotidiano e atingem em maior ou menor intensidade, todos os cidadãos. O termo Fobópole condensa o que o autor tenta qualificar como Cidades nas quais o medo e a percepção crescente do risco assumem uma posição cada vez mais proeminente nas conversas, e noticiários da grande imprensa, o que se relaciona, complexamente, com vários fenômenos de tipo defensivo, repressivo ou repressor, levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil (Souza, 2008, p. 9).

O medo de ser vítima de crime violento não é novo; sempre existiu, em maior ou menor escala, no espaço urbano. A violência urbana não é um fenômeno recente na história das cidades. Mas, quando a violência urbana passou a preocupar e definir definitivamente o

37 cotidiano e as relações sociais? O que justifica o uso do neologismo fobópole para caracterizar as grandes cidades contemporâneas como violentas?

Para Souza (2008), a novidade histórica, que justifica o uso do neologismo para caracterizar algumas cidades, é dada por dois fatores entrelaçados. Em primeiro lugar, a criminalidade violenta, especialmente aquela vinculada a razões econômicas (roubos, latrocínios, entre outros), tem sido um traço comum nas cidades ao longo da história, “mas não chegava a sobressair tanto assim em comparação com muitas outras preocupações, como fome, doenças e violência decorrente de guerras constantes” (p.38). Assim, embora a violência sempre tenha existido na história da humanidade, na atualidade ela tomou maior dimensão na vida cotidiana de forma a superar as preocupações (epidemias e guerras, por exemplo) que, em outros tempos, eram a maior causa de mortes e perdas. O segundo fator do neologismo fobópole é justificado pelo mesmo autor porque que:

No decorrer de um multissecular (e muito relativo) ‘processo civilizatório’, a violência fora de situações de guerra tornou-se bem menos comum, a ponto de um homicídio ou outro crime violento passar a ser, a partir de certo momento, motivo de escândalo e mesmo comoção. Esse momento é, ao que tudo indica, na Europa e também nas grandes cidades do Novo Mundo, o final do século XIX (p. 39).

E continua afirmando que, em comparação com períodos anteriores, particularmente “com o período de relativa ‘calmaria’ que se estende da era vitoriana e da belle époque até meados do século XX, faz com que a fobópole possa ser vista como um fenômeno dotado de ‘alguma’ novidade histórica” (p.39). A partir de um período datado historicamente, a criminalidade ‘ordinária’, sem motivação política ou ideológica direta, vai se tornando cada vez mais comum e intensa em diferentes países e regiões (e em diferentes escalas), o que justifica, portanto, o termo fobópole para caracterizar cidades dominadas pelo medo e pela sensação de insegurança.

38 De uma perspectiva sociológica, restrições têm sido levantadas contra o uso indiscriminado da noção de violência urbana que, aos olhos de alguns pesquisadores parece excessivamente vaga. No entanto, ao considerar a espacialidade das relações sociais, o geógrafo Marcelo Lopes de Souza tem insistido sobre as especificidades do entrecruzamento denso entre a violência e o urbano. Para esse pesquisador, a violência no trânsito ou as guerras entre traficantes de drogas de varejo em espaços segregados têm, sim, muito a ver com o ambiente - a organização espacial, os modos de vida, as particularidades da pobreza urbana -, da cidade e, sobretudo, da grande cidade. Faz sentido, portanto, falar em violência urbana, com o objetivo de chamar a atenção para essas particularidades, desde que não se infira daí que é a cidade em si própria que ‘produz’ a violência. As causas dos vários tipos de crime violento são, em última instância, muitos e nos remetem a fenômenos que ocorrem em várias escalas de tempo e de espaço (Souza, 2006b).

As práticas de violência não estão dissociadas do espaço (neste estudo, do espaço urbano). Na fobópole, o espaço comparece em sua dupla funcionalidade: produto social e condicionante das relações sociais. “É no mundo todo que se pode perceber que a problemática da (in) segurança pública, tendo por pano de fundo o medo generalizado, está se convertendo em um fator formidável de (re) estruturação do espaço e da vida urbanos” (Souza, 2008, p. 33).

A sociabilidade violenta é traço marcante no Brasil. Temos uma história fundada e marcada pela violência de diversos segmentos sociais e épocas históricas. O país tem uma tradição autoritária, certa tolerância à violência e o Estado nunca deteve o seu monopólio. Reproduzimos ao longo das gerações uma cultura da violência e da impunidade.

Nos últimos anos (entre 1996 e 2010) foram registrados 1,8 milhão de homicídios no país. É o nosso Shoah (do hebraico: catástrofe). E isto apenas quando avaliamos os dados oficiais. Existe um problema de subnotificação para todas as mortes por causas externas.

39 Diversos autores, entre eles Souza (2005), têm apontado que não apenas a “sensação de insegurança” está aumentando nos últimos anos, mas também a própria taxa de criminalidade violenta cresceu nas maiores metrópoles nacionais. O Brasil se consolidou nos últimos anos como um dos países mais violentos do mundo.

A taxa de homicídios (total de homicídios dividido pela população em grupos de 100 mil habitantes) é considerada um indicador da violência urbana em geral. São muitos os esforços empreendidos para fornecer uma representação objetiva da violência. Mas o fenômeno segue sendo altamente subjuntivo (como também o é a chamada sensação de insegurança). Será considerado como violência aquilo que em dado momento e em dado contexto um indivíduo ou grupo social assim considerarem.

Sapori e Soares (2014), em recentes pesquisas para responder à questão: Por que cresce a violência no Brasil, apontam para um aparente paradoxo da sociedade brasileira. Primeiro, destacam a peculiaridade do fenômeno no país, comparando o Brasil com dados de nossos vizinhos latinos. Segundo os autores, não há uma onda de violência assolando as sociedades ocidentais. Tampouco há, na América, um crescimento generalizado da violência. O Brasil é considerado duas vezes mais violento que a Argentina, Peru e Bolívia; quatro vezes mais que os Estados Unidos e 11 vezes mais violento que os países da Europa Ocidental. A violência crescente nas cidades brasileiras está relacionada mais a fatores internos do que externos ao país: “O problema está no nosso quintal e não é culpa do vizinho” (p.22).

Os dados oficiais confirmam que o Brasil está se tornando mais violento ao mesmo tempo em que melhoram as condições de vida, particularmente dos segmentos mais pobres, ou seja, o crime e a violência cresceram nas cidades que mais prosperaram e reduziram a desigualdade. E ai reside o aparente paradoxo que intrigou os referidos autores. O que se passa? Eles argumentam que a violência na sociedade brasileira não pode ser compreendida somente pelos fatores econômicos e sociais. O Brasil avançou muito na “questão social” desde meados

40 da década de 1990 e o aspecto mais intrigante dessa dinâmica social é sua simultaneidade com o crescimento da criminalidade violenta. A hipótese dos sociólogos citados é que o crescimento da criminalidade violenta está associado à consolidação do tráfico de drogas nas cidades, combinado com elevados patamares de impunidade (baixo grau de certeza da punição e baixa severidade desta) vigentes no arcabouço legal e com a precária atuação da polícia, da justiça e do sistema prisional. O paradoxo anunciado no início da obra citada é um paradoxo apenas aparente. O argumento que os autores defendem é que a dinâmica da violência urbana não é mera derivação da dinâmica da estrutura socioeconômica. Ou seja, fatores sociais e econômicos contam, mas não determinam os níveis de crimes e de violências. A elevada e crescente incidência dos homicídios na sociedade brasileira é afetada por fatores outros que dizem respeito à consolidação do tráfico de drogas, à persistente impunidade, à gestão ineficiente da política de segurança pública. A pobreza e a desigualdade socioeconômica são apenas o pano de fundo desse fenômeno.

Adorno e Pasinato (2010) apontam que nos últimos 40 anos cresceram os crimes contra o patrimônio e contra a pessoa, em especial os homicídios, associados ou não às formas organizadas de criminalidade, como execuções sumárias praticadas por esquadrões da morte e grupos de extermínio, linchamentos, abuso de força coercitiva praticada por agentes da lei de que resulta, com frequência, em mortes tanto de autores de infração penal quanto de inocentes. Segundo os autores, as instituições estatais legitimadas para enfrentar a violência (a polícia e a justiça) mostram-se cada vez mais incapazes de conter o crime. Somado a isto está a sensação de impunidade no Brasil, que gera uma forte descrença nas instituições da sociedade democrática encarregadas de aplicar a lei e a ordem. Essa crise de legitimidade compromete um dos eixos fundamentais das sociedades modernas: o monopólio estatal da violência.

Estudo a violência do tipo urbana com um recorte bastante específico: a violência urbana diretamente relacionada com a violência praticada por membros do tráfico de drogas de

41 varejo, por paramilitares (milicianos), por policiais, pela criminalidade violenta (praticantes de roubos, furtos e latrocínios) e por acidentes de trânsito.

Referindo-se à cidade de São Paulo, Endo (2005) afirma que qualquer habitante se remete a alguns traços comuns quando se fala das violências desta cidade (mas poderiam ser muitas outras fobópoles Brasil afora: Vitória, Rio, Brasília, Alagoas, São Luis, etc.). A própria vida posta em risco, a convivência com a angústia e com o medo, a morte exposta e nua. Viver sob a experiência cotidiana do medo, repetidamente, impõe, mais a uns do que a outros, o que o autor chama de convivência com o traumático, experiência que se procura evitar a todo custo, ao mesmo tempo em que a faz perdurar. Nesse custo, está incluído o isolamento, o apoio à ação policial dura e a permissividade ao desrespeito dos direitos civis, desde que eles sirvam para evitar uma nova repetição do trauma, ao mesmo tempo em que se criam as condições para a sua reprodutibilidade:

A violência letal é sempre traumática para o psiquismo e o obriga a uma contra-ação que expulse do corpo e do psiquismo sua presença indelével. Isso não só para aquele que foi atingido diretamente por um ato violento, mas muitas vezes para um número imenso de pessoas que gravitam em torno do acontecimento e da vítima (Endo, 2005, p. 287).

Assim, conviver com o (potencialmente) traumático não deixa de ser uma forma de perpetuar as condições excessivas que possibilitam o trauma, de instaurar as condições subjetivas de sua reprodutibilidade, repetindo compulsivamente, o que traumatiza e produz sofrimento. O que é excessivo pode vir à tona nos sonhos traumáticos, nas somatizações, nos relatos de sofrimentos acompanhados por um mal estar difuso, no qual o indivíduo não se dá conta do que exatamente sofre ou o que o incomoda. E, em casos mais graves, o excessivo ao psiquismo pode aparecer na forma de sintomas mais graves, ocasionando o desenvolvimento de psicopatologias, como Transtorno de Estresse Pós-Traumático, depressão, pânico e outras.

42 Costa (2011) aponta que três grandes tendências podem ser observadas na contemporaneidade: a) o aumento dos crimes contra o patrimônio (particularmente roubos, furtos e extorsão mediante sequestro); b) a emergência de novas dinâmicas relacionadas à criminalidade organizada (em especial ao tráfico de drogas e armas) e; c) o aumento dos conflitos intersubjetivos violentos. As estatísticas de homicídios refletem apenas algumas das consequências de uma variedade enorme de conflitos sociais. A violência ganhou visibilidade nas últimas décadas devido ao enorme crescimento da mortalidade por homicídio e da criminalidade nas áreas urbanas, de forma que somos todos impactados pela violência. Mas não da mesma forma nem com a mesma intensidade. Cada vítima (direta ou indireta) da violência reagirá de maneira singular a esta experiência. Voltarei a esta discussão nos capítulos que se seguem.