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Os caminhos da investigação

Momento 4: Teoria da angústia e o desamparo

2.5 Trauma, luto e resiliência

Sabemos, com Freud (após a virada teórica de 1920), que o trauma resulta de uma experiência que traz ao psiquismo, em um curto período, uma tamanha carga de intensidades que é grande demais para ser absorvida. Uma situação traumática pressupõe a ruptura do escudo psíquico de proteção e, correlativamente, a invasão de altas intensidades energéticas, ameaçadoras da integridade narcísica do sujeito. O ego esteve submetido a uma vivência de terror. Os estímulos decorrentes da experiência excederam a capacidade de subjetivação, o que aponta para a relação de cada sujeito com sua própria castração (enquanto inscrição primordial da falta, luto do objeto de satisfação perdido) e que irá definir como essa experiência será, ou não, elaborada, bem como seus efeitos. Aqui falhou o recurso da angústia: não houve possibilidade de preparação para o choque. O fator surpresa não permite que a angústia se instale e “prepare” o sujeito para o choque. Esses seriam, em resumo, os mecanismos envolvidos na neurose traumática. Mesmo nos casos em que não houve a instalação de uma neurose desse tipo, o modelo freudiano nos ajuda a pensar clinicamente nas situações nas quais pacientes (ou participantes de pesquisa) passam por experiências potencialmente traumáticas, como costumam ser as violências e os acidentes.

A maneira de repetir, elaborar e enfrentar (ou não) situações adversas e potencialmente traumatizantes está condicionado ao passado (relativo à constituição psíquica de cada um), ao presente (relações sociais e apoio social percebido e recebido) e ao futuro (projetos de vida) de cada sujeito. A rigor, todos somos sujeitos traumatizados porque a constituição psíquica remete a um trauma que é estrutural e fundante. Algumas experiências vivenciadas durante a vida são potencialmente -, e não necessariamente-, traumáticas. Seriam todas as vítimas de violência

101 urbana pessoas traumatizadas? A resposta é não, ainda que essas experiências tragam um componente que não pode ser elaborado. Para ser traumática, uma experiência ruim necessita acontecer em um momento preciso da vida de um sujeito e ser suficientemente forte para despertar fragilidades internas.

Sobre o conceito de resiliência, retomo-o aqui para articulá-lo com o de luto. Em seus escritos, o já citado psiquiatra Luis Rojas Marcos escreve sobre o potencial da resiliência para superar dificuldades. Para o referido autor, trata-se de uma combinação de elementos básicos inatos, adquiridos e aprendidos, sendo a maior “surpresa” revelada em sua experiência clínica e em seus estudos teóricos, é que a resiliência humana seja algo muito mais comum do que se pode imaginar. O potencial de resiliência está presente na vida das pessoas de uma forma muito mais intensa do que pode parecer. O que começou como uma tentativa de estudar capacidades excepcionais acabou remetendo para uma simples ‘magia ordinária’ (Masten, 2001) que todos temos (em maior ou menor grau). Os “Pilares da resiliência” e os “Mecanismos Protetores Específicos” (Marcos, 2012) são capacidades mais ou menos presentes nas histórias de vida.

Algo semelhante se passa com o luto. Todos passam por processos de luto ao longo da vida e, em geral, as pessoas seguem com suas vidas, com maior ou menor dificuldade. Resiliência e luto, todos temos. No entanto, por que uns passam pelo luto e seguem em frente e outros parecem sucumbir? E é aqui que aparece a capacidade resiliente como importante ferramenta de suporte nos processos de perdas significativas.

Fatores psicológicos e sociais estarão correlacionados no enfrentamento das experiências e saída do luto. A resistência psicológica depende da “natureza da violência sofrida, do histórico de traumas prévios, das características físicas e mentais das vítimas e da resposta do entorno social em que vivem” (Marcos, 2012, p.181). O autor destaca ainda o efeito reparador da ajuda mútua, da confiança em seus pares e da solidariedade na superação (ou no contorno) da experiência potencialmente traumática.

102 Um luto saudável se dá quando as pessoas passam da condição de vítima para a de sobrevivente. E o principal sinal de “estar bem” de um paciente (ou de um participante de pesquisa) é ele conseguir dizer (ainda que sem verbalizar conscientemente): “A vida segue”. E a vida seguir pode ser voltando para trabalho, para projetos, para a religião, para a família. Pode ser ainda a simples associação: a vida segue.

Assim, no consultório ou na pesquisa, a constatação que o sujeito acredita ou afirma que um dia vai voltar a ser ele mesmo ou que ele não vai desistir de ser ele mesmo é um indicativo clínico de (boa) saúde e de uma elaboração suficiente do luto. A esperança ou possibilidade de seguir adiante, retomar ou reestruturar a rotina é um indicativo de “estar bem”. Aqui não se trata do tempo que demora esse retono às atividades, mas sim o percurso de levar a vida adiante. Outro indicativo de que a vida não perdeu o sentido é a capacidade de o sujeito manter ou formular projetos de futuro.

Essa noção remete aos escritos de Viktor Frankl. Para o austríaco, a consciência de que a vida tem um sentido é o que permite a sobrevivência em condições extremas. E este sentido pode ser encontrado no que chamo, nesta tese, de “projetos de futuro” ou no pilar da resiliência “motivos para viver”, proposto por Marcos (2012).

Para ilustrar a questão da esperança no futuro e na busca de sentido, Frankl cita a história de um companheiro de campo de concentração. Este homem sonhou que seria libertado em determinada data. Porém, à medida que se aproximava o dia esperado de ganhar a liberdade, as notícias que recebiam sobre a guerra minavam a esperança de libertação. Em 29 de março daquele ano, o amigo caiu doente com uma febre muito alta. Dia 30 (o dia prometido em sonho), começou a delirar e perdeu a consciência. Rapidamente a resistência se debilitou e suas defesas diminuíram, deixando-o a mercê de uma infecção tifoideana latente. Sua esperança no futuro e sua vontade de viver se paralisaram, e seu corpo sucumbiu vítima da doença. O amigo morreu em 31 de março.

103 Sobre a observação desse caso e suas consequências psicológicas, Frankl está de acordo com uma estatística médica que o campo nazista o fez notar: a taxa de mortalidade semanal durante as festas de Natal de 1944 e o Ano Novo de 1945 superou em muito as estatísticas habituais de mortalidade no campo. Ele acredita que o fato não ocorreu por piora nas condições de trabalho, nem pela diminuição da ração diária de comida; mas pelo fim da esperança que os prisioneiros tinham de serem libertados para as festas de fim de ano:

Os que conhecem a estreita relação entre o estado de animo de uma pessoa (seu valor e sua esperança, ou a falta de ambos) e o estado de seu sistema imunológico compreenderá como a perda repentina da esperança pode desencadear um desenlace mortal. A causa última da morte de meu amigo foi a funda decepção que lhe produziu não ser libertado no dia assinalado (p. 100).

Suas observações in locu o fizeram concluir que os prisioneiros mais aptos a sobreviver foram aqueles que esperavam alguma pessoa ou que tinham a responsabilidade de acabar uma tarefa ou cumprir uma missão. Incluindo ele próprio: quando o prenderam e o deixaram em Auschwitz, confiscaram um manuscrito de livro pronto para publicação (Psicoanálisis y existencialismo, em castelhano). O desejo de reconstruir esse livro, segundo ele mesmo conta, ajudou a superar os rigores da vida no campo nazista. Quando caiu doente de tifus em um campo na Baviera, para vencer os delírios da febre, anotou em pequenos pedaços de papel ideias e palavras-chave para escrever de novo o livro perdido, caso um dia fosse liberado. Quem é, em realidade, o homem? Ele se pergunta. E aponta: É o ser que sempre decide o que é. É o ser que inventou as câmaras de gás, mas também é o ser que entrou nelas com passo firme e sussurrando uma oração (p. 110).

Por outro lado, os indícios que levam a concluir por uma saída mal elaborada do luto e consequente “ficar mal” após sofrer experiências adversas incluem perda do sentido do viver, a falta de uma rotina, a ideação suicida, a negação, comportamentos do tipo fuga, saúde afetada negativamente, falta de cuidados com si mesmo e sentimento de culpa. É preciso destacar que

104 estes indícios podem estar presentes também durante o processo de luto considerado “normal” ou esperado. O que precisa ser obervado aqui é o prognóstico depois de passado algum tempo do luto, que pode variar muito de pessoa para pessoa.

Após sofrer uma experiência potencialmente traumática, dependendo da gravidade da experiência e da constituição psíquica do sujeito, pode ocorrer ainda uma sensação de despersonalização, ou seja, impressão de que a pessoa não é mais ela mesma, além da crença de que as coisas nunca mais serão como antes. De que ela não vai suportar a perda ou de que a vida acabou. Quando este processo não tem fim, o sujeito torna-se um “enlutado crônico” e fica impedido de seguir com a vida.

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3. O caminho depois de percorrido: Sobre a natureza e o processo da