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Os caminhos da investigação

Momento 4: Teoria da angústia e o desamparo

2.3 Recordar, repetir Como elaborar? Sobrevivendo à perda de pessoas próximas por causas violentas

O texto freudiano que inspirou o subtítulo desse capítulo, escrito em 1914a, já continha a noção de repetição. Na clínica do trauma, segundo Freud, o paciente não recordava o que podia ser essencial em sua experiência. Este era obrigado a repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo como algo pertencente ao passado. Como na brincadeira do fort-da, na qual não bastava a verbalização das palavras, era preciso efetivamente atuar, ali, no concreto, para que se pudesse desencadear internamente um processo de elaboração (ainda que elementar).

Segundo o esquema proposto no referido texto (e desenvolvido em 1920, com Além do Princípio do Prazer), a repetição mnêmica do trauma (ou do potencialmente traumático) é uma forma de elaborar essa experiência. Não apenas lembrar, mas repetir para esquecer. A principal diferença teórica entre os dois escritos é que em 1914a, a repetição ainda se caracterizava pelo retorno do recalcado. Já em 1920, passa a ser uma tendência pulsional.

Luto é um processo psicobiológico natural (e, portanto, esperado) diante do rompimento de um vínculo ou de uma perda significativa (Freitas e Michel, 2014) e se encontra entre o psíquico e a cultura. Para a psicanálise, o luto ocorrerá por um objeto perdido, que pode ser uma pessoa, um emprego, um casamento, os arquivos com a versão mais recente de uma tese, etc. Luto é um dos maiores desafios ao equilíbrio psíquico (e também biológico), configurando-se como uma tentativa de reconstrução e de um processo de adaptação às mudanças desencadeadas pela perda. Ainda que seja um processo natural, nem sempre esse trabalho do luto é bem ‘sucedido’ e a literatura especializada aponta alguns fatores individuais (estrutura psíquica do sujeito, vínculo com o objeto perdido, perdas anteriores, apoio social percebido, crenças religiosas, preparação para a perda) e outros externos (circunstâncias da perda e apoio social recebido). Em casos de óbito, o tipo de morte e a causa da morte (com destaque para as causas

87 violentas e por isso inesperadas-, precocidade da morte da vítima etc.), também influenciam no processo do luto.

Nas histórias de vida das vítimas de violência desta investigação, o luto foi instalado pela perda de pessoas muito próximas (filhos, filhas, irmãos, netos, sobrinho e melhores amigos) e, além disso, todas as vítimas diretas eram pessoas muito jovens que vieram a óbito por causas violentas (homicídios e acidente de carro) que são, por definição, mortes evitáveis. Como se estrutura esse luto quando ocorre uma chamada “morte por causa externa”?

Nesses tipos de morte, não há tempo para despedidas, preparações nem pedidos de desculpas. Este tipo de perda remete para nossas próprias vulnerabilidades, sentimentos de culpa (“culpa do sobrevivente”), de impotência, de ambivalência afetiva. Quando perdemos nossos objetos de amor, o que nos resta? Estes fatores, somados, podem ser indicativos de um luto complicado.

“Morte escancarada” é a expressão atribuída por Kovács (2003) para conceituar a morte que ocorre a qualquer hora, solapando as defesas a quem fica exposto a ela. Esse tipo de morte é repentina, invasiva e involuntária (com exceção talvez em alguns casos de suicídio). Seriam mortes escancaradas, portanto, as violências e alguns tipos de acidentes.

Já Luis Rojas Marcos (2012) cunhou o termo “calamidades excepcionais” para definir alguns tipos de experiências que incluem os participantes de guerras, vítimas ou testemunhas diretas de atos humanos de extrema crueldade, acidentes que causam ferimentos graves ou mortes violentas, os estupros, as torturas, sequestros, internações em campos de concentração ou prisioneiros por motivos políticos ou militares. Para o autor, os eventos que mais põem à prova a resiliência humana seriam aqueles que se produzem em condições nas quais as vítimas não podem escapar do verdugo por impossibilidade física ou por imposições legais, sociais ou psicológicas. As calamidades inesperadas, como são as causadas pelos mais diversos tipos de violências, costumam impor um desafio emocional maior que os infortúnios que se antecipam

88 ou que se consideram parte da vida (ibid, p. 37), sendo as mortes imprevistas e prematuras as mais difíceis de encarar.

Alguns estudos versam especificamente sobre mães enlutadas, referindo-se a este luto materno como “maior dor do mundo” (Freitas & Michel, 2014), “Dor sem nome, sem fim e sem tamanho” (Cremasco, Scheinemann & Pimenta, 2013) e a “mãe perde um pedaço de si” (Alarcão, Carvalho & Pelloso, 2008). De fato, em nossa cultura, as relações entre mãe e filho costumam ser de muita proximidade, de um amor quase “visceral”. Na amostra estudada aqui, contudo, é preciso destacar que os lutos paterno e fraterno também foram muito intensos e sofridos.

Já Freitas e Michel (2014) concluem, após revisão bibliográfica sobre o luto, que a literatura não aponta para diferenças significativas na vivência da dor diante de variáveis como tipo de morte ou tempo de perda. Discorrem ainda, em pesquisa sobre mães que perderam seus filhos, que é comum que as pessoas enlutadas reestruturem seu futuro devido aos impactos advindos da perda. Mas não discorre sobre como essa reestruturação ocorre, tampouco sobre os fatores envolvidos.

Adianto que não citarei aqui a obra clássica de Elizabeth Kübler-Ross (Sobre a morte e o morrer, de 1981), por entender que a autora está escrevendo especificamente sobre luto em pacientes terminais, fora do escopo desta investigação.

Em Luto e Melancolia (1917), Freud aborda a questão do luto diferenciando-o da melancolia, sendo dois os destinos clássicos diante de uma perda de objeto: a elaboração do luto (quando a libido volta seu interesse ao mundo externo sem necessidade de interferência terapêutica) ou a melancolia (quando esse processo de luto fracassa). Havendo ainda uma terceira saída, quando da negação radical da perda, que levaria à psicose. Como características do luto e da melancolia, o psicanalista descreve: grande desânimo, inibição de atividades costumeiras, incapacidade de amar, perda do interesse pelo mundo externo, diminuição da

89 autoestima a autoacusações (com sentimento de culpa). Seriam características exclusivas da melancolia a expectativa delirante de punição e a idealização do objeto perdido (mais que no luto). A ambivalência é muito mais intensa nos melancólicos, regida por processos inconscientes. Já o processo de luto se realizaria pelo teste de realidade, com a compreensão de que o objeto está perdido para sempre, começa a direcionar a libido para outros objetos possíveis.

Assim, o luto pela perda, quando não realizado (ou quando mal realizado), se processaria por dois caminhos: o da culpabilidade (depressão) e dos ideais (melancolia). No primeiro caso, teríamos o “luto patológico”, em que as acusações obsessivas tornam-se intensas e se dirigem ao ego do sujeito em forma de acusações severas. Na saída melancólica, que se configura como um caso mais grave, o sujeito não reconheceria a perda e se identificaria com o objeto, internalizando-o, na forma de identificação narcísica. Em resumo, no luto, o mundo se torna pobre e vazio. Na melancolia é o próprio eu que se esvazia e a “a sombra do objeto que recai sobre o ego” (Freud, 1917, p. 254). Nesse mesmo artigo, Freud explica como a pessoa enlutada concentra boa parte de sua libido no objeto perdido e este a fenômeno chamou investimento libidinal. O principal comportamento associado a este investimento é o afastamento das atividades normais da vida. Se as coisas saem bem e o trabalho de luto ocorre da maneira esperada, pouco a pouco a pessoa enlutada vai conseguindo retirar sua libido do objeto perdido e vai investindo em novos objetos. Importante dizer que Freud não considerava o trabalho de luto uma condição patológica.

Quaisquer que sejam as saídas possíveis, o processo de luto é um processo marcado por intensa dor. É preciso interiorizar a perda e isto supõe um trabalho psíquico muito exaustivo. Apesar de o senso comum proferir que “o tempo cura tudo” ou que “com o tempo passa”, ainda que tenham se passado muitos anos, o registro desse tempo é diferente do registro consciente. Com Freud, sabemos que o inconsciente é atemporal e não reconhece o tempo cronológico. O

90 passar do tempo pode (ou não) ajudar a dar sentido ou a ressignificar as experiências. Mas a perda de um objeto de amor será sempre uma perda difícil de “dar conta” porque, diferentemente de um simples esquecimento passivo, o luto é um esforço que exige a lembrança para que seja possível o “esquecimento” (no sentido de seguir com a vida). É preciso lembrar para esquecer.

Mendlowicz (2000), apoiada na teoria do luto freudiana, propõe em seu artigo outras saídas possíveis para o luto além dos destinos apontados por Freud (a elaboração, a depressão ou a melancolia). A autora descreve um estudo de caso de uma paciente que a possibilitou concluir por outras formações de compromisso diante de um luto mal ou pouco elaborado. O processo de luto pode envolver qualidades inconscientes sem, necessariamente, terminar em melancolia. Sua experiência clínica e investigativa a fez concluir que a perda de uma pessoa amada pode fazer emergir outros tipos de perturbações psíquicas além do quadro melancólico. Como exemplo, cita casos em que a introjeção de um morto que se quer vivo é uma solução de compromisso que provoca intensa angústia e que pode induzir à morte. O morto transformado em morto-vivo provoca uma intensa angústia que não está vinculada nem à ambivalência, nem à culpa, mas sim ao desejo de se unir ao objeto, à impossibilidade de se separar dele, e ao mesmo tempo, ao terror que essa união significa: a nossa própria morte.