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1 REMEMORAÇÃO/COMEMORAÇÃO: PROCEDIMENTOS DE FAZER CRER

1.2 A visibilidade material no discurso urbano

Queria, porém, que Rodrigo Cambará fosse parecido, mas não idêntico a Sebastião Veríssimo. Teriam ambos em comum a sensualidade, o amor à vida, a bravura, a generosidade, a vaidade à flor da pele, auto-indulgência e a mágica capacidade de fazer dos homens amigos fiéis até o sacrifício e das mulheres amantes apaixonadas (p. 304).

Nesse trabalho, entendemos que a visibilidade material no discurso urbano no funcionamento discursivo da rememoração/comemoração, como prática discursiva resulta de procedimentos discursivos que “fazem-ver” o objeto do discurso, constituindo-o como uma memória aparentemente saturada. Sustentamos nossas posições em De Certeau, para o qual a citação é um desses procedimentos e funciona na sustentação de um discurso, pelo jogo que se realiza em relação àquilo que o outro supostamente crê. É, portanto, um meio para que se institua o “real” e a credibilidade para os simulacros produzidos nos lugares que atualizam o dizer e invadem a FD da rememoração/comemoração.

Outro procedimento de “fazer-crer é a definição, que assim como a citação é um procedimento que produz efeitos de verdade e de autoridade em relação ao objeto do discurso. Esse procedimento é fundante do discurso sobre, especificamente quando a temática é rememoração/comemoração e quando o seu objeto é idealizado e, por isso conhecido, e valorizado pelos sujeitos urbanos, como já enfatizamos em relação a Érico Verissimo e à constituição do imaginário urbano. O mesmo podemos dizer em relação ao funcionamento do escritor cruz-altense, como sujeito imaginário, que atende à demanda dos sujeitos da cidade.

As palavras de ordem constituem-se pela recorrência, nesse discurso, e levam a “crer” pela repetibilidade de enunciados, que utilizam o modo deôntico de dizer, característicos do discurso marcado pelo tom doutrinário, em que o sujeito

porta-voz assume a responsabilidade pelo que é dito, assegurando “autoridade”, contribuindo, no discurso urbano, para a veiculação de imagens e de objetos culturais. Referendamos nesse funcionamento o lugar de memória, que guarda vestígios do passado e sustenta o que é dito.

A seguir desenvolvemos alguns conjuntos de evidências de “fazer-crer”, entre quais as destacamos a visibilidade dos objetos e a possível saturação do discurso.

Pêcheux (1997a) emprega o termo evidência para falar de ideologia, de interpelação e “efeito Münchhausen” e a toma como “sintoma” de uma verdade local, que apaga o já significado e expõe o óbvio. Nesse sentido, a cidade de Cruz Alta é o espaço discursivo, a partir do qual o discurso de rememoração/ comemoração em torno de Érico Verissimo pode ser lido/interpretado/compreendido87 num processo contínuo de atualização em que a memória constitutiva (arquivo) e a memória formulada parecem recobrir-se, como se não houvesse possibilidade de o sentido deslizar e nem de ser outro. Os efeitos de evidências constituem, no discurso, uma aparente saturação, decorrente do “efeito de realidade do pensamento” - expressão com a qual Orlandi (2001a, p. 7) refere-se aos lugares das idéias - do trabalho da ideologia e do inconsciente. Esse efeito de realidade sustenta-se no fio do discurso pelo valor de verdade88.

A primeira evidência materializa-se pelas placas, estrategicamente colocadas em todas as entradas da cidade. Nelas, as pessoas que chegam podem ler: Cruz

Alta: bem-vindos à terra de Érico Verissimo. Essa placa constitui uma materialidade

que leva os sujeitos “a crer”, porque estão vendo. Ela funciona como um discurso de rememoração – discurso de - que sustenta os demais discursos sobre o escritor. Essa placa representa, nesse discurso, “aquilo que se mantém”, segundo Orlandi (2002 a), e que, de acordo com Courtine (1982), faz corresponder uma seqüência discursiva a um domínio de memória. É a partir desse enunciado que o espaço urbano delimita suas fronteiras. A placa (figura 4) é um exemplo de instrumento de “fazer crer”, especificada por De Certeau (1994).

87 Orlandi (2002, p. 26) diferencia inteligibilidade/interpretação/compreensão. Para ela, o inteligível diz

respeito ao que está no fio do discurso (basta saber ler), o interpretável considera o co-texto (as outras frases) e o contexto imediato e a compreensão implica saber como um objeto simbólico (texto, enunciado...) produz sentidos, saber como as interpretações funcionam, permitindo a escuta de “outros sentidos”.

88 Utilizamos a expressão valor de verdade numa referência à coerção de ordem externa “vontade de

Figura 4 – Fotografia da placa que se encontra na entrada da cidade de Cruz Alta – 2004. Essa evidência tem o efeito de sentido de uma informação referencial, institucionalizada, cristalizada. Isso faz com que esse discurso entre na ordem do discurso, de acordo com Foucault (2004a)89, e funcione no discurso de

rememoração – discurso de - como o repetível, que sustenta, legitima e articula os discursos da cidade sobre Érico Verissimo. O enunciado “Terra de érico Veríssimo” retorna em outros textos, mas o efeito de sentido não é o mesmo, uma vez que as condições de produção, a circulação e a recepção são distintas em cada retorno. Além disso, esse enunciado estabelece os limites entre o que a cidade possui, como

maior bem cultural a ser dividido com todos 90, e que as demais cidades não

possuem.

À medida que entramos no espaço urbano de Cruz Alta, aquela que chamamos de primeira evidência, vai sendo reforçada. Destacam-se, como segunda evidência, as diferentes materialidades discursivas que sustentam a informação referencial, resultando no efeito de que as palavras e as coisas, ilusoriamente, correspondem-se. O discurso de rememoração/comemoração da cidade é uma prática discursiva de constituição de um imaginário urbano, no caso, Cruz Alta em torno de Érico Veríssimo e constitui-se de diferentes materialidades, suportes que

89 A expressão “ordem do discurso” refere-se ao que faz com que um texto ou discurso entre nessa

ordem, que segundo Foucault, passa pelo saber e pelo poder. Orlandi (1996) utiliza a mesma expressão – ordem do discurso – mas em seu texto essa ordem diz respeito à constituição do discurso pela relação da língua na história.

90 Esse é um dos enunciados do nosso corpus e uma das designações de Érico Verissimo no

em sua circulação fazem sentido para diferentes sujeitos do espaço urbano, significando igualmente de modo diferente. O escritor é sempre descrito, definido e interpretado positivamente. Isso faz com que se institucionalize como o nome que foi, e continua a ser, a grande personagem da cidade.

As palavras e as coisas na obra de Foucault (1992), apesar do título não

refere à simetria entre as palavras e seus referentes. Há o deslocamento do sentido para a prática discursiva, em que não há aproximação entre os objetos do mundo e as palavras pelas quais são nomeados. A relação entre as palavras e os seus referentes é denominada por Orlandi (2004b, p. 99) de conteudismo. Trata-se da prática relacionada ao verdadeiro e ao falso, em que interessa saber o que o sujeito quis dizer. Na análise na perspectiva discursiva, entretanto, pensamento/linguagem/mundo não se correspondem termo-a-termo, pois não existe relação natural entre as palavras e as coisas. Os procedimentos utilizados para “fazer-crer” simulam a similaridade entre as palavras e as coisas no discurso, em que o “conteúdo”, além de “fazer-crer” também “faz-ver”.

A visibilidade material como procedimento de “fazer-crer” pode ser observada nos textos de rememoração/comemoração91, cujas materialidades não se

constituem somente pela linguagem verbal (enunciados e slogans), mas também, por enunciados-imagem (imagens, cores, prédios, nomes de rua, etc.). No espaço urbano de Cruz Alta, a constituição do Érico Verissimo imaginário decorre de procedimentos de “fazer-crer”, que dão visibilidade material a ele no museu Érico Verissimo; no projeto imobiliário que nomeou vários prédios da cidade com o seu nome, com o nome das personagens de suas obras e com o nome das próprias obras; na veiculação de chamadas pela TV local, cujo slogan é Cruz Alta, terra de

Érico Verissimo; na renomeação da praça central e de ruas e alamedas para

homenageá-lo. Esses textos circulam em lugares distintos e constituem-se de diferentes materialidades: placas, prédios, espaços públicos (ruas, praça, etc.).

A terceira evidência funciona como reforço a essa segunda evidência e se materializa nas deferências à família do escritor e a ele mesmo, e se realiza em forma de homenagem à família: em 1994, Mafalda Verissimo recebeu o título de cidadã cruz-altense, apesar de viver em Porto Alegre, desde 1932, Abeghay

91 No anexo 5, do DVD, encartado nesse trabalho, podemos observar a visibilidade dada ao escritor

pelos prédios que referem a ele, pelo nome da praça e escola com o nome da professora de Matemática, referida no texto autobiográfico.

Verissimo, mãe do escritor, mesmo tendo se mantido distante da vida política e social da cidade, é nome de uma das vilas da cidade. Além disso, o escritor é rememorado/comemorado em letras de músicas apresentadas nos Festivais Nativistas da cidade.

A quarta evidência, que sustenta as demais é a instituição do ano de 2005, ano do centenário de nascimento do escritor, como acontecimento histórico na cidade e no Estado do Rio Grande do Sul. Germano Rigotto – então governador do Estado – através de decreto instituiu esse ano como dedicado a Érico Verissimo – o ano para comemorá-lo. Essa quarta evidência é particularmente importante na análise do discurso de rememoração/comemoração na cidade de Cruz Alta sobre o Érico Verissimo, que é, nesse discurso, da ordem do imaginário por duas razões.

A primeira razão diz respeito à constituição do discurso de rememoração/comemoração como um acontecimento discursivo, pela res- significação do sujeito-objeto no espaço urbano no ano da comemoração do centenário do seu nascimento, quando em alguns textos há uma ruptura na ordem do repetível, possibilitando a instauração de novos sentidos. Esse acontecimento foge à regularidade do discurso e se constitui no entrecruzamento de memórias. A segunda razão relaciona-se à sustentação dessa memória em uma mesma rede de memória de discursos anteriores, que atualizam a memória de Érico Verissimo e os discursos desencadeados pela rememoração/comemoração, como acontecimento que rompe com a linearidade e faz deslizarem os sentidos. O que parece estabilizado pelo conjunto de evidências como memória histórica, passa por renovações contínuas, apontando falhas, rupturas e a possibilidade de novos sentidos, mesmo quando as evidências de completude e de saturação apontam para o mesmo, sem espaço para o diferente.

A responsabilidade pelo desenvolvimento do projeto de rememoração/comemoração do centenário do escritor ficou a cargo, no ano de 2005, de três universidades gaúchas: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Esta última ocupa lugar de destaque porque desenvolve o projeto que inaugura as comemorações do centenário do escritor – identificando-o como filho ilustre de Cruz Alta - e porque assume a administração do museu, no ano de 2004, após a morte de Mafalda Veríssimo, até então curadora do acervo do museu. Isso mostra que o discurso de rememoração/comemoração é da

ordem do privado, isto é, realiza-se a partir da casa e destaca as relações do sujeito- objeto a uma rede social sem compromisso com as normas ou com o ideológico. Nesse funcionamento, de acordo com DaMatta (1997), o domínio da rua constitui-se o lugar onde o sujeito é tomado pelas instituições, e é por elas determinado. Os objetos transitam da casa para a rua e representam, na ordem do simbólico, o objeto celebrado/comemorado e constituem-se pelas instituições sob a égide do sujeito jurídico.

Érico Verissimo é o objeto tomado como referente nos discursos de rememoração/comemoração no ano do centenário. Esses discursos trazem para a atualidade o passado, rememorando fatos e acontecimentos que dizem respeito a ele pelo discurso de – discursos de rememoração. As comemorações constróem uma cena discursiva que atualiza saberes, fomenta discussões, possibilita que o mesmo dizer signifique diferentemente, pela ruptura com o mesmo. Podemos acrescentar, nesse primeiro conjunto de evidências, a quinta evidência: Cruz Alta é referência quando se trata de Érico Verissimo, apesar do pouco tempo que ele viveu na cidade. Isso acontece porque o discurso da cidade sustenta um discurso que desliza entre o privado e o público (a história de sua vida na cidade e sua trajetória como escritor), mostrando-o como um sujeito imaginário.

As visibilidades materiais constitutivas do “fazer-crer” nos encaminham para a constituição do sujeito idealizado, que pelos traços de identificação aproxima-se dos sujeitos do espaço urbano e dos sujeitos interpelados pela FD da rememoração/comemoração em relação aos espaços de memória que eles convocam e fazem funcionar.

2 LUGAR DA ORGANIZAÇÃO E REPETIÇÃO DE TRAÇOS