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4 EFEITO DE ESPELHAMENTO E IMAGINARIO URBANO

4.1 O homem do espelho vai às vilas

Antes de ir para a cama, à hora de escovar os dentes junto da pia, encontrei o Outro no fundo do espelho e interroguei-o com o olhar. “Puxa pela memória homem” – respondeu-me ele – “nos teus 20 anos achavas que psicologicamente D. Bega não havia ainda cortado o cordão umbilical que te prendia a ela”... (p. 347)

O Poder Público Municipal planejou e executou, atendendo a interesses institucionais do espaço urbano e da rememoração/comemoração, como lugar de memória e FD dominante, a constituição do museu. Nesse sentido, “trabalhou” para a “criação de sujeito que atendesse à demanda do espaço urbano”, colocando-o em cena no momento em que a cidade perdia espaço para as demais cidades da região e que isso aconteceu quando a cultura do trigo que representava a “fecundidade da terra gaúcha”98 entrou em franca decadência e acabou aprofundando as diferenças sociais. Érico Verissimo, filho da terra, escritor de sucesso, membro de família tradicional ocupa esse lugar. Esse processo, no entanto, ocorre aos poucos, como podemos ver no documentário de inauguração do museu99.

Inicialmente, Cruz Alta era comemorada como a “terra de”, porque nela promoviam-se os “reencontros”. Somente depois da morte do escritor, em 1975, as comemorações em torno do seu nome iniciaram como discurso sobre, que num movimento cíclico da memória passou a discurso de, fazendo funcionar eixo da formulação a rememoração/comemoração. Nesse período, institucionalizou-se o

slogan “Cruz Alta Terra de Érico Verissimo” e foram colocadas placas em todas as

entradas da cidade, identificando-a como a “terra de”.

No ano anterior ao centenário de Érico Verissimo (2004), houve uma ruptura no cenário político da cidade de Cruz Alta. A estabilidade rompe-se e instauram-se novos sentidos. De acordo com as memórias de Érico Verissimo, a cidade sempre foi “um burgo republicano”, isto é, estava do lado da ordem instituída e continuou assim. No entanto, em 2004, o Partido dos trabalhadores (PT) venceu o pleito municipal e assumiu a prefeitura em 2005. Com isso, o Érico Verissimo rememorado/comemorado até então não é mais o mesmo: o poder público acrescentou ao personagem outros valores, relacionados à ideologia do Partido. Dois acontecimentos marcam esse novo período: a primeira é a retomada da

98 Cf. anexo 1, capítulo 2, do DVD.

99 Anexo 1, capítulo II do DVD, encartado nesse trabalho e que analisamos no capítulo 2, item 2.1

administração do museu pelo município, em 2005 – ano do centenário. A segunda foi o redirecionamento nos ritos de rememoração/comemoração do centenário do escritor, aproximando o sujeito rememorado/comemorado dos sujeitos/cidadãos que não se identificam com os valores representados pela Universidade, porque estão fora dela, constituindo aqueles que Orlandi define como o “excesso”, como aqueles que se caracterizam por ocupar o não-lugar, mais precisamente, como os sujeitos que ocupam as vilas e periferias da cidade e ficam nas margens.

Podemos dizer que houve um deslocamento na circulação e formulação dos textos advindos do Poder Público Municipal em 2005. A universidade divulgava o centenário e o escritor através de folders, outdoors e publicações nos jornais (Diário Serrano e Zero Hora, este último de circulação estadual, também por meio de espetáculos teatrais apresentados nas cidades vizinhas, conforme texto (fig. 7). Esse material de divulgação não atinge igualitariamente aos sujeitos da formação social: os cidadãos que vivem nas vilas não têm acesso a ele, e por isso, ficam alheios aos ritos comemorativos. O poder Público, em parceria com a empresa de transportes Urbanos Nossa Senhora de Fátima colocou em dois ônibus da sua frota um painel com uma imagem de Érico Verissimo e enunciados que remetem à obra O Tempo e o Vento, (conf. fig. 11). O deslocamento a que nos referimos é que o sujeito que constitui o imaginário urbano sai do papel e vai para a vila. Os sujeitos/cidadãos da periferia podem vê-lo e “se ver” na imagem dele, que os representa, não mais como filho de família tradicional e rica, mas como o maior

contador de histórias. O enunciado que recortamos é então:

Este é nosso maior contador de histórias

Esse enunciado representa um deslocamento importante, pois Érico Verissimo, como objeto de rememoração/comemoração, vinha sendo até então, representado pela sua relação com a Casa, nos termos em que DaMatta a relaciona aos privilégios advindos das relações familiares. A partir desse deslocamento alcança as ruas - espaço público – e passa a ser representado como “cidadão”, como aquele que está sujeito ao exterior, o que está fora da casa, o exterior. O pronome “este” constitui, junto com os enunciados-imagem que retoma o escritor (imagem e assinatura, f. 11), o efeito de sentido de presença, de reforço, de participação, de pertencimento.

Nos textos veiculados pela Unicruz, o escritor representava o intelectual, sempre com os óculos ou uma caneta, na mão, e às vezes, acompanhado da máquina de escrever. Nesse enunciado-imagem, ele não tem nenhum objeto na mão que o inscreva aos domínios da intelectualidade. Por esse enunciado constitui- se a simulação de um “olhar” sobre o espaço urbano. Esse efeito de presença ocorre também pela altura do ônibus e pelo local onde está o texto: no vidro de trás do ônibus. É como se Érico Verissimo estivesse sempre “vendo” os conterrâneos e eles estivessem “se vendo nele”, materializando o efeito de espelhamento, que se repete também em outras materialidades discursivas.

Além do “este” e dos enunciados-imagem constituídos pela fotografia e assinatura, destacamos o a designação “O contador de histórias”. Ser contador de histórias não significa ser erudito, pelo contrário, o “contador” aproxima-se dos sujeitos-interlocutores. As histórias “contadas” remetem ao popular pela estrutura simples e pela aproximação com a oralidade. É o falar do povo. Esse enunciado aproxima o escritor das camadas populares e faz irromper no fio do discurso a história da cidade, aproximando-a das cidades fictícias de O Tempo e o Vento, especialmente de Santa Fé.

Essa aproximação ocorre pelo atravessamento do discurso por outros discursos. Esse efeito decorre do funcionamento do interdiscurso pelo efeito do discurso transverso em que discursos se atravessam e fazem retornar os valores constitutivos do gaúcho, o qual está representado ficcionalmente na trilogia em que a saga da família Terra-Cambará participa de acontecimentos históricos que envolvem o Rio Grande. Por esse atravessamento são representados alguns fatos da história do Rio Grande do Sul, como traços de identificação entre os sujeitos ficcionais e os sujeitos da cidade. A entrada da obra ocorre pelas palavras:

Esses dois sintagmas remetem à obra, e nesse texto, definem o escritor, constituindo traços ideológicos que relacionam o partido político que administra a cidade e os sujeitos/cidadãos urbanos, especialmente os da periferia. Observemos os enunciado constitutivos dessa materialidade:

Nesses enunciados funcionam outras memórias, que se inscrevem em outros espaços discursivos e encaminham para a naturalidade, o toma lá dá cá do mundo empírico, mas que faz sentido para os sujeitos que se contra-identificam com os rituais desencadeados pela rememoração/comemoração, como lugar de memória e como FD dominante, que dão visibilidade a valores que não os constituem. Para eles, a memória do escritor representa o que eles não têm, mas gostariam de ter: prestígio, riqueza, sucesso.

A contra-identificação ocorre, porque nesses segmentos da formação social, o sucesso é visto como natural para os filhos de famílias tradicionais, e impossível de ser alcançado pelos segmentos menos favorecidos socialmente. Essa reflexão permite pensar que “todos”, designados pela UNICRUZ (Fig. 6), inclui os sujeitos da que se identificam com a cultura escolarizada e têm acesso ao “mundo da escrita”. Vemos aí, outra vez, o funcionamento do sujeito desejante, que se constitui pelo efeito de espelhamento, isto é, os sujeitos vêem no outro o ideal de eu. Mas o que eles vêem no espelho (ônibus) é uma figura de serenidade, de perenidade, de liberdade e de imortalidade. Esses valores constituem o escritor como objeto a e

objeto do desejo dos sujeitos que se filiam à FD da rememoração/comemoração,

que é nesse discurso o lugar de memória no discurso como prática discursiva. Não se trata de uma falta materializada, mas daquilo que o personagem (Érico Verissimo) representa.

O discurso de – a rememoração – remete à dimensão não-linear do dizer, ao interdiscurso e retoma o lugar do já-dito e significado em outro tempo e lugar. Nesse sentido, dizemos que o discurso de, é da ordem do mais inconsciente, porque não há como controlar os espaços de memória que ela trabalha e os espaços de memória que convoca. Ela estabiliza o dizer, mas ao linearizar-se no fio do discurso, como discurso sobre, ancora-se em uma memória anterior e aí e as repetições instauram a polissemia, o novo, o diferente no mesmo. O discurso sobre, mesmo

sendo da ordem do mais consciente, constitui-se na tensão entre o já-dito do interdiscurso e o dito no eixo da formulação. O dizer re-inscreve-se no intradiscurso pelas filiações interdiscursivas. Essa re-inscrição é determinada pelos domínios de memória por meio dos lugares, que atualizam a memória discursiva e facilitam a interpretação/compreensão da materialidade textual como discurso. Dizemos que quem assina o texto responde pelo que é dito, mas não pelos sentidos instaurados, esses resultam do trabalho da memória discursiva, lugar de funcionamento da memória e da atualidade.

Há três inscrições nesse texto (fig. 11): a Empresa de Transporte Urbano, a Administração do Município e a Coordenadoria Municipal de Cultura. Esses lugares são sobredeterminados pela “Administração 2005-2008”. O brasão oficial do município de Cruz Alta funciona como marca de responsabilidade pelo que é dito, e traz para o fio do discurso a cidade como instituição, como um órgão independente de partidos políticos. Não há a inscrição do Partido dos Trabalhadores no discurso. No entanto, pelo funcionamento do pré-construído como discurso transverso, irrompem discursos vindos de outros lugares, que se filiam ao redirecionamento dos ritos comemorativos à ideologia do Partido Político, que assumiu a administração municipal. Por esse discurso, que irrompe no eixo da formulação, o pré-construído pelo efeito do discurso transverso a memória que recobre os governos e as ideologias dos governos populares irrompem no fio do discurso, especialmente pela inclusão das camadas populares e na defender do direito delas terem acesso aos bens culturais. Nesse sentido, Érico Verissimo vai às vilas, enquanto objeto cultural, que é. Quando o discurso tem origem na universidade, esse bem cultural é de outra ordem e não afeta a todos igualmente, como destacamos anteriormente.