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3 MATERIALIDADES NÃO-VERBAIS: DIFERENÇAS E APROXIMAÇÕES

3.1 Discurso e funcionamento do enunciado-imagem

O discurso de rememoração/comemoração não se constitui somente de enunciados verbais, mas também de um mobiliário em torno do objeto de rememoração/comemoração e de imagens, que chamamos aqui de enunciados- imagem, face a seu funcionamento no discurso. Para trabalhar o enunciado-imagem, buscamos sustentação teórica em Durand (2004), Eliade (1991) e Davallon (1993, 1999). Na perspectiva discursiva, ancoramo-nos em Pêcheux (1995), Henry (1992), Orlandi (1995, 2001c, 2002) e Silveira (2004), assim como em textos de analistas do discurso que têm promovido estudos que contemplam nuances imagéticas, principalmente aqueles que enfocam o imaginário urbano, em textos veiculados pela Revista Rua, entre os quais destacamos Souza (2001).

No discurso de rememoração/comemoração, como prática discursiva de constituição de um imaginário urbano (de Cruz Alta) em torno de Érico Verissimo, há enunciados-imagem que representam o escritor: a imagem da porta do Museu, a casa em que ele nasceu (museu), sua assinatura junto às suas fotografias ou as cores do museu. No intradiscurso, esses enunciados-imagem têm o efeito de sentido de uma presença na ausência, pois retomam o mesmo referente (o escritor), que não significa da mesma forma em cada ocorrência. Eles constituem simultaneamente a enunciação e a materialidade do suporte e significam por sua relação com a exterioridade, com a história.

Chamamos de mobiliário urbano o museu, os prédios com o nome de Érico Verissimo, de suas obras e de seus personagens, a Praça Érico Verissimo, a placa na entrada da cidade e as ruas que levam o seu nome ou de sua família. Eles dão visibilidade a ele no espaço urbano. Concebemos o mobiliário como um dos procedimentos de “fazer-crer”, que se conjugam com o “fazer-ver”, nos termos de De Certeau (1994). Entendemos que esses procedimentos estruturam e constituem e espaço da cidade66 no que Orlandi (2004c) denomina de ordem e organização, quando diferencia cidade e espaço urbano. Palavras de ordem mantêm Érico Verissimo como memória a partir da relação dos enunciados-imagem com o dever

fazer e o poder fazer, que caracterizam os textos, os quais funcionam a partir de

enunciados que objetivo “fazer-ver” como “fazer” para rememorar e comemorar e, essencialmente como constituir a memória que sustenta o discurso de rememoração/comemoração.

Orlandi (2004c) reflete acerca das imagens sobredeterminadas pelo componente verbal na análise do discurso urbano, no qual o verbal e o não-verbal constituem o evento discursivo67. Nesse sentido, as imagens sem o componente verbal perdem o significado, tornando-se imagem pura, que resulta na transparência, no apagamento do sentido histórico e cultural, pois o lingüístico funciona como marca do sujeito (posição) na materialidade imagética, contribuindo para o controle dos sentidos. Nessa mesma direção, Davallon (1993) refere-se à relação entre o não-verbal e a enunciação. Há que se considerar o lugar da materialidade, a circulação da imagem, e a sua relação com o suporte a fim de interpretá-la. As imagens representam o mundo exterior, o qual significa em relação a uma interioridade, à memória. Nesse sentido, a materialidade e o suporte em que a imagem circula são relevantes para a constituição do sentido. Os enunciados- imagem constituem-se por redes parafrásticas e repetem o mesmo, mas rompem com a linearidade do discurso, promovendo a ruptura e o estranhamento.

Isso se deve à tensão entre o mesmo e o diferente, entre a paráfrase e a polissemia. Afirmamos na esteira de Souza (2001), que a imagem cumpre primordialmente duas funções: uma como cenário e outra como linguagem. Como cenário tem uma função ilustrativa. Na perspectiva discursiva, dizemos que é um

66 Cf análise realizada na terceira parte do nosso texto (cap. 1).

67 Aproximamos evento discursivo de texto, não como documento, mas como discurso, segundo

processo de natureza parafrástica, em que algo se mantém pela repetição, constituindo a memória discursiva que atualiza os dizeres. No entanto, a tradução de uma imagem pelo verbal dá espaço ao silêncio e possibilita o não-dizer, que é constitutivo do sentido e pode desencadear outros sentidos, constituindo o diferente, o polissêmico.

Henry (1992, p. 173) ao se referir ao funcionamento da imagem em relação à linguagem e ao simbólico, salienta que a imagem não tem sintaxe, mas uma morfologia. Ela não se fragmenta em unidades sintáticas, mas supõe o verbal, o simbólico. Pelo investimento do simbólico, o sentido pode constituir-se como o mesmo ou como o diferente.

Como discurso, a imagem significa pelo interdiscurso, que segundo Courtine (1982), num processo incessante de reconfiguração, organiza o saber de uma FD, em função das posições ideológicas representadas por ela, em uma conjuntura determinada. Nessa direção, incorpora os elementos do pré-construído que se produzem no exterior do discurso e organizam a repetição por meio do retorno de imagens (vistas como enunciados) e, provocam, eventualmente, apagamentos, esquecimentos e, às vezes, a denegação. Nesse funcionamento, uma mesma imagem, assim como os enunciados verbais, retorna em diferentes formulações, fazendo migrar saberes de uma FD a outra, num movimento que determina os saberes e os sentidos.

Nos textos que compõem o corpus desta tese, a imagem não tem função meramente ilustrativa, de figura. Priorizamos seu enfoque como linguagem, buscando na formulação, um possível discurso outro. Partimos da hipótese de que a imagem, como materialidade, comporta um processo imaginário em que um sujeito A projeta um sujeito B. A partir dessa projeção o dizer encaminha-se para determinada direção e para sentidos outros, dependentes das condições de produção do discurso.

A repetição constitutiva das redes parafrásticas, tanto nos enunciados-verbais como nos enunciados-imagem, instauram regularidades e a manutenção do sentido. A diferença entre um e outro está na organização das regularidades. Os saberes mobilizados, tanto em um como em outro enunciado, remetem a uma estrutura horizontal que corresponde ao intradiscurso, à linearização da memória. Nele, o dizer encontra-se materializado pela forma que o enunciado tomou no discurso pela linearização e sintagmatização.

A estrutura vertical – interdiscurso – sinaliza a existência anterior do enunciado formulado na estrutura horizontal e sua inscrição, também anterior, a um domínio do saber. De acordo com Pêcheux (2002), tanto em um eixo como em outro, os saberes remetem à noção de estrutura, pela repetição que se instaura no eixo da formulação, na simulação intradiscursiva de um evento de linguagem. Ainda segundo Pêcheux, esse ponto de encontro entre memória e atualidade é o que se chama ‘acontecimento’, momento em que o sentido desliza e instaura o novo. Desse modo o enunciado-imagem possui uma estrutura interdiscursiva, que se inscreve no intradiscurso pela repetição e instaura o efeito memória, que de acordo com Indursky (2003) atualiza e ressignifica esses enunciados.

A mesma autora, ao se referir ao rompimento com a repetição, remete à importância dada às imagens desacompanhadas de enunciados verbais, apontando que é imperioso observá-las. Diante disso, afirmamos: as imagens quando analisadas discursivamente relacionam-se a uma anterioridade e a uma exterioridade comprometida com o sentido. Para Davallon (1999) as imagens, que se repetem, funcionam como operadores de memória social. Estabelecem relação entre uma FD e outra, entre um texto e outro, e entre um e outro discurso, ligando-se a condições de produções de várias ordens. As imagens, assim como os significantes verbais – as palavras – comportam sentidos atualizados pela memória discursiva e pela relação do sujeito com a ideologia e com o inconsciente. Funcionam, nesse sentido, os esquecimentos constitutivos do sujeito, como referimos anteriormente.

Queremos, com isso, reiterar que o texto verbal e o não-verbal constituem-se, tanto um, como o outro, como eventos discursivos, que significam em sua relação com a história, não como dados, mas como historicidade68. A diferença existente

entre eles restringe-se ao eixo da formulação, especificamente à forma material. No texto verbal, as palavras e os enunciados formam uma rede de significância para compor o discurso e, no texto não-verbal, os enunciados-imagem exercem a mesma função, significando pelo silêncio, que funda e constitui sentido69.

Isso significa que as duas materialidades discursivas linearizam-se no eixo da formulação por enunciados e por proposições que vêm de outros lugares e

68

Cf. Orlandi 2004b).

69 Para aprofundar a noção de silêncio como movimento de sentidos remetemos a Orlandi (2002).

Nesse texto a autora destaca as várias formas de sentido do silêncio e o significado de cada um destes modos de silenciar e significar.

inscrevem os sujeitos do discurso em FD’s heterogêneas e a outros domínios de saber. Nessa perspectiva, o sentido sempre pode ser outro e uma das razões disso é a posição ocupada pelos sujeitos enunciadores, os quais enunciam de diferentes lugares e, conseqüentemente, identificam-se a FD’s abertas a saberes de outros domínios, pelo atravessamento de discursos anteriores. Esse funcionamento provoca rupturas, estranhamentos e novos acontecimentos discursivos.

Ocorre o mesmo quando se trata de um texto-não verbal constituído por enunciados-imagem. O significante que o materializa não está representado por signos verbais, mas por imagens, que afetadas por não-ditos, por silêncios, por pertencimentos trazem para a atualidade sentidos já-dados pelo interdiscurso pelo funcionamento do pré-construído como discurso transverso. Nem por isso, esses sentidos são fechados a investimentos de outros discursos. Os enunciados-imagem ao se inscreverem na atualidade, como eventos discursivos significam diferentemente, pelo funcionamento da memória discursiva e pela inscrição em FD’s heterogêneas, que as habitam. Os sentidos atualizam-se por procedimentos mobilizados diferentemente em cada discurso.

O silêncio funciona nos textos verbais e não-verbais e isso significa que o dizer e o não-dizer/não-mostrar relaciona-se à história e à ideologia. É justamente pela historicidade inscrita no texto que se pode “olhar” o silêncio e ver nele a ausência que significa. De acordo com Orlandi (2002c), há, então, um silêncio nas palavras e nas imagens, um não-dizer que constitui o processo discursivo. Existe um sentido no silêncio, que significa nele mesmo, não como complemento da linguagem, mas como constituição de um evento discursivo. Desse modo, instaura efeitos de sentido sempre distintos.

Nesse sentido, Orlandi (2002b, p. 23-24) distingue dois tipos de silêncio: o

silêncio fundador e a política do silêncio. O primeiro, é definido como aquele que

existe nas palavras e possibilita o recuo do significante e produz as condições para a significação. O segundo, subdivide-se em dois funcionamentos, o silêncio constitutivo, que sinaliza para o sentido do não-dizer e o segundo, o silêncio local, que funciona como interdição, o que é proibido dizer em uma conjuntura dada. Ainda segundo a mesma autora:

Isso nos faz compreender que estar no sentido com palavras e estar no sentido em silêncio são modos absolutamente diferentes entre si e faz parte da nossa forma de significar, do nosso relacionamento com o mundo, com

as coisas e com as pessoas. [...] Essa reflexão nos ensina também que, embora seja preciso que já haja sentido para produzir sentido (falamos com palavras que já têm sentidos), estes não estão completamente já lá (ORLANDI, 2002b, p.24)

O silêncio, nessa perspectiva, constitui-se no lugar de memória, o qual tem a função de recolher, transcrever e organizar os traços de identificação entre nomes ou eventos rememorados/comemorados. Isso significa reforço à relação de dependência a outros lugares que guardam esses traços. Disso, entendemos que o que é dito a partir do museu, ressoa em outros lugares e também que o sujeito porta-voz, cuja função é organizar e redistribuir a memória a partir do lugar que ocupa, repete e dá visibilidade ao que constitui memória e faz sentido na formação social, porque é constitutivo dela e dos sujeitos. A aparente intencionalidade é um efeito de evidências decorrentes da ideologia e dos traços de identificação entre sujeitos, que constitui a ilusão da memória estabilizada, sem os furos que instauram o equívoco e a ruptura.