• Nenhum resultado encontrado

A volta da magia em tempos de racionalidade

No documento Download/Open (páginas 66-72)

2 DA MAGIA À RACIONALIDADE: A RELIGIÃO EM PROCESSO DE

2.5 RACIONALIDADE INSTRUMENTAL

2.5.3 A volta da magia em tempos de racionalidade

No cenário pós-moderno, assistimos a um retorno explícito da magia. Não aquela ligada ao campo conforme sugerido na tipologia weberiana, “enredados numa relação plástica e cíclica com a natureza”, bem como com “as relações sociais imediatas” dos camponeses, mas uma magia “reinventada”, que surge nas “cidades, ‘sofregamente’ modernizadas”, como “um recurso contemporâneo que responde a novas incertezas (não mais as incertezas da sociedade agrária) e a novos riscos e imprevistos” (CÔRTES, 2007, p. 45).

De acordo com Paula Montero (1994), o que mais desperta perplexidade ao “observador da cena brasileira” está no fato de que “as religiões que mais cresceram nestes últimos vinte anos têm um caráter acentuadamente mágico”. Essa constatação faz com que a presença da magia, numa sociedade dominada pela racionalidade instrumental, seja vista como “um terrível sintoma de que a modernidade brasileira efetivamente fracassou”. Com a expansão da magia, a sensação que se tem é de que o pensamento religioso brasileiro retrocedeu, revelando sermos ainda incapazes de entrar de maneira eficaz e duradoura “na verdadeira modernidade”, impressão esta que insinua uma “incompatibilidade entre pensamento mágico e pensamento racional” (MONTERO, 1994). Isso nos coloca frente a um grande paradoxo: como conciliar magia com racionalidade se a própria racionalidade, como vimos no desencantamento do mundo, a remete para a esfera da irracionalidade? A exemplo de Weber que a considerou como um atraso ao desenvolvimento econômico é correta a afirmação de que a mesma seja um entrave para entrarmos definitivamente na modernidade?

Para um correto enquadramento da magia no contexto da pós-modernidade, caracterizada pela racionalidade instrumental, a fim de superar essa dicotomia entre magia e racionalidade, é necessário primeiramente procedermos a uma análise não à luz do modelo costumeiramente seguido: o ocidental, mas sim à luz de uma realidade de terceiro mundo, bem diferente do primeiro mundo. Ao discutir sobre a globalização e religião no Chile, Cristián Parker (1999, p. 116) afirma que o processo de globalização deve ser concebido de forma dialética e conflitiva. Assim o autor se

posiciona de forma contrária a uma “tese etnocêntrica” ocidentalizante, que encerra uma postulação equivocada e unívoca do processo de globalização, pois a mesma, embora possa ter seu lado positivo, também tem seu lado negativo:

[...] ao mesmo tempo em que a globalização provoca a aproximação das perspectivas inter-religiosas provenientes de diversas culturas a nível planetário, também provoca como resposta frente à hegemonização de valores não religiosamente inspirados, ou de tendências à fragmentação, o aumento de perspectivas religiosas fundamentalistas, milenaristas ou integristas que se retro-alimentam na reivindicação de identidades locais, étnicas ou particulares que sentem-se ameaçadas por este mesmo processo de globalização (PARKER, 1999, p. 118).

Parker (1999, p. 141) defende a tese de que não seja possível uma análise do pluralismo religioso “em nosso continente enquanto fenômeno social total, se não no quadro de um campo religioso onde os tipos básicos já não são, como no Ocidente cristão, a igreja e a seita, mas a igreja, o movimento religioso e a religião popular”. Postular a globalização do ponto de vista ocidental significaria olvidar que existe, em nosso campo religioso “latino-americano”, uma tendência natural ao sincretismo religioso que é rearticulado em suas mais diversas formas. Ignorar isso seria “não entender que a religião muitas vezes acompanha as formas de resistência cultural dos povos não ocidentais aos processos de modernização que os desenraizam de suas tradições” (PARKER, 1999, p. 118).

Atribuir à magia a responsabilidade por não termos ainda entrado na modernidade soa como um equívoco, pelo menos no caso brasileiro, pois de acordo com Parker (1999, p. 118), “sabemos que a consciência moderna em nossos países latino-americanos não requer o abandono de suas crenças para entrar na modernidade”. Parker (1996, p. 308) é mais enfático ainda no que se refere à afirmação errônea da incompatibilidade entre magia e racionalidade, ao afirmar que a magia não se contrapõe à ciência (racionalidade) chegando até mesmo a serem as mesmas “complementares e de forma coerente, como é possível observar em diversas manifestações das culturas e subculturas populares”. Para ele não existe contradição entre alguém recorrer a “Deus e ao curandeiro para curar uma doença” ou recorrer “ao médico e ao hospital”.

Para livrar-se do embaraço que se traduz na suposição da existência de uma dicotomia entre magia e religião, Montero (1994) procura evitar tal contraposição recolocando os elementos antes em “pólos antinômicos”, agora “no interior dos processos sociais dentro dos quais funcionam e ganham sentido.” Desta forma,

ressalta a diferença existente entre a concepção do pensamento mágico da maneira pela qual “opera na sociedade brasileira”, daquela noção de pensamento clássico (ocidental), pois, no Brasil, “os elementos mágicos presentes nas visões de mundo religiosas-populares não operam [...] em estado ‘puro’, tendo sido “trabalhados e transformados lentamente pelo processo de modernização da sociedade brasileira” (MONTERO, 1994). Portanto, de acordo com essa autora, a visão do pensamento mágico brasileiro sofreu uma evolução por parte do processo de modernização de nossa sociedade “que levou de algum modo ao desenvolvimento do individualismo, da noção de responsabilidade moral e à legitimação da racionalidade científicotecnológica” (MONTERO, 1994). Assim, sua análise se encaminha para uma superação dessa dicotomia, ao afirmar que “os elementos culturais não são, neles mesmos, pelas suas características próprias, nem arcaicos nem modernos, nem puramente racionais nem puramente mágicos. Seu sentido depende do contexto específico em que estão inseridos” (MONTERO, 1994). Isto a leva a afirmar, embora em sua opinião possa parecer um contra-senso, ser passível de demonstração que “na conjuntura contemporânea da sociedade brasileira, a magia se tornou ‘moderna’”. Tal proposição ganha sentido ao ser colocada “no contexto de um duplo processo que tem, por um lado, o que se convencionou caracterizar como ‘a crise da modernidade’ e, por outro, a racionalização da magia” (MONTERO, 1994).

Pensar a magia desde esse ponto de vista possibilita, senão no todo, pelo menos em parte, diluir sua contraposição com a racionalidade. Imaginar a magia em seu estado “puro”, a exemplo dos tipos ideais criados por Weber, impossibilita um desvencilhar-se do mal-estar causado pela contraposição entre magia e racionalidade. De acordo com Pierucci (2003, p. 75), o próprio Weber, embora costumeiramente citasse a magia como irracional, a classificava “como uma ação subjetivamente racional com relação a fins, ou seja, subjetivamente racional também em sua preocupação com os efeitos imediatos que o ritual mágico diz ter sobre as coisas e os eventos”. Esse mundo mágico, de tão pragmático que é se torna racional, “pois afinal os bens que as pessoas procuram obter com a magia preenchem realmente a definição do que sejam fins indiscutivelmente racionais: dinheiro, comida, saúde, longevidade e descendência.” Desta forma, a magia “tem a seu favor essa racionalidade dos fins. Ela tem fins racionais – fins ‘econômicos’, dirá Weber” (PIERUCCI, 2003, p. 75).

A saída lógica encontrada por Montero (1994), é digna de plausibilidade, pois ela procura entender “o modo particular como se deu esse imbricamento entre a lógica da magia e a da racionalização das práticas [que] indica que as religiões mágicas não se opõem como um todo às práticas racionais exigidas pelo mundo moderno” (e isso vai de encontro ao pensamento de Parker) havendo casos, como bem ilustra Adorno e Horkheimer (1985, p. 148), em que os papéis da racionalidade e irracionalidade se invertem:

A velhinha italiana que, em sua piedosa simplicidade, consagra uma vela a San Gennaro em favor do neto que partiu para a guerra, pode estar mais próxima da verdade do que os papas e os bispos que, imunes à idolatria, abençoam as armas contra as quais San Gennaro é impotente. Mas, para a simplicidade, a própria religião torna-se um sucedâneo da religião (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 148).

O indivíduo ocupa centralidade na pós-modernidade e em função disso é autônomo em suas escolhas. Ao optar pela magia ao invés de recusá-la, ele não só estará exercendo aquilo que lhe é de direito, como também estará, de modo racional, determinando os motivos e valor que para ele tem a magia, inclusive na solução de problemas que o setor público não foi capaz de resolver, justificando isso perante pessoas que agem e pensam de modo racional. Isso lhe possibilita fazer uso da magia sem qualquer conflito com a racionalidade, visto que ela própria, bem como a modernidade, está em profunda crise. Vale lembrar que tal crise acaba por tornar o terreno fértil para a reatualização de “elementos culturais que pareciam arcaicos, medievais ou pré-modernos [...] como a própria magia”, como uma alternativa, não prevista e nem desejada pela “razão individualista e seus pressupostos, até porque “o patrimônio de crenças, apesar dos longos períodos de repressão e das tentativas de democratização da escola, jamais foi inteiramente desativado” (MONTERO, 1994).

Com isso, o que vemos na prática da vida cotidiana, principalmente no campo religioso católico e neopentecostal é que essa incompatibilidade parece ser tranquilamente fluída. Isso se deve à incapacidade da sociedade da modernidade líquida em resolver os problemas cotidianos das pessoas na esfera pública, fazendo com que as mesmas se voltem para a religião em busca de soluções que envolvem poderes sobrenaturais. Desta forma, a magia passa a ser uma espécie de válvula de escape para “aliviar uma situação [que] de outro modo [seria] insuportável, na qual

se encontram inteiramente expostas, como crianças pequenas, a forças misteriosas e incontroláveis”. A prática da magia possibilita o indivíduo “encobrir e banir da consciência os horrores dessa situação, a total insegurança e vulnerabilidade que ela traz consigo e a perspectiva sempre presente do sofrimento e da morte” (ELIAS, 1994, p. 70).

A saída encontrada por muitos, na modernidade líquida, portanto, tem sido a recorrência à magia como a panaceia para todos os males. Desta forma, de acordo com Parker (1996, p. 115), “o recurso mágico-religioso à Virgem, aos santos, ao Espírito Santo, às almas e aos espíritos, seja sob a forma do catolicismo tradicional, do pentecostalismo popular ou dos cultos sincréticos como a umbanda”, sem qualquer constrangimento ou pudor, tem compensado e substituído simbolicamente “o que a sociedade dominante nega efetivamente [ao indivíduo]: a atenção à saúde, os meios de sobrevivência, a satisfação institucional das necessidades”, até porque, a prática da magia tornou-se tão comum nos dias de hoje, sem maiores problemas no que se refere à sua racionalidade ou não. Isso se vê tanto na Renovação Carismática Católica quanto no neopentecostalismo. Segundo Elias (1994, p. 74), “assim como as fórmulas mágicas eram outrora utilizadas para curar doenças que ainda não podiam ser satisfatoriamente diagnosticadas”, também hoje, com a falência da saúde pública, tornou-se lugar comum “as pessoas usarem doutrinas mágicas como meio de solucionar os problemas humanos e sociais sem se darem ao trabalho de estabelecer um diagnóstico não influenciado pelo desejo e pelo medo”. Como veremos na análise dos testemunhos na paróquia PSP, de acordo com Thomas J. Csordas (2008, p. 93), a partir do momento em que a pessoa se predispõe pela fé a tomar posse do anúncio da cura por parte de um agente religioso, o mago-sacerdote, por exemplo, de imediato são nelas ativados “processos de cura endógenos, fisiológicos e psicológicos” cujo efeito básico consiste em “redirecionar a atenção do ou da paciente para vários aspectos de sua vida de forma a criar um novo significado para essa vida e transformar o sentido de ser uma pessoa inteira e saudável”.

Contestar, portanto, a presença da magia, a partir de um ponto de vista “etnocêntrico ocidentalizante”, num país em que a cultura sempre esteve impregnada por expressões religiosas que faz dela uma constante em suas práticas rituais cotidianas, significa recusar a própria cultura. A magia é um dado cultural e por mais arcaico que seja, está aí, na mentalidade do povo, faz parte da sua

memória e enquanto tal é praticamente impossível de ser estirpada, até porque, não haveria razão de ser, pois na prática não existe qualquer incompatibilidade entre magia e racionalidade, como o vemos na RCC e no neopentecostalismo. Elias (1994, p. 70) afirma que a eficácia da crença nas fórmulas e práticas mágicas que passa a ser “compartilhada pelos membros de determinado grupo, torna-se tão firmemente entrincheirada que é muito difícil erradicá-la”. Enquanto um elemento da cultura, muito embora tenha sofrido mutações juntamente com a evolução da modernidade e já não se apresente em seu estado “puro” e por isso mesmo ser possível sua prática sem maiores conflitos com a racionalidade, a magia não pode ser vista como um “descompasso”, um atraso rumo à modernidade, pois ela é “herança colonial” e enquanto tal “não é resíduo nem atraso; é nossa marca: faz do Brasil, o Brasil” (MONTERO, 1994).

No documento Download/Open (páginas 66-72)