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Capítulo 4 – Representar o crime: tornar presente a disposição e o compromisso

4.5. O gesto estético para romper a incomunicabilidade

4.5.3. A voz do crime como guardião de valores justos

O salve em forma de canção discutido na seção anterior é um aprimoramento da comunicação das muralhas para a sociedade através da música. Exemplos de músicas que falam explicitamente das muralhas, datadas do início da década de 2000, têm um discurso menos elaborado do ponto de vista político64. O discurso de posicionamento do PCC

63 WARING, E.; WEISBURD, D.; CHAYET, E. White collar crime and anomie. In: LAUFER, W.S. (ed). The Legacy of Anomie Theory. New Brunswick, N.J.: Transaction, 2000, p. 207-77.

aprimorou-se ao longo do tempo, principalmente a partir dos ataques de 2006 em São Paulo, quando a forma de apresentar as demandas tanto pelo tom jurídico quanto pelo formato baseado na intimidação ganharam outro registro, mais próximo de um discurso de legitimação e da luta política assimétrica.

O CD “Parque dos Monstros” (2002), dos MCs Renatinho e Alemão, oferece exemplos de como a voz do crime, associada ao PCC, fazia-se circular no proibido quando o PCC apenas havia ganhado existência pública com a megarrebelião de 2001. Segundo matéria publicada à época na Folha de São Paulo, o CD teve uma tiragem inicial de 3000 cópias (CARAMANTE, FSP, 15 de dez. de 2002). Ao lado das faixas que celebram o PCC e

representam o crime, outras faixas do mesmo disco são melódicas, tratando temas românticos,

enquanto outras aconselham os jovens a não entrarem no crime ou falam de Deus. A matéria da Folha afirma que nos presídios, as músicas eram então reverenciadas como hinos do PCC e que rádios-pirata as veiculavam a pedido dos presos. O CD foi gravado quando o YouTube ainda não estava disponível para os internautas, mas atualmente todas as suas faixas podem ser ouvidas no canal de Renatinho e Alemão.

O salve a seguir, por exemplo, abre a faixa “Parque dos Monstros”, incluída no CD. O

salve evoca os valores respeito e humildade, solicitados como necessários para manter a paz

na prisão, lugar carregado de ódio, lágrima e destruição. Ancorada na dor do encarceramento, e ainda muito próxima do discurso fundacional do PCC, a mensagem, que diz que enquanto houver respeito e humildade por ambas as partes (ladrões e autoridades) a paz será mantida, serve para as autoridades e também para os rivais e inimigos. A paz nos lugares onde o PCC opera é uma paz baseada em um ordenamento e pacificação vinculados ao proceder, separando inimigos e aliados.

Salve rapaziada do mundo moderno. É só lágrima, ódio e destruição neste lugar. Mas a nossa perseverança leva a paz.... por enquanto (sic) houver respeito e humildade de ambas as partes, haverá paz, pois não queremos ser os primeiros a serem lembrados, mas os últimos a serem esquecidos. Esta é a nossa mensagem verdadeira. (PARQUE dos monstros, 2002)

No trecho abaixo, de outra faixa do mesmo disco, a ação de representar o crime na música entranha um aspecto de presentificação e reafirmação da posição sintonizada com o

proceder. O lugar de fala deixa entrever o reposicionamento contínuo do falante que é

cronista, do falante que reage negando o assujeitamento que lhe é imposto, do falante que é artista, revolucionário e aquele que, através da música, representa fazendo o que pode.

tá sintonizado tá me escutando essa é a voz do primeiro comando, a todo momento fazendo o que posso

tô envolvido até os ossos (TALEBAN da Baixada Santista, 2002)

A nuvem de palavras a seguir foi construída com o programa Nvivo 11 Pro a partir das letras das faixas do CD “Parque dos Monstros” (2002), de Renatinho e Alemão, que

representam o crime. A região central da nuvem é ocupada pelas palavras “crime” e

“cidadão”, ambas com porcentual ponderado muito próximos (crime = 0,99 e cidadão = 0,92), seguidas de “bonde” (0,85) e de “monstros” (0,71). Não apresento as nuvens de palavras a seguir para uma discussão baseada na estatística. O aspecto quantitativo serve-nos aqui apenas como ancoragem para a discussão em torno da subjetivação, e para uma percepção gráfica dos pontos de concentração. Aqui o crime está ao centro, e a comunicação está muito próxima das

muralhas.

Figura 13 – Nuvem de palavras construída a partir de faixas do CD Parque dos Monstros com NVivo 11 Pro

Antes da Lei do Funk, discos como os de Renatinho e Alemão eram gravados e distribuídos pelo circuito de pirataria. Além de conter faixas exaltando o PCC, continham

também agradecimentos ao Comando nos encartes. Com a criação do YouTube em 2005 e dos serviços de nuvem na Internet mais recentemente, a distribuição, veiculação, reprodução e reinvenção das peças de proibido é muito mais simples e abrangente, ficando muito mais exposta, também, à repetição continuada, repetição que não é necessariamente exata (e nem pretende sê-lo), sendo muitas vezes reeditada, permitindo o reposicionamento do falante em diferentes tentativas ao longo do tempo.

Nas músicas anteriores à perseguição do funk sob as leis de apologia do crime e de incitação ao crime (artigos 287 e 286, DL/2848-40) gerada pela Lei do Funk (L3410 de 29 de maio de 2000, resultante da CPI do Funk), a reivindicação da voz do crime e da voz do PCC é explícita no proibido. Posteriormente, essas vozes vão se reposicionando, e depois da elevação do funk a patrimônio cultural em 2009, reivindicam nas músicas, muitas vezes logo no início, o lugar de fala do artista, de cronista da favela e da realidade, indicando uma tentativa de aproximação agora mais eficiente, capaz de lidar com o aparelho legal.

A nuvem a seguir foi construída a partir de outro disco que, assim como o “Parque dos Monstros”, é anterior ao surgimento do YouTube. Neste caso, o centro da nuvem é ocupado pela palavra comando, seguida de sistema e depois de crime e irmãos aproximadamente na mesma frequência. Esta nuvem foi construída a partir de uma lista de reprodução com um

medley (compilação) das faixas do CD “Não Há Vitória sem Luta”, dos MCs Claudio e

Ratinho, com músicas gravadas também ao vivo. As músicas cantam principalmente os valores do mundo do crime:

Começando assim nós vamos dizer qual é dessa forte união fé em Deus prá nós então Rua da Lama, Sétimo Céu tá no peito, tatuado, no fundo do coração tem que ser assim, sabe por quê? porque se não for amigo você se complica (MEDLEY das antigas)  

Já logo na abertura, estabelece-se o lugar de fala: “tem que ser assim (união) / sabe por quê? Porque se não for amigo você se complica”. O trecho permite entrever a fala imbricada na lógica instrumental do mundo do crime, na qual operam a solidariedade confinada e as forças contingentes do proceder. As palavras de maior frequência na nuvem estão rodeadas das outras palavras que constroem o contexto, remetendo ao mundo do crime e ao mundo das

Figura 14 – Nuvem de palavras construídas a partir da lista medley do disco “Não Há Vitória Sem Luta” com NVivo 11 Pro

Os MCs se posicionam como magos da rima, que mandam as palavras certas para

representar e seguir em frente. Vemos aqui, uma vez mais, a ideia de movimento que

atravessa ou que acompanha, e que demanda habilidade para caminhar lado a lado. Uma das formas de fazer isso pode ser sendo magos da rima, o que permite propor e jogar Jogos de Linguagem habilidosos e adaptativos:

[...] mandam as palavras certas somos fortes magos da rima representam nossa família e mando então nós vamos seguindo em frente eu tô aqui prá somar pra fortalecer a corrente os irmãos de fé forte disposição, firmeza total (MEDLEY das antigas)

Os dois exemplos mencionados acima ilustram o sentido da comunicação das muralhas para a sociedade e para o próprio mundo do crime, principalmente em músicas dirigidas aos

irmãos. De maneira geral, esses dois direcionamentos apontam para o emprego do proibido

para dar sentido e compartilhar a experiência vivida para uma escuta abrangente, e também para compartilhar a vivência entre os iguais. Entre os iguais, o aspecto dinamogêneo da

música que energiza e que dá força não é passado por alto. A mente blindada no proceder pode se fortalecer deixando-se invadir pelo certo. A celebração do crime no proibido cobra sentido porque fortalece:

É o rap das três letras Invadindo a sua mente para fortalecer (O RETORNO é cruel)

Este aspecto pode gerar caminhos analíticos no campo dos estudos de recepção. O efeito dinamogêneo da música, principalmente da música com base fortemente rítmica e células melódicas minimalistas, é facilmente percebido em situações cotidianas. Um exemplo poderia ser o uso da música eletrônica nos esportes para dinamizar as sessões de treinamento e energizar os participantes, principalmente nos momentos mais duros nos quais é preciso foco, gestão emocional e resiliência. O baile funk, que não o ponto de interesse aqui, pode ser comparado às raves, por exemplo. O aspecto dinamogêneo da música, e especialmente da percussão e cantos simples, está presente desde nossos ancestrais, podendo contribuir para o transe em rituais.

Chamo a atenção para o aspecto energizador da música aqui porque não raramente senti euforia durante sessões de codificação e análise. A sensação de euforia gerou perguntas, principalmente encaminhadas em duas direções: Estou me concentrando em algum ponto que está viabilizando em mim esse efeito? Se sim, qual? No som ou no conteúdo das letras? Que parte da sensação de euforia é derivada do efeito dinamogêneo da música e que parte é gerada pelos conteúdos fortemente afetivos das letras, que apesar de duras e agressivas celebram a irmandade, a união, o respeito? As palavras carregam valência afetiva, e há carga energética nos vocábulos agressivos. Os sons usados, como gritos, pancadas, tiros são sons que o International Affective Digital Sounds (Sistema Internacional de Sons Digitais Afetivos)65, por exemplo, utiliza como unidades de estimulação acústica para a produção de emoções.

Como exemplo de peças que geraram alterações emocionais intensas e que eu situei em um caminho de amostragem teórica diferente do que eu persegui nesta tese posso citar a montagem “Se Brotar no Manguinho nós vai matar polícia”66 e “Aviso do Marreta pro Playboy: tá aberta a temporada para caçar os ADA, 2015, Jorge Turco”67. Essas duas peças

65 O IADS é um banco de dados de 111 sons organizados em três dimensões afetivas: ativação, valência e dominância. Trata-se de um banco de dados disponível para a pesquisa básica e em saúde, adaptado para diferentes países. A pesquisa realizada com o IADS indica que não há diferenças significativas na forma como as pessoas percebem alterações emocionais por esses estímulos auditivos.

66 SE BROTAR no Manguinho, nós vai matar polícia (clipe). 2min10. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KNqiXiL8fMc>. 67 AVISO do Marreta pro Playboy, tá aberta a temporada prá caçar os ADA (clipe). 3min55. Disponível em:

sinalizam um caminho trilhado por outro coletivo diferente do que optei por analisar e situado em outro território (Comando Vermelho). São exemplos de peças que produzem emoções intensas tanto pelo conteúdo das letras quanto pela sonoridade.

A música para fortalecer e para dar sentido à ação foi acionada, por exemplo, no assalto ao Banco do Brasil em Machadinho do Oeste, em 2013. Durante o roubo, os assaltantes dirigiram-se à emissora de rádio, onde tomaram o microfone para enviar um recado à polícia ameaçando que haveria mortos se impedissem a fuga, e pediram para emitir uma música dos Racionais MC’s, que deveria repetir enquanto durasse a ação. Para garantir que a música seria tocada, o assaltante no comando da ação manteve reféns duas funcionárias da rádio (FREDERIC, H.; DAMASCENO, I., G1 RO, 09/08/2013).

As músicas não comportam sempre mensagens das muralhas para o mundo do crime no

mundão ou para a sociedade. Muitas tratam simplesmente da vida no mundo do crime, e nelas

é possível entrever a expectativa de escuta da sociedade ou da comunidade, lugar de origem dos funkeiros e também, frequentemente, de quem entra para o mundo do crime. A exaltação da união é o Jogo de Linguagem que mais se repete nas músicas que falam pelo crime e para o crime, união que é o meio para lidar com as dificuldades das muralhas e nas ruas. A lealdade aos iguais e aos irmãos é cantada reiteradamente, atualizando-se continuadamente, e as descrições do sujeito que vive no mundo do crime propõem constelações de atributos valorizados.

Assim, o sujeito disposição é o sujeito sangue bom, braço fiel, humano verdadeiro,

pureza de alma e de coração. Atributos que, como foi discutido no Capítulo 3 - Mente firme

e coração blindado: o sujeito no mundo do crime, possibilitam a inscrição do sujeito em um

espaço de sociabilidade que lhe confere estrutura, afiliação e proteção, depois das rupturas e riscos vitais impostos pelo ingresso no próprio crime. O compromisso firmado com o crime é provavelmente o compromisso firmado com a mesma violência da qual o sujeito é vítima, mas uma vez instalada a ruptura e possivelmente a incomunicabilidade, o mundo do crime é o mundo social que o acolhe.

A nuvem de palavras a seguir recolhe todas as músicas incluídas na codificação. A região central é ocupada pela palavra “não”, seguida de irmãos, e depois de crime, monstros,

coração, liberdade. São as palavras significativas de grandes domínios de significação: a

união (irmãos), o crime (mundo social e instância de socialização), as muralhas (onde moram os monstros, fábrica de monstros), coração (o afeto), liberdade (o desejo). A palavra “não”

centro em uma nuvem construída a partir de um discurso cujo lugar de fala está ancorado na transgressão, que se autonomeia como proibido, que denuncia condições de vida impeditivas, que reivindica um novo lugar político.

Figura 15 – Nuvem de palavras construída a partir da amostra de músicas com NVivo 11 Pro

NÃO. Um corte. A Irmandade como forma de lidar com a realidade que se quer negar.

O Crime como meio e como modo de vida. Coração ao lado de Forte. Mente ao lado de Nós. Coração e Mente Blindados pelo certo, para proteger e para não ter Neurose. A palavra Vida pequenininha ao lado da imensidão do Não, gordo e redondo. Respeito ao lado de

Disposição, menores e não menos importantes, como aquilo que corre na base. Deus e

Monstros quase do tamanho do Coração68.

O crime eleva-se como instância da qual emanam as normas para uma forma de vida que atinge um setor relevante da população do Brasil, país que detém a quarta maior população encarcerada do mundo, ou a sexta, se considerada a taxa de presos por cada 100 mil habitantes (DEPEN, 2014). País no qual a desigualdade social produz efeitos perniciosos. País no qual se mata mais do que em países em conflito armado. País onde o certo faz o

errado. E onde o que era para ser o errado quer fazer o certo, embora tudo fique muito misturado. Os valores compartilhados em ambos os lados dessa fronteira que separa o crime como instância normativa da Lei são a ponte para transitar. Por isso o discurso ressoa. Por isso paz, justiça, liberdade e igualdade são para os dois lados, mas produzem uma fenda pela qual é preciso olhar. Daí que o desdobramento disso entranhe vontade de interferir nas partilhas políticas.