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Capítulo 4 – Representar o crime: tornar presente a disposição e o compromisso

4.2. Representar para responder a problemas de ordem relacional

A comunicação, como toda prática e toda ação, está inscrita nas suas condições de existência. Se partirmos da noção de que aquilo que não produz resultados fenece por deixar de ser posto em uso, podemos postular que toda prática recorrente permanece em uso porque tem uma finalidade. Se aceitamos que o processo comunicacional está na base da constituição da vida social, podemos considerar que as ações e práticas comunicativas recorrentes e que prosperam servem para resolver problemas de ordem relacional que o sujeito e a sociedade enfrentam em seu cotidiano.

Que tentativas sociais transcendem as metas comunicacionais singulares dos participantes, neste caso funkeiros que cantam proibido para representar o crime? O que o

mundo do crime, como mundo social, quer ao acionar o proibido como dispositivo para suas

interações comunicativas? O que aqueles que não pertencem ao mundo do crime, mas correm

junto com ele, querem encaminhar no proibido?

Na seção anterior apresentei a tese de trabalho que formulei a partir a partir da análise dos dados. No mapa situacional, podemos observar que a ação representar o crime está orientada a diferentes direções, que permitem formular as seguintes hipóteses heurísticas, encaminhadas a abrir caminhos interpretativos:

Hipótese heurística 1

A prática de representar o crime aciona o proibido como dispositivo interacional para estabelecer trocas comunicativas através da aproximação entre os gestos de

produção e de fruição estética entre mundos sociais confinados, possibilitando trocas internas ao mundo do crime (no sistema carcerário e nas ruas), e entre o mundo do crime e a sociedade.

O proibido é acionado para estabelecer trocas comunicativas entre mundos sociais cujos habitantes não desfrutam de força enunciativa no espaço público - o mundo do

crime e as muralhas - e outros mundos sociais. Entendendo que há uma

continuidade entre o mundo do crime e as muralhas, o mundo do crime, ao atravessar também o mundão, estabelece uma ponte entre o mundo confinado das

muralhas e o mundo aberto. Através da música, o mundo do crime aciona um

espaço-sistema para estabelecer trocas comunicativas entre o mundo confinado das

muralhas com o mundo do crime, e também entre as muralhas e o mundo do crime

com o mundão.

A tentativa social pode se desdobrar aqui na expressão estética da experiência vivida no mundo do crime, para compartilhá-la para além do indivíduo,

transcendendo também seu espaço de confinamento social. As músicas que tratam das vicissitudes do crime e da experiência de encarceramento permitem lidar com o sofrimento e dar à vivência um significado compartilhável, registrado em um suporte que transforma a experiência em um documento estético que pode ser compreendido como registro em uma “história social dos efeitos” (CARDOSO FILHO, 2016, p. 43), tanto no eixo sincrônico de suas manifestações em um mesmo tempo como no eixo diacrônico.

Hipótese heurística 2

A ação de representar o crime aciona e atualiza o proibido como dispositivo interacional para exercer funções instrumentais entre o mundo do crime no sistema prisional e nas ruas, e entre o mundo do crime e a sociedade.

As trocas entre as muralhas e o mundo do crime podem cumprir funções instrumentais, entre elas, funções informativas na forma de encomendas e

comunicados para circular no próprio mundo do crime, no grupo ou entre rivais, e também para circular na sociedade. O proibido é acionado para um uso diferente do

uso estético inicialmente previsto para a música. É, portanto, posto em

funcionamento e atualizado para usos instrumentais específicos do mundo do crime. Um exemplo de trocas com fins informativos através da música são os salves em forma de canção. Os salves, neste caso, são comunicados que circulam no mundo do

crime (nas muralhas e nas ruas), ou também entre as muralhas e o mundão. Estas

trocas podem ocorrer em jogos linguísticos de camuflagem necessários para

proteção no lugar clandestino, onde a variabilidade do código e dos lugares de fala é necessária.

Dois exemplos mencionados anteriormente sobre o acionamento da música sob encomenda do crime ilustram dois usos instrumentais do proibido. O funk encomendado para representar o crime e enviar um comunicado aos rivais 300 Espartanos ilustra o uso instrumental do proibido dentro do mundo do crime. O Funk do Massacre FDN também ilustra esta função, neste caso para a comunicação das muralhas para o mundo do crime, com consciência da existência de escuta na sociedade, por exemplo, através da cobertura da mídia (consciência da tripla contingência).

O rap da Trilha Sonora do Gueto também mencionado anteriormente sinaliza, igualmente, o fluxo comunicacional interno ao mundo do crime, quando o salve é dirigido aos irmãos. Outro exemplo também de um rap da Trilha Sonora do Gueto, que circulou a partir de 2015, situa-se no fluxo das muralhas para o mundão, em um salve dirigido à sociedade. O salve convoca o governo federal para um debate público com a inteligência do PCC.

A música sinaliza nestes casos o sentido da comunicação que se estabelece como fonte normativa da ética do crime, disseminada das muralhas para as ruas, bem como o fluxo do movimento do crime, que atravessa e flui por onde encontra passagem.

Hipótese heurística 3

A ação de representar o crime no proibido procura interferir no sistema de partilhas políticas através da expressão estética da experiência de dissenso, procurando viabilizar a subjetivação política do sujeito criminal.

A experiência subjetiva de vincular-se ao crime e de encarceramento possuem caráter íntimo e privado. Através da linguagem e da comunicação, a experiência subjetiva ultrapassa os limites do sujeito, levando consigo as fragilidades,

contingências e transformações que ele experimenta na configuração de si mesmo, nas suas interações com o mundo.

Representar o crime na música possibilita, através da experiência estética, tentativas

de aproximação que produzem uma experiência dissensual e que permitem

reivindicar para o sujeito o lugar de voz qualificada para falar em nome do coletivo

mundo do crime como um mundo social que atravessa o mundão e mantém

compromissos com os pedaços de si que estão nas muralhas e com a comunidade. A voz do crime reivindica para si um lugar próprio nas partilhas do social, o que para Rancière (2009) sugere vontade de exercer uma subjetividade política, que implica conquistar ou alterar a potência da voz e mudar o lugar social imposto ao corpo e ao sujeito pelas partilhas consensuadas. A voz do crime não solicita o lugar de outros atores sociais, mas o direito de exercer sua própria voz, de falar em nome do coletivo do qual faz parte, e para isso reivindica o lugar de guardião de valores tidos como justos e que possibilitam a vida em comunidade. Os valores

compartilhados aos dois lados da fronteira que separa os mundos que estão dentro e fora da lei permitem que as vozes transitem de um lado a outro (FELTRAN, 2013).

Hipótese heurística 4

A ação de representar no proibido cumpre a função de exercer o proceder, atualizando e colocando de manifesto a disposição para agir por e para o mundo do crime, tornando presente o compromisso.

A ação representar está associada à construção de si ser disposição, redescrição identitária que o sujeito faz de si mesmo mostrando seu apetite e vontade de fazer valer o compromisso firmado com o crime em qualquer circunstância. Os sujeitos que são disposição são sujeitos de proceder, sujeitos válidos para serem aceitos no

Representar o crime no proibido pode configurar-se como uma expressão do proceder, exercendo-o em missões de natureza comunicacional, mas também

posicionando o sujeito que representa com relação ao próprio mundo do crime e também aos inimigos, à comunidade, à sociedade.

Hipótese heurística 5

A ação representar o crime na música configura-se como um Jogo de Linguagem que permite conviver com o crime, mostrando-lhe consideração e disposição, sem necessariamente cometer atos criminais.

 

No mundo externo às muralhas, o proceder do mundo do crime se configura também nas ruas. O crime, como já disse anteriormente, não se define pelo delito tipificado, mas como um movimento no qual é possível estar sem necessariamente cometer atos criminais. Assim, a disposição para representar poderia ser uma maneira de correr com o crime, de conviver, compreender e até sobreviver ao crime, uma maneira de lidar com os efeitos da existência de um movimento e de um mundo

do crime.

Em todos os direcionamentos é possível entrever como diferentes expressões de subjetividade são postas em circulação, em um sistema particular de regras relacionais e de significação, que implicam diferentes lugares de fala e a inscrição da ação em contextos que impõem demandas específicas. A posta em funcionamento recorrente da ação de representar configura versões de uma mesma prática comunicacional que leva em conta a escuta de partes externas à interação em si. Vejamos como essa prática pode ser pensada nos termos da Teoria dos Jogos de Linguagem de Wittgenstein (1999 [1953]), já abordada anteriormente nos capítulos 1 e 2 tanto como ferramenta heurística quanto como ferramenta conceitual.

4.3. Um jogo de linguagem adaptativo baseado na tripla