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2. O PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO E CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA

2.2. A voz, o olhar e o colo no processo de subjetivação

A condição de desamparo inicial do filhote humano anuncia que é necessária a presença e disponibilidade de outro ser humano que ofereça condições e ações propícias ao desenvolvimento integral que abrange o fisiológico e o psíquico, o nebenmensch, que Freud (1895/2007) anuncia no “Projeto”.

Flach (2016), apud. Crespin (2004), escreve que durante o primeiro ano de vida, o bebê se organiza por meio de três registros importantes, que são a oralidade, a especularidade e pulsão invocante. A oralidade refere-se ao estatuto simbólico das trocas alimentares, a especularidade à introdução do campo do olhar do Outro que funda o corpo do bebê e a pulsão invocante ao estatuto da voz na constituição do aparelho psíquico e de seu funcionamento (FLACH, 2006).

O humano está sujeito a ouvir vozes, ser olhado, ser tocado em seu desamparo primordial na condição de infans, que o faz dependente desde sempre de um laço com o semelhante. Catão (2009, p.23) esclarece que a

criança ouve/escuta muito antes de falar, porque é um ser falado que vai advir falante e que “escutar não é um gesto natural”. A autora afirma que é necessário considerar a implicância disto no que diz respeito às modalizações da presença da voz do Outro e que “a ligação mais primitiva do homem com outro ser humano, ligação parental, se dá por meio da voz” (CATÃO,2009, p. 133).

Catão (2009) assegura que é pelo olfato, visão, audição e tato que o lactente organiza suas trocas significantes. Conforme a autora é assim que acontece a erogeneização do real do corpo da criança pelo Outro cuidador, erogeneização necessária para a organização do corpo próprio, simultânea à organização das instâncias psíquicas e sua dinâmica.

O bebê estabelece com seu Outro cuidador uma relação dual que se funda através do olhar e é a partir do olhar da mãe que o bebê pode construir a imagem de si. Segundo Catão (2009), esse olhar é de função psíquica, não estando relacionado à visão como função orgânica, é um olhar que propicia um acesso especular, um reconhecimento da imagem de si pelo olhar do Outro. Lacan (1964/2008) escreve que

Na relação escópica, o objeto que depende a fantasia à qual o sujeito está apenso numa vacilação essencial, é o olhar. Seu privilégio – e também o porquê de o sujeito durante tanto tempo ter podido desconhecer-se como estando nessa dependência – se atém a sua estrutura mesma (Ibid., p. 86).

Sobre isso, Dolto (2009) esclarece que a imagem escópica não é nada em relação ao sentir, e a castração da experiência do espelho consiste no choque para a criança se aperceber de que a imagem que vê é bem diferente da imagem do corpo. Cabe salientar que não existe apenas o espelho plano, há o espelho que o outro é para a criança, sendo esse outro o primeiro personagem visto por um ser humano ao nascer, as palavras ouvidas nas primeiras horas de vida ressoam como ecos de um espelho sonoro.

Lacan (1964/2008) afirma que o sujeito, na tentativa de se acomodar ao olhar, este torna-se o objeto que perfura o corpo, o ponto de dissipação, de desfalecimento. É o ponto onde o sujeito pode reconhecer a dependência em que está no registro do desejo, o olhar especifica-se como inapreensível. De acordo com o autor, é o olhar pelo qual se é surpreendido, lugar da relação do

eu, sujeito nadificante23, ao que rodeia, e escreve, “eu que olho, o olho daquele

que me olha como objeto” pontuando que esse olhar que a criança encontra , de modo algum é um olhar visto, mas um olhar imaginado pelo sujeito no campo do Outro (LACAN,1964/2008, p. 86-87).

O estádio do espelho é um momento em que a criança reconhece sua própria imagem e ilustra, também, o caráter conflitivo dessa relação de dualidade pois, tudo o que a criança capta ao ficar cativa de sua própria imagem é de forma precisa a distância que existe entre suas tensões internas e a identificação com a feliz imagem. Se o sujeito se reconhece não é pela via da consciência, há algo mais, um mais além que é desconhecido pelo sujeito ao ficar fora do alcance de seu conhecimento, coloca-se, então, a questão de sua estrutura, sua origem e seu sentido (LACAN,1956/2009).

Bentata (2009) explica que a voz é o objeto da pulsão invocante, sobretudo porque Lacan (1964/2008) afirma que após o se fazer ver, teria lugar um outro, o se fazer ouvir. Bentata (2009), escreve que

sobretudo no se fazer ver, que sou sempre eu que me mostro, enquanto que no se fazer ouvir, é sempre o outro que me escuta. Tal maneira de conceber esta pulsão estabelece que, de fato, assim como o olhar está para a pulsão escópica, a escuta, mais do que a voz, se faz objeto da pulsão invocante (Ibid., p.14).

A relação com o olhar do Outro que pode ser vista ainda mais precocemente, escreve Laznik (2013), é o que ela chama de olhar do Outro

fundador24. A autora lembra que o olhar não é a visão, que não se trata de olhar

com os olhos bem abertos, mas ter uma escuta atenta, de ouvir o bebê. Esse olhar é de investimento, de atenção, visto que o corpo de um bebê não se reduz a seu organismo, é uma construção resultante de uma união deste organismo com algo que não vem do bebê, mas do Outro. Afirma, também, que para que o bebê possa se olhar no espelho, é preciso supor a existência prévia de um olhar original, de presença original, onde a ausência possa se inscrever, porque sem presença fundadora, não haverá ausência que possa se inscrever

23 Lacan extrai essa expressão da obra de Jean Paul Sartre, O ser e o nada, onde Sartre

considera que o efeito nadificante que a própria ação de espreitar produz sobre o sujeito, para projetá-lo em uma outra forma de esvaziamento da subjetividade, remete a um processo de aniquilação, de desmonte. Maiores esclarecimentos ver obra do autor.

(LAZNIK,2013, p. 160-161). O olhar do Outro fundador é a pré-forma do corpo do bebê e somente nesse olhar que vem do Outro é que se constitui o conjunto formado pelo orgânico e pelo investimento libidinal e, somente no olhar do Outro primordial e no do apaixonado ou apaixonada, que isto pode ocorrer, por isso o amor é tão precioso entre nós, diz Laznik (2013).

Na conferência “Como acolher um bebê no século XXI”25, Bentata (2018)

afirma que a posição do olhar da mãe, no sentido fisiológico, como concebe seu bebê, será determinante para a constituição ou não do sujeito, uma vez que, esse olhar permite que o bebê de fato nasça. O autor afirma que o bebê é, desde o nascimento um ser ativo na relação com o outro e, para si, a construção das pulsões é muito precoce.

Sobre o registro do olhar, Laznik (2013) afirma que o que se passa no registro do olhar acontece no registro acústico. Ao cuidar do bebê, a mãe fala- lhe e ele responde com um som qualquer que é investido de forma fálica por ela, que escuta alguma coisa que vai além do barulhinho, traduzindo e dando sentido. Esse diálogo, como referido pela autora, é descrito como protoconversação definido como turnos de fala em que a mãe ocupa o lugar do bebê traduzindo o som que ele produz e seu próprio som quando ele lhe responde.

Escrevendo sobre a voz, Oliveira (2016) ressalta que o bebê recebe do outro uma voz que fala com uma melodia única, que é anterior ao seu nascimento, garantindo-lhe uma continuidade nessa passagem. A autora comenta que “este som convoca o bebê a invocar o outro e a si mesmo a partir do som que ele mesmo produz”. Durante essa invocação, acontece a emissão de sons por parte do bebê a fim de estabelecer a comunicação com o outro, o que convoca dois órgãos, a boca e a orelha. Essa duplicidade obriga o sujeito a estar consigo e com o outro na medida em que é tomado pelo eco da própria voz. Esse eco, fornece ao bebê o espelho que garante sua existência e condição, a voz do outro que fala possibilita contornos, volume e peso a seu reflexo e, esta voz especular, “unifica a sensação do bebê dando-lhe a percepção de si mesmo e do outro” (OLIVEIRA, 2016, p.158).

25Conferência realizada no dia 27/07/2018 no V Congresso transdisciplinar sobre a criança e o

adolescente, na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte/MG. Ainda não publicada.

Catão (2009) afirma que o circuito da pulsão invocante pode ser delineado como: ser chamado, chamar e se fazer chamar. A autora acrescenta que não basta que o bebê seja chamado, ele terá que responder, se fazer chamar, mas, para isso, é preciso investimento libidinal da voz e é a partir do Outro primordial que o sujeito percebe a voz. Catão (2009) escreve que

A resposta ao chamado do Outro implicará na possibilidade do sujeito formular a questão: “Que queres de mim”? (Che vuoi?), testemunha do efeito da alienação simbólica, que só poderá ser formulada após o sujeito ter percorrido, ao menos, uma vez o circuito pulsional completo. (...) a pulsão invocante supõe fazer-se voz para buscar o ouvido do outro (Ibid.p.168).

Konopczynski (1997), ao discorrer sobre o diálogo entre mãe e bebê, lembra que para um observador atento a mãe fica boba e a conversa se organiza segundo regras específicas devido a elementos presentes tanto no discurso da mãe quanto no balbucio da criança, que parece aleatório e sem sentido. As capacidades perceptivas e auditivas do bebê são similares às do adulto no que concerne à discriminação dos sons da fala. A autora ressalta que desde o nascimento o bebê se torna um produtor de sons e está equipado com os instrumentos necessários à percepção da fala e à sua produção, sendo a percepção, anatômica e funcionalmente madura desde o quinto mês de vida intrauterina, um pré-requisito indispensável para a produção dos sons.

A fala materna possibilita à criança a tradução da realidade, nomeando suas sensações e organizando o seu mundo. Em relação ao circuito da pulsão os tempos se organizam em ouvir, chamado cumprido pela voz do Outro primordial, se ouvir, a mensagem vem do Outro sob forma invertida e se fazer

ouvir, aparecendo aí o novo sujeito, o Outro real encarnado pela mãe

(CATÃO,2009, p.125).

Ferreira (2001) caracteriza a fala materna como manhês, um modo especial de fala que a mãe dirige ao bebê, que possui características próprias, tanto do ponto de vista de sua organização (dialógica), de sua forma (abreviada), de sua estrutura (sintática) e de sua prosódia. O manhês, sendo uma linguagem própria da relação dual, opera em dois registros: alienação e separação, e porta

o bem querer sem lei da mãe. A língua materna26 corresponde a língua do

interdito, aquela que remete à proibição da mãe em relação a criança. Ferreira (2001) afirma que, em um processo de obediência e transgressão às leis da linguagem, a fala materna apontará esses registros, salientando que, no campo da alienação, o grito de necessidade do bebê é transformado em demanda do outro, o que, em um primeiro momento, o tempo (lógico) aliena a criança. O registro da separação, próprio da língua materna, sustentada pela ordem simbólica, capaz de operar o corte necessário para fazer surgir o sujeito, é um tempo posterior, com a prevalência da língua do interdito (FERREIRA, 2001, p.102).

Os jogos de palavras que colocam em ação a capacidade de produzir ou fazer alguma coisa de forma criativa são expressados por meio do manhês, na relação mãe e bebê. Jerusalinsky (2018) afirma que o manhês não basta para que ocorra uma abertura de um lugar para a criança como falante. A autora escreve que

Para além dos picos prosódicos, facilitação fonética, léxica ou gramatical que possam se produzir ao falar com um bebê, é imprescindível estarmos atentos ao ato de enunciação materno e ao seu efeito de barrar e articular o que se passa no real do corpo do bebê (JERUSALINSKY, 2018, p. 13).

Jerusalinsky (2018) lembra que o bebê paga com o seu corpo, no estabelecimento de circuitos pulsionais que organizam, as suas funções orgânicas ou desorganizam em seus modos de funcionamento. A autora revela que a partir da leitura do corpo do bebê podemos perceber o que ele dá a ver, podemos reconhecer a constituição do psiquismo (Ibid., p. 14, grifos da autora). Laznik (2013) escreve que o manhês é a língua que todas as mães do mundo utilizam para falar com seus bebês e destaca a importância da participação do bebê na qualidade da prosódia do manhês pelo adulto, é uma co-criação, na qual não se pode negligenciar a parte ativa do bebê. A autora ressalta que o manhês pode também ser chamado de parentês, posto que o pai, e também outros adultos que se ocupam do bebê, fazem uso dessa linguagem.

26 Língua materna é como os linguistas chamam a língua própria de um povo, ou, mais

rigorosamente, de uma comunidade linguística. Sabemos que esse é um termo impróprio, uma vez que a língua não é da mãe, ela vem de fora, do outro (mais exatamente do Outro).

No plano da prosódia, o manhês é o registro de voz mais alto que o habitual, uma entonação restrita com modulação e variação de altura exagerada, forma melódica longa e doce, com variações amplas (LAZNIK, 2013).

Ferreira (2001) propõe que os elementos do manhês são próximos dos elementos da música e, assim, afirma que o manhês é musical. Fazendo referência às canções de ninar, lembra que a melodia é simples e os sons são repetitivos e rítmicos, como no manhês. Desse modo, acontece o estabelecimento de um espaço sonoro, um espaço psíquico, constituindo-se a corporeidade sonora da linguagem como um vetor para o prazer da criança.

Segundo Bentata (2009), a mãe empresta sua voz ao bebê desde o nascimento, e, em sua loucura materna, fala um dialeto próprio, que o autor define como mamanhês, ressaltando que esse dialeto é uma língua universal um dialeto especial utilizado pelas mães e pode ser considerada como um esperanto27. O autor acrescenta ainda que o mamanhês atrai irresistivelmente

os bebês a seu alcance, eles desfalecem quando o escutam, porque a mãe fala de uma forma lenta e cantante, destacando as palavras e, o bebê, torna-se pulsionalmente excitado e se põe a mamar compulsivamente. Bentata (2009) explica que

Com sua canção, a mãe atrai o bebê para si, para conquistá-lo, o que o torna caído de amores por ela. Entretanto, sua fala lenta, destacando as palavras, funciona como uma linha perfurada numa folha de papel. Basta segui-la e, depois, destacá-la: isto já prepara o bebê para o corte do significante e, daí separá-lo dela, de sua mãe (ibid. p. 17).

Na conferência “Como acolher um bebê no século XXI”, Bentata (2018) reforça que os bebês ficam cativados pela prosódia do manhês, é uma língua que não se aprende, ela jorra de forma espontânea, exagerada e captura o bebê. Bentata (2018), ao discorrer sobre o acolhimento do bebê, fala sobre o colo, de como o recém-nascido sente o corpo da mãe, ou de quem está exercendo a função de maternagem, ressaltando que a maneira como o bebê é carregado

27O autor utiliza esse termo para fazer referência a uma língua utilizada no mundo todo.

O Esperanto é uma língua internacional e neutra. É um eficiente instrumento para a preservação de todas as línguas e culturas do globo, uma segunda língua para todos. A ideia base do Esperanto foi lançada pelo médico polonês aos 28 anos, Dr. Lázaro Zamenhof, em 1887, há mais de 125 anos. Desde então, o projeto de língua planejada transformou-se em uma língua viva, com cultura própria, mas internacional, e até mesmo com falantes nativos(http://www.esperanto.com.br/conheca/introduca). O Esperanto não pertence a nenhuma nação e pertence a todos. A proposta do Esperanto é que cada povo continue a falar sua língua materna e use o Esperanto nas comunicações internacionais.

favorece o seu desenvolvimento. O autor estabelece que é interessante dar uma dimensão pulsional a essa fase, o contato do braço com as costas do bebê causa uma sensação de acalanto, é o “colo materno”28, que pode ser dado por qualquer

pessoa que esteja disponível para acolher o bebê. O autor relembra o circuito pulsional de Lacan (1964), referenciando a pulsão oral, se fazer chupar. A dimensão pulsional do colo se refere a pulsão do apego: apegar, se apegar e se fazer apegar. Bentata (2018) esclarece que esse é um processo que faz parte da constituição e subjetivação do bebê e para que seja salutar é imprescindível acolher o bebê com amor e carinho.

A partir do delineamento teórico do processo de constituição e subjetivação psíquica, percebe-se que o nebenmensch, o próximo auxiliador, o Outro, é a pessoa que, inicialmente atende às necessidades vitais do bebê. Os cuidados primordiais resultam em uma gramática infantil29, na qual a demanda

de alimento é transformada em demanda de amor, que versa sobre a construção de uma identidade própria no bebê a partir da ação específica pontuada por Freud no “Projeto”. Tal identidade é construída pelas ações do nebenmensch, a partir da presença desse Outro primordial que está a inteira disposição do bebê e, em seguida, inicia um processo de corte, sendo uma presença hostil, que anuncia o processo de separação, para que o bebê possa advir e conquistar uma posição singular no mundo.

28 Grifo nosso.

29 A gramática é considerada uma função da linguagem interior e instintiva, que manteria uma

relação muito estreita com a linguagem da fantasia inconsciente. A criança emite sons que são sintomáticos do seu estado de ânimo, e estes podem ser entendidos pelos pais, mas se trata de um processo alheio à sua necessidade de comunicação (MÉLEGA, 2007).

3. A FUNÇÃO DOS PROFISSIONAIS QUE CUIDAM DOS BEBÊS NA

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