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2. O PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO E CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA

2.1. Os três tempos do circuito pulsional

Freud (1915/2008) apresenta o circuito pulsional a partir dos pares exibicionismo/voyeurismo e sadismo/masoquismo em três tempos e atenta para o fato de que a finalidade ativa da pulsão é anterior à passiva, o que permite dizer que olhar precede o ser olhado. Inicialmente, a pulsão de ver é auto erótica, tem sem dúvida um objeto que se encontra no próprio corpo e somente mais tarde troca esse objeto por um análogo do corpo alheio. Assim, Freud descreve o circuito pulsional,

a) o olhar como atividade dirigida a um objeto exterior;

b) a resignação do objeto, a volta da pulsão de olhar para uma parte do próprio corpo, e por tanto, a transformação em passividade e o estabelecimento da nova meta: ser olhado; c) a inserção de um novo sujeito, ao qual se mostra a fim de ser

olhado (ibid. 124-125, tradução nossa)22.

22 a) el ver como actividad dirigida a un objeto ajeno;

b) la resignación del objeto, la vuelta de la pulsión de ver hacia un aparte del cuerpo propio, y por tanto el trastorno en pasividad y el establecimiento de la nueva meta: ser mirado;

c) la inserción de un nuevo sujeto al que uno se muestra a fin de ser mirado por él (FREUD 1915/2008, p. 124-125).

A partir das elaborações freudianas, Laznik (2013) esclarece que a satisfação pulsional consiste na montagem do circuito pulsional em três tempos, implicando na realização de um percurso que traz a satisfação pulsional e que é separada de forma radical de qualquer satisfação de necessidade orgânica. Para a autora, esse trajeto em forma de circuito, vem se fechar em seu ponto de partida e, então, a pulsão não irá mais na direção de um objeto da necessidade e da satisfação, mas na direção de encontrar um objeto que a cause, que permita a ela fazer esse percurso dos três tempos necessários inúmeras vezes (LAZNIK, 2013).

Pensando o circuito pulsional, Laznik (2013) escreve que no primeiro tempo o recém-nascido dirige-se para um objeto externo no nível da pulsão oral: o seio ou a mamadeira. É um tempo ativo em que a satisfação pulsional se dá pelo apoio nas funções vitais, no caso, a amamentação. O segundo tempo do circuito pulsional é reflexivo, tomando como objeto uma parte do próprio corpo, a chupeta ou o dedo; nesse momento Freud situa o chupar. O terceiro tempo da pulsão é quando o recém-nascido faz de si mesmo o objeto de um outro, o novo sujeito que Freud se refere, que pode ser a mãe. O bebê não é passivo na situação, ele a suscita e procura fazer-se olhar, fazer-se ouvir, ou então, no nível da oralidade, “oferecer o pezinho para fazer-se comer” (LAZNIK, 2013, p. 79, grifos da autora).

No terceiro tempo, necessário para o fechamento do circuito da pulsão, a criança faz-se objeto de um novo sujeito, assujeitando-se a um outro que se tornará o sujeito da pulsão do bebê. Oferecendo o pezinho, o bebê se faz comer por este outro sujeito, para o qual ele se faz, ele próprio, objeto. Nessa relação, percebe-se um jogo pontuado por risos maternos, em que a mãe comenta o quanto o pé do bebê é apetitoso e, assim, de forma geral, provoca risos no bebê, situação indicante de que a criança busca fisgar o gozo do Outro materno, provedor de significantes (LAZNIK, 2013).

Catão (2009), ao pensar o circuito pulsional e seus tempos, situa o primeiro tempo nos seis primeiros meses de vida extrauterina, caracterizando-o pelo chamamento do Outro e pela resposta do recém-nascido ao chamado. No segundo tempo, entre os 6 e os 8 meses, a pulsão é interrompida e acontece a constatação da privação materna que traumatiza o sujeito, visto que este não dispõe, ainda, do recurso da fala, único recurso que simboliza esse traumatismo.

No terceiro tempo, a pulsão invocante, interrompida pelo traumatismo, será novamente posta em jogo pela insistência do Outro. A fim de superar o traumatismo, o infans deve receber um significante especial, trata-se de uma presença na ausência de um corpo.

Compreendendo o segundo tempo do circuito, descrito por Catão (2009), entende-se o pensamento de Spitz (1979), quando afirma que entre o sexto e o oitavo mês o bebê não responde mais com um sorriso quando uma visita ocasional vem até ele sorrindo ou balançando a cabeça. O autor ressalta que, nesse período, a criança faz a distinção clara de um amigo e uma pessoa estranha. Spitz (1979) afirma que a aproximação da pessoa estranha causa apreensão e ansiedade em tom mais ou menos carregado por parte do bebê, que acaba por rejeitar o estranho.

Então, no segundo tempo do circuito, estabelece-se um momento de cativação e chamamento específico ao Outro. Sobre essas elaborações, é possível situar o que Lacan (1949/1998) considerou como um momento especular que ocorre entre os seis e os dezoito meses. O autor considera que esse acontecimento pode ser produzido a partir dos seis meses e sua repetição, muitas vezes, causa meditação devido ao espetáculo cativante de um bebê diante do espelho. Lacan (1949/1998) evidencia que, mesmo sem ter o controle da marcha e postura ereta, o bebê procura um suporte humano ou artificial superando com grande afã os entraves desse apoio, para que possa sustentar sua postura em uma posição, mais ou menos, inclinada e fazer o resgate instantâneo da imagem.

O espetáculo cativante está relacionado à convocação que o bebê faz ao Outro cuidador. Laznik (2013, p. 178) afirma que “quando a mãe ensina o bebê a se exibir, ele, o bebê, se faz objeto do olhar do Outro”. Assim, se de fato, a mãe fica alegre com a exibição e o bebê fica satisfeito, a mãe ou seu substituto, ensina o bebê a ser objeto do seu gozo percebendo-se o processo de alienação. Esse processo, segundo Laznik (2013), desdobra-se de três formas. A primeira é a alienação imaginária, resultante da crença em ser aquele que o olhar do Outro constituiu. Esse tempo é necessário para a constituição do eu como uma instância psíquica e na infância a criança acredita ser o que sua mãe e/ou seu pai quiseram que ela fosse. A segunda alienação é a real, entendida como se fazer objeto da pulsão do Outro no real. A terceira, chamada de alienação

simbólica é produzida pela “protoconversação” entre a mãe e o bebê e que remete à fala da mãe no lugar da fala do bebê (LAZNIK, 2013, p.179).

Ao pensar os três tempos da pulsão e as três formas de alienação, observa-se que aquilo que funda o bebê é o gozo que ele vai suscitar, ou não, no Outro. A partir disso, ocorrerá uma boa organização do polo alucinatório de satisfação, que é a base do pensar inconsciente, suporte essencial para um desenvolvimento cognitivo capaz de discriminar o que o outro sente. Compreende-se, também, que para haver um sujeito é preciso o estabelecimento de um circuito pulsional. O circuito pulsional completo, com a passagem pelo polo alucinatório de satisfação, é também o circuito de todos os pensamentos inconscientes (CATÃO, 2009; LAZNIK, 2013).

Sobre o estabelecimento do circuito pulsional e seu fechamento, Lacan (1964/2008) esclarece que o fechamento do vaivém da pulsão se obtém muito bem com a mudança no último enunciado dos termos de Freud, e escreve

Eu não mudo eigenes objekt, o objeto propriamente dito que é mesmo de fato ao que se reduz o sujeito, eu não mudo von fremder person, o outro, é claro, nem beschaut, mas ponho no lugar de weren, machen – o de que se trata na pulsão, é de se fazer ver. A atividade da pulsão se concentra nesse se fazer ver (Ibid. p. 190).

Após discorrer sobre esse se fazer ver, Lacan (1964/2008) traz outro enunciado, o se fazer ouvir, esclarecendo que os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar. Se fazer ver é indicado por uma flecha que retorna para o sujeito, o se fazer ouvir, para o outro, e a razão disto é de estrutura. Falando da pulsão oral, o autor situa as fantasias de devoração em se fazer papar, porque se refere ao lactente e ao seio, e o aleitamento na sucção é se fazer chupar. Sendo assim, o autor afirma que a pulsão, imaginando-se através da zona erógena, está encarregada de buscar algo que responde no outro, que é o olhar (LACAN, 1964/2008, grifos do autor). Articulando o texto do “Projeto” com textos onde Freud trata sobre a pulsão, Laznik (2013) estabelece a função do outro auxiliar, o nebenmensch, e clarifica a importância da vivência de satisfação primária para o fechamento do circuito pulsional, afirmando que

quando o terceiro tempo do circuito pulsional acontece, algo da representação do desejo se inscreve no polo alucinatório de satisfação primária; um traço, não somente das características desse próximo assegurador – que é o Outro (Nebenmensch) – mas também algo de seu gozo. Assim, quando o bebê se acha só com sua chupeta e sonha, é enviado investimento para o polo alucinatório de satisfação e a representação do desejo se reatualiza (...) na experiência alucinatória de satisfação, o bebê reencontra os traços do rosto de sua mãe marcados pelo prazer. A partir daí, quando o segundo tempo do circuito pulsional retornar, será verdadeiramente auto erótico pois, se houve passagem pelo terceiro tempo haverá Eros no segundo (LAZNIK, 2013, p. 145).

A partir dos estudos teóricos sobre a constituição psíquica, percebe-se que o Outro primordial é a pessoa que tem a capacidade de ouvir o que o bebê ainda não diz, de ver no bebê aquilo que ele ainda não é. Para que esse Outro possa desempenhar seu papel de próximo auxiliar, de função materna, a voz e o olhar são relevantes na relação de sustentação frente a um desamparo inicial. O tom de voz, a expressão facial, o toque, o cheiro, a aparência, o movimento e o peso, chegam ao bebê através dos sentidos, influenciando a atividade cerebral e os comportamentos da vida futura. O que o bebê recebe através do próximo auxiliar, do Nebenmensch, do Outro, produz marcas corpóreas e psíquicas.

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