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O marxismo-leninismo era utilizadocomo fonte de apoio internacional em um contexto de Guerra Fria. A URSS, a China e a comunidade socialista em geral representavam, portanto, a única fonte consistente de suprimentos militares, legitimação, apoio político e econômico. A necessidade de conquistar suporte externo foi condição necessária para a sobrevivência de muitos dos regimes marxistas. Todavia, a ajuda soviética, além de criar certos laços de dependência, ficou geralmente restrita ao campo militar, deixando muito a desejar no campo econômico e financeiro (VISENTINI, 2016a, p. 126).

Após a morte de Samora Moisés Machel em 1986 num acidente de aviação em Mbuzine, na vizinha África do Sul, foi escolhido dentro do partido FRELIMO Joaquim Alberto Chissano para dirigir o destino do partido e de Moçambique. O grande desafio de Chissano estava nos dilemas do processo de construção do Estado e o fim da Guerra Civil, para o restabelecimento da paz no país.

Como referido anteriormente, com a pressão político-militar interna, a estagnação política e econômica nos países socialistas e, no Terceiro Mundo, o movimento gradual em direção a economias baseadas no mercado, o governo de Chissano acabou abandonando o socialismo, abraçando o capitalismo e as economias do mercado. A busca de um novo modelo

econômico foi também uma busca pela paz e pela reconciliação dentro do país; desta forma, começaram as negociações entre o governo e a RENAMO para um acordo de paz, com a ajuda da Comunidade de Santo Egídio7.

Numa entrevista concedida à revista Afrique Austral em 1970, Joaquim Chissano, antes de se tornar Presidente de Moçambique, já mostrava uma tendência ao abandono do socialismo:

Nós não acreditamos que o desenvolvimento de um país, a independência e o socialismo possam ser copiados de outros países.[...] certas pessoas pensam que como recebemos apoio de países socialistas seremos forçados a seguir a política de um ou de outro país socialista, mas isso não é certo, pois se lutamos pela nossa independência (como já afirmamos), lutamos pela livre escolha da nossa maneira de viver, das nossas relações e o nosso comportamento (BRAGANÇA; WALLERSTEIN, 1978 apud CABAÇO, 2007, p.421).

Neste diapasão, com a aprovação da Constituição de 1990, surgida na esteira de um acordo entre Moçambique, o Banco Mundial e o FMI em 1987, houve um consequente abandono da visão coletivista e estatizante da economia. No contexto do processo de negociação de paz, isso levou à assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992 entre o governo da FRELIMO e a RENAMO em Roma, capital italiana (PINTO, 2013a, p.88; DARCH, 2018, p.8).

Os termos negociais para o Acordo Geral de Paz que constituíam requisitos para uma paz duradoura e de uma democracia solida em Moçambique eram formados por sete protocolos aceites por ambas as partes (Governo e a RENAMO), assinados e rubricados pelos respectivos chefes das delegações das partes envolvidas e pelos mediadores. O protocolo I cobre os princípios fundamentais do processo de paz; o protocolo II dita os critérios e mobilidades para a formação e reconhecimento dos partidos políticos; o protocolo III abrange os princípios da lei eleitoral; o protocolo IV inclui as questões militares; o protocolo V tratadas garantias; o protocolo VI, das condições e questões do cessar-fogo; e, por último, o protocolo VII trata da conferência dos doadores (MOÇAMBIQUE, 1992a).

No protocolo I, o governo se compromete a não violar os termos do protocolo, e a RENAMO, por sua vez, se compromete a não usar vias armadas a partir da entrada em vigor do cessar-fogo, mas conduzir a sua luta política em observância às leis em vigor e ao respeito das condições e garantias acordadas no Acordo Geral de Paz. O protocolo II estabelece o

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Organização católica nascida em Roma, Itália, em 1962, logo após o Concílio Vaticano II, dedicada à caridade, à evangelização e à promoção da paz. No caso de Moçambique,a organização apoiou o diálogo entre o governo da FRELIMO e as forças insurgentes da RENAMO para o fim da Guerra Civil.

multipartidarismo em Moçambique e cria princípios e diretrizes para a formação dos partidos políticos, incluindo os direitos, deveres, condições para a formação e registro dos partidos políticos e a implementação dos mesmos. No protocolo III, são delineados os princípios gerais que orientaram a lei eleitoral, também estabelecendo que a lei eleitoral seria elaborada pelo governo em consulta com a RENAMO e outros partidos políticos.

A lei eleitoral, por sua vez, estabelecia os princípios de liberdade da imprensa e de acesso aos meios de comunicação, de liberdade de associação, expressão e propaganda política, bem como os procedimentos eleitorais, incluindo um sistema de voto democrático, imparcial e pluralístico e o direito ao voto para todo cidadão moçambicano maior de 18 anos, sem distinção de raça, cor, etnia, grupo social ou partido político – com exceção aos portadores de incapacidade mental comprovada ou demência e aos cidadãos que estiverem a cumprir a pena de prisão por crimes dolosos. Essas condições não foram aplicadas às partes envolvidas no Acordo de Paz por crimes praticados durante a guerra, até porque esses já tiveram anistia garantida por parte do governo. Foi criada também uma Comissão Nacional de Eleições (CNE), em que um terço dos componentes viria dos membros da RENAMO, com a missão de supervisionar, controlar e examinar o processo eleitoral, entre outras competências que a Lei estabelecia. Por fim, foi acordado que as eleições para Presidente da República e para a Assembleia da República serão realizadas em simultâneo, no mesmo ano, dia e mês, tendo lugar um ano após a assinatura do Acordo Geral de Paz.

Quanto ao protocolo IV, sobre as questões militares, este trouxe os requisitos, princípios e procedimentos para a formação das FADM, incluindo a estrutura de comando da nova força que se pretendia formar e a calendarização para a sua formação. Esse protocolo incluía também a retirada das tropas estrangeiras do território moçambicano logo após a entrada em vigor do processo de cessar-fogo, e a extinção e proibição da continuação de atividades dos grupos armados privados e irregulares. Ainda, o protocolo previa a despartidarização e reestruturação das Forças Policiais, e a reintegração econômica e social dos militares desmobilizados. As partes acordaram que na altura da realização das eleições existiriam apenas as FADM, com estrutura acordada entre as partes, não podendo existir quaisquer outras forças; todos os elementos de ambas as forças que por ventura não fizessem parte das FADM e das forças policiais seriam desmobilizadas.Para a Formação das FADM,criou-se uma comissão conjunta composta pelo governo e membros da RENAMO para dirigir o processo.

No que diz respeito ao protocolo V, este incluía o calendário da implementação do processo eleitoral, a comissão de supervisão do cessar-fogo e do controle do respeito e

implementação dos acordos entre as partes. O protocolo VI tratou das questões do cessar- fogo, do termo de cessação do conflito armado, e criou uma Comissão de Cessar-Fogo (CCF) composta pelo governo, pela RENAMO, por representantes de países por estes aceites e por um representante das Nações Unidas. A CCF iria se subordinar funcionalmente ao órgão responsável pelo controle político global de cessar-fogo. Este protocolo previa também a data ou o calendário acordado entre as partes para o cessar-fogo e a libertação dos prisioneiros de guerra, à exceção dos detidos por crimes de delito comum.

Por último, o protocolo VII trazia a questão da conferência dos países doadores para o financiamento do processo eleitoral e de programas de emergência e reintegração das populações deslocadas, de refugiados e dos militares desmobilizados (MOÇAMBIQUE, 1992a).

Desta forma, Moçambique pôs em prática o multipartidarismo, abandonando desta forma a ideia de um partido-Estado. Então, as Forças de Defesa e Segurança passam a ser unicamente do Estado, compostas por membros de ambas as partes envolvidas na Guerra Civil, deixando de se vincular estritamente ao partido no poder. É necessário salientar que o povo moçambicano conheceu desde o ano de 1990 uma transição de uma sociedade não democrática para uma sociedade democrática. Essa transição democrática serviu como um exemplo de democratização na África na década de 90, dezesseis anos após um conflito armado civil que devastou Moçambique.

A transição em Moçambique consistiu na passagem do monopartidarismo ao multipartidarismo, significando que o povo adquiriu o direito de escolher livremente os seus representantes através do sufrágio universal. Com o passar do tempo, o processo de transição em Moçambique foi também acompanhado pela passagem de propriedades estatais para propriedades privadas, pela formação do mercado de trabalho livre, pela industrialização e urbanização, e pelas mudanças supracitadas nas bases do poder político (MALOA, 2011).

A RENAMO, nesse contexto, deixa de ser uma força armada e torna-se um partido político, como vinha preconizado no Acordo Geral de Paz. Entretanto, parte da sua força militar continuou armada, ganhando o estatuto de polícia para garantir a segurança do seu líder até o fim das eleições presidenciais e a formação do novo governo (MOÇAMBIQUE, 1992a). Portanto, a RENAMO não foi completamente desarmada e nem desmobilizada; apesar de se tornar um partido político, a organização continuou com uma força residual armada alocada nos seus antigos quartéis, em uma clara afronta à Constituição da República, que preconiza que os partidos políticos não devem ter um braço armado e nem devem recorrer

a violências de qualquer natureza para resolver ou alcançar os seus objetivos políticos (MOÇAMBIQUE, 1975a, 2004).

Como preconizado no AGP, em 1994 foram realizadas as primeiras eleições presidenciais e legislativas em Moçambique, com um total de 18 partidos inscritos. O partido FRELIMO e o seu candidato saíram vitoriosos nas eleições, com uma grande e expressiva maioria absoluta (53,3% dos votos); a RENAMO e o seu candidato se consolidaram em segundo lugar, alcançando o estatuto de maior partido da oposição com 33,73% dos votos. As eleições tiveram grande aderência da população moçambicana – as abstenções registradas nas primeiras eleições multipartidárias em Moçambique foram particularmente baixas (12%). Essas eleições, para além de terem consagrado a posição dominante dos dois antigos beligerantes, com uma ligeira vantagem da FRELIMO sobre a RENAMO, revelaram as zonas de influência destes dois partidos: cada um dispôs de zonas de preeminência, onde obteve votação acima dos 70%. A supremacia da FRELIMO manifestou-se nas três províncias da zona sul (Inhambane, Gaza e Maputo) e nas duas províncias de extremo norte, que tinham sido a gênese da luta de libertação nacional (Cabo Delgado e Niassa). Por outrolado, a hegemonia da RENAMO foi verificada nas províncias do centro (Sofala e Manica) e em vastas regiões de Tete, Zambézia e Nampula (NOTA; SICOCHE, 2016, p. 11).

As áreas de influência dos dois grandes partidos manifestadas nas eleições de 1994 mantiveram-se nas eleições subsequentes, embora com um nítido recuo da RENAMO. Em 1999, a relação de força dos dois partidos em termos de apoio eleitoral manteve-se relativamente estável, com uma pequena subida para o candidato da FRELIMO (52,3% dos votos contra 47,7% do candidato da RENAMO), embora acompanhada por um crescimento substancial de abstenções, de 12% para 32%. Em 2004, o candidato da FRELIMO ganhou uma vantagem considerável em relação ao da RENAMO (63,74% contra 31,74%), num contexto de abstenções atingindo 64%. A abstenção foi mais intensa nos territórios onde a RENAMO tem a sua principal base eleitoral (NOTA; SICOCHE, 2016, p. 11).

Contudo, a RENAMO reivindicou vitória em todas as eleições realizadas, alegando fraude eleitoral por parte do partido vencedor, a FRELIMO, e também reclamando de falta de transparência, argumentando que as eleições não foram livres, justas e transparentes, apesar de observadores internacionais terem afirmado que o pleito eleitoral ocorreu num clima consideravelmente transparente e justo. Temos de salientar que em todas as eleições, as reivindicações da RENAMO eram acompanhadas de muita violência e de ameaça de retorno à guerra. Muitos analistas políticos afirmaram que Moçambique não pode ser um país seguro e em paz com um partido da oposição armado (com uma força armada).

De uma ou de outra forma, com a aprovação da Constituição de 1990, o abandono do sistema socialista, abraçando o capitalismo, a concepção do multipartidarismo e a formação de uma nova força de defesa e segurança, impunha-se uma nova concepção da política de defesa e segurança em Moçambique.