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1 O compositor

2.1 A Carta Aberta aos Músicos do Brasil

O início da década de 1950 foi marcado por profundas transformações no cenário internacional. Eram tempos em que a Europa ainda se recuperava da 2ª Guerra Mundial, terminada cinco anos antes e o Brasil buscava uma identidade própria no novo panorama mundial. Tais efeitos eram imediatamente refletidos nas artes.

Por conta da 2ª Guerra Mundial vários artistas, pensadores, cientistas e técnicos europeus, das mais variadas áreas deixaram seus países, por perseguição, banimento ou com o intuito de proteger suas famílias, rumo ao continente americano.

Figura 25 – Foto oficial da Orquestra Sinfônica Brasileira, em 1952, com seu regente titular, Maestro Eleazar de Carvalho, onde Hans Joachim Koellreutter foi primeiro flautista

Vários desses músicos vieram para o Brasil. Entre eles, estava Hans- Joachim Koellreutter (figura 26), flautista alemão que ao chegou ao Rio de Janeiro em 1937 e em 1940 assumiu o cargo de primeiro flautista da recém- criada Orquestra Sinfônica Brasileira.

Na Alemanha, Koellreutter já era professor e no Brasil começou a lecionar para jovens estudantes as modernas técnicas de composição utilizadas na Europa. Uma delas, denominada “Dodecafonismo”, fora desenvolvida na década de 1920, pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg. Dentre esses estudantes estavam alguns alunos de composição de Guarnieri.

Figura 26 – O compositor, professor e flautista alemão Hans Joachin Koellreutter

Guarnieri já era uma referência intelectual acerca de música, no início da década de 1950, e então, através de uma carta, se posicionou contra a ideia de se ensinar a técnica dodecafônica para iniciantes no ofício da composição. A justificativa de Guarnieri, segundo sua viúva, era de ordem pedagógica. Ele acreditava que uma vez impondo caminhos imbuídos de diversas regras, estas serviriam como agentes cerceadores da criatividade do compositor.

Guarnieri acreditava que antes de se pautar por determinadas técnicas composicionais, o aspirante ao ofício de compositor deveria ter experiência suficiente para utilizar as mesmas, e segurança para que a busca pelo conhecimento técnico não significasse uma profunda alteração em seu processo criativo.

Guarnieri expôs estas ideias no que ele denominou “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, onde se posicionou veementemente contra o ensino e a prática do Dodecafonismo, por parte de jovens compositores ou estudantes de composição.

Quando a atividade profissional e artística de Camargo Guarnieri se intensificou diversas vezes a mídia o procurou para que concedesse entrevistas; fato relativamente constante ao longo de sua carreira.

(WERNET, 2009)

Antes da publicação da “Carta Aberta” pelo jornal, Hans Joachim Koellreutter escreveu à Guarnieri propondo um debate público acerca do

Dodecafonismo e suas implicações. A “Carta Aberta” foi enviada a endereços específicos, tais como de músicos de renome e professores e por este motivo Koellreutter tinha conhecimento dela antes de sua publicação pelo jornal.

Carta 1 (de Koellreutter a Guarnieri)

“São Paulo, 16 de novembro de 1950 Amigo Camargo

Li sua carta aberta, importante documento, com que sugere o debate de problemas que lhe parecem vitais para a música brasileira.

Venho, portanto, pedir-lhe a fixação de uma data entre 30 d.c. e 15 de dezembro para a realização de um debate público em torno das questões apresentadas por você.

Aguardando uma resposta sua, subscrevo-me muito cordialmente. Koellreutter”. (RIBEIRO, 2015)

Alguns dias depois, Guarnieri responde a Koellreutter.

Carta 2 (de Guarnieri a Koellreutter)

“São Paulo, 21 de novembro de 1950 Meu caro Koellreutter,

Em primeiro lugar, quero agradecer pela sua atenção em escrever- me. É verdade que a carta aberta que dirigi aos músicos e críticos do Brasil constitui um convite para o debate, o mais extenso e profundo possível, de problemas que são realmente vitais para a música brasileira. Esses problemas não me ‘parecem’ vitais. São vitais realmente.

Quanto ao convite para um debate em torno das questões que apresentei, não vejo necessidade de aceita-lo desde que o debate já está publicamente aberto para divulgação de minha carta. A questão agora é debatê-la pela imprensa, que não tem a vida efêmera das palavras que o vento leva.

O problema exige realmente uma discussão extensa e profunda que alcance o maior número possível de pessoas, de forma concreta e objetiva. E o melhor meio para isso é a imprensa. Ventilar a questão em recinto fechado, diante de poucas pessoas, não corresponde à importância que o problema tem.

Espero que, interessado como está pela questão, me honre com a sua opinião pelos jornais.

Terei muito prazer em responder-lhe. Atenciosamente,

Camargo Guarnieri”.

(RIBEIRO, 2015)

Dois dias após a resposta de Guarnieri, Koellreutter volta a insistir num debate público.

Carta 3 (de Koellreutter a Guarnieri)

“Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1950 Caro Camargo

Agradeço suas linhas de 21 d.c. Insisto, entretanto, num debate público, de vez que seria totalmente impossível estudar assunto tão complexo e, sem dúvida, vital para a música brasileira, no espaço reduzido de colunas de imprensa.

Penso, outrossim, ser inteiramente de acordo com as ideias expostas em sua ‘Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil’, a realização de um debate, o qual pudesse livremente participar o público, afinal a parte interessante na polêmica, pois é para ele que escrevemos. Além disso, essa iniciativa também me parece oportuna, a fim de que se desfaçam os rumores os quais a sua ‘Carta Aberta’, longe de estar inspirada somente em ideais artísticos e patrióticos, teria sido provocada por interesses pessoais.

A realização de um debate público, porém, não exclui uma resposta minha por escrito, como é de sua preferência, pois a oportunidade que você oferece de uma discussão em que possam ser desfeitos todos os mal-entendidos a cerca do dodecafonismo, veio ao encontro de um velho desejo meu.

Encontrar-me-ei em São Paulo de 30 de novembro a 15 de dezembro à sua inteira disposição.

Muito cordialmente,

Koellreutter”. (RIBEIRO, 2015)

A recusa de Guarnieri se alinha à fala de Vera Guarnieri, viúva de Guarnieri, quando afirma que o compositor era reticente a dar entrevistas que não fossem por escrito, visto que no passado já haviam sido publicadas declarações que descontentaram Guarnieri e não representavam exatamente o que ele quis dizer.

Carta 4 (de Guarnieri a Koellreutter)

“São Paulo, 28 de novembro de 1950 Meu caro Koellreutter,

Recebi sua carta de 23 do corrente, em que insiste na realização de um debate verbal sobre o dodecafonismo. A minha ‘Carta aberta’ defende uma tese artística e não tem, assim, caráter político e nem pessoal. O meu ponto de vista àquele [sic] respeito já foi expendido em definitivo, em minha carta de 21 do corrente, a cujos termos nada mais tenho a acrescentar.

Atenciosamente, Camargo Guarnieri”.

Segundo a viúva do compositor, Guarnieri passou o restante de sua vida se explicando acerca da “Carta Aberta”. Quando perguntado se houve arrependimento sobre sua atitude de escrever a Carta, Guarnieri negou, dizendo que talvez pudesse tê-la escrita de outra forma, mas sem abrir mão de sua posição original.

Como consequência da Carta Aberta, Guarnieri por muitos anos foi rotulado por estudiosos e outros músicos, como retrógrado, nostálgico e contrário da produção de música atonal e de vanguarda.

Segundo Wernet (2009) é possível que, por conta da Carta Aberta o compositor tenha se preocupado, a partir da década de 1950, com a consolidação de uma escola de composição no Brasil. Dessa forma, ele passou a dar grande importância para esta atividade, além das outras que lhe tomavam também muito tempo, como compor e reger.

A “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”, teve como resposta pública também uma “Carta Aberta” escrita por Koellreutter. Ambas as cartas se encontram em anexo (anexos 1 e 2). Esta última foi publicada diante da recusa de Guarnieri para um debate público. Assim sendo, as quatro correspondências aqui reproduzidas foram, escritas entre o intervalo de tempo das publicações das cartas abertas de ambos os compositores.

Para Guarnieri o Brasil deveria investir na formação básica dos futuros artistas, para que estes provessem o país de orquestras, professores e compositores, com formação sólida, produzindo assim um contingente de pessoas comprometidas com o futuro da música no Brasil.

2.2 Assessor, professor e compositor: O trabalho na Era JK e outras

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