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Aberturas para o entendimento de uma interculturalidade

Toda vez que duas cores parecem prestes a se juntar e se fundir, uma terceira irrompe entre elas. (GRUZINSKI, 2001:50).

Tendo o “O Vento nos Levará” como objeto de exemplificação desta pesquisa, num primeiro momento, fizemos uma contextualização acerca da trajetória de Abbas Kiarostami e o desenvolvimento de seu cinema. Como vimos no decorrer do trabalho, é através de uma nova linguagem cinematográfica que o diretor iraniano procura outras formas de envolver o espectador para que ele possa ver/ler o território, a cultura do seu país.

No filme, o espectador é desafiado pelo diretor: ele desloca a construção do filme do criador para o público, gerando um processo de troca contínua, um fluxo que se expande e contrai, numa inesgotável troca. Esse processo, como vimos, não acontece de modo tranquilo e harmonioso, mas de forma conflituosa, por meio de um estranhamento.

Através da construção fílmica, Kiarostami estimula o “ver sem mostrar”, como ele mesmo chama, o qual vem contra a corrente clássica cinematográfica imposta pelos moldes hollywoodianos, estabelecendo outras formas do fazer cinematográfico, num cinema de “esticar o pescoço”.

O filme é a espera de uma ação que não se concretiza, em que o elemento principal é a falta de informação, que reverbera em todo o seu processo. Os personagens não aparecem, não há começo, meio e fim das conversas e os diálogos são entrecortados. É quando a construção do filme é posta em jogo por Kiarostami.

Ao contrário das narrativas tradicionais, em que conhecemos os objetivos dos personagens e ficamos à espera para que o mesmo seja alcançado, esta insegurança faz com que prestemos muita atenção em todos os detalhes do filme. Kiarostami não propõe uma narrativa, em que as imagens possuem uma história a contar. O que ele propõe, é uma abertura narrativa, em que o que fica são, justamente, formas em formação. É quando concluímos que, no filme, não há narrativa e, portanto, não há entretenimento.

Com essa conclusão, tivemos necessidade de refletir como o filme se configura como imagem. Já que, somente a partir do entendimento do conceito de imagem, é que poderíamos questionar a visualidade narrativa do cinema posta no terceiro capítulo desta pesquisa.

Mas só pudemos traçar essa reflexão porque o objeto de pesquisa trouxe essa questão: a partir da análise do modo como Kiarostami desenvolve sua linguagem num cinema singular. O diretor assume os vazios, as falhas. No filme, o ruído se torna elemento agregador, ao invés de ser considerado um obstáculo, e o diretor desafia a imaginação do espectador. Como concluímos no terceiro capítulo, “O Vento nos Levará” é a imagem dialética em sua essência.

Essa ausência de narrativa possibilita que a experiência vivida pelo sujeito que assiste ao filme se torne um momento de vertigem, de desconstrução dos automatismos e, consequentemente, de possibilidade de fluxo. É quando se abre a possibilidade de fazer uma reflexão acerca de uma comunicação intercultural.

A primeira condição para distinguir as oportunidades e os limites da hibridação é não tornar a arte e a cultura recursos para o realismo mágico da compreensão universal. Trata-se, antes, de colocá-los no

campo invisível, conflitivo, da tradução e da “traição”. As buscas artísticas são chave nessa tarefa, se conseguem ao mesmo tempo ser linguagem e ser vertigem. (CANCLINI, 2008:XL).

Para Canclini (2008), a cultura e a arte são elementos chave para o trabalho conflitivo, que é essência para o processo de troca. Dessa forma a questão da imagem em “O Vento nos Levará” abre um leque de questionamentos e possibilidades de estudo acerca da compreensão de como ocorrem os fluxos entre as culturas.

Segundo Canclini (2008), estudar os processos culturais é a forma encontrada de nos situar em meio à heterogeneidade, que foi acentuada a partir dos processos globalizadores. Passamos de um mundo multicultural – que admite/aceita a diversidade cultural, mas que apenas aponta para as diferenças e propõe políticas de respeito – para um mundo multicultural, ou melhor, transcultural, que supõe um entrelaçamento entre essas culturas, estimulando suas relações e trocas.

Ambos os termos implicam dois modos de produção do social:

multiculturalidade supõe aceitação;

interculturalidade/transculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos. (CANCLINI, 2005:17).

Em “O Vento nos Levará”, Kiarostami potencializa essas relações e entrelaçamentos, já que o espectador deixa de ser mero ator passivo para atuar como integrante ativo da construção fílmica: ao assistir o filme do diretor, somos desafiados a entender a realidade dos personagens que estão no Curdistão iraniano, mas tendo como memória as nossas vivências específicas.

A partir do estudo das hibridações – nome que Canclini (2008) dá a esse fluxo – as culturas que antes existiam de forma separada se recombinam e geram novas. Tendo o filme iraniano como objeto de exemplificação, podemos refletir e compreender como as relações de sentido são reconstruídas a partir dos processos de trocas culturais: cultura é o contraste com os outros. Para Gruzinski (2001),

Indivíduos e grupos devem criar analogias mais ou menos elaboradas, mais ou menos superficiais entre os vestígios, fragmentos e estilhaços que eles conseguem recolher. Cada um é condenado a construir seu palimpsesto pessoal a partir das impressões, imagens e noções que ele captou, dando-lhes significados e valores novos. Na falta de se poderem decodificar de modo linear as informações recebidas de toda parte, obtêm-se os saberes ou práticas que, de tanto justaporem de maneira ocasional e aleatória os dados e as impressões assim recolhidos, formam conjuntos jamais fechados em si mesmos. (GRUZINSKI, 2001:91).

Derrida (1986), ao pensar acerca deste movimento de troca, desenvolve o conceito de différance – um jogo com a palavra francesa difference – em que o ance, no francês, remete a uma indecisão entre o ativo e o passivo. Com esse neografismo entre as duas palavras (o “e” que é substituído pelo “a”), o novo termo se escreve, mas não se lê ou ouve, permanece silencioso e discreto, um ente-presente.

Différance remete ao mesmo tempo para o diferir como temporalização e para diferir como espaçamento [...] A différance seria, pois, o movimento do jogo que produz as diferenças, os efeitos de diferença. A

différance não é mais simplesmente um conceito, mas possibilidade de

conceitualidade, do processo e do sistema conceitual em geral. (SANTIAGO apud OTTONI, 2005:127).

Dessa forma, esta pesquisa não está “terminando” com conclusões e verdades: o que fica é um desejo, uma vontade, um começo, um primeiro passo de uma pesquisa maior sobre o entendimento de uma comunicação como organismo que flui e respira, nesse movimento que se expande e contrai, que recria as culturas a cada instante.

Referências Bibliográficas

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