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Uma nova proposta de linguagem cinematográfica

CAPÍTULO 2 – Análise de “O Vento nos Levará”

2.1. Uma nova proposta de linguagem cinematográfica

Em minha noite, tão breve, oh pena O vento vai de encontro às folhas Minha tão breve noite completa-se de Atroz angústia

Ouve! escutas o sopro das trevas? Dessa felicidade sinto-me estranho. O desespero já me é costume Ouve! escutas o sopro das trevas? Ali, na noite, algo se passa

A lua é vermelha e de angústias [...]

(Trecho retirado do poema “O Vento nos Levará”, de Forough Farokhzad).

Através de uma construção fílmica num vilarejo do Curdistão Iraniano, que possui um cotidiano artesanal onde as pessoas utilizam o trabalho árduo com a terra para a sobrevivência, Kiarostami explora uma nova linguagem cinematográfica. Como veremos no decorrer do capítulo, é através desta nova linguagem que Kiarostami procura no cinema outras formas de envolver o espectador e ver/ler o território, a cultura do seu país.

Dessa forma, o objetivo deste capítulo é compreender como a narrativa do filme se configura e, assim, entender como altera a relação que se estabelece com o espectador.

Voltando ao primeiro capítulo, podemos perceber que, mesmo tentando “contar a história do filme”, algo parece faltar. É como se os parágrafos escritos fossem pequenas histórias contadas separadas, em que o ponto em comum é o mesmo personagem, no mesmo local, mas algo falta, não se relaciona. Esse texto não é casual: no filme não há uma história a ser contada. É quando nos perguntamos: como se dá a narrativa de “O Vento nos Levará”?

“O Vento nos Levará” é a espera de uma ação que não se concretiza. No percurso do filme, o elemento principal na linguagem de Kiarostami é a falta de informação, que reverbera em todo o contexto do filme. O que percebemos é que os personagens não aparecem, não há distinção entre o passar dos dias, não há começo, meio e fim das conversas e os diálogos são entrecortados. Ou seja, a falta de informação vai afetar toda a construção narrativa, que se torna fragmentada e desconexa.

Estes elementos descritos vão aparecer no filme de forma repetitiva: Kiarostami consegue transmitir para os espectadores a monotonia do passar dos dias sem ter o que fazer, sentimento experimentado pelo Engenheiro. Como por exemplo, na cena do celular: “Nós também nos cansamos aqui. Não sabemos o que fazer nesta província”, fala o Engenheiro no celular, em uma das vezes.

Kiarostami faz questão de que todo o trajeto do personagem principal ao falar no celular apareça na íntegra. Ou seja, toda vez em que o celular toca, todo o percurso é acompanhado pelo espectador, sem cortes no tempo, proporcionados pela montagem – chamados de elipses no tempo, como normalmente se utiliza no cinema hollywoodiano. “Qualquer variação da imagem representaria a negação daquilo que estavam dizendo, e, portanto, devíamos mostrar o protagonista passando exatamente por aquela estrada, com aquela mesma luz, uma vez depois da outra”. (KIAROSTAMI, 2004:251).

Um sentimento de inadequação por parte do espectador surge: o filme não é fácil de ser assistido. Enquanto assistimos ao filme, nos sentimos perdidos. Mexemos de um lado para outro, suspiramos. Se o filme é visto em casa, então é que fica difícil: temos vontade de colocar “pause” o tempo inteiro, seja para fazer qualquer coisa. Sentimo-nos incomodados, “cutucados” e “invadidos”.

Tudo isso, para mim, tem a ver com um problema de inquietude, com o fato de ter de sobreviver de qualquer maneira e reagir a um profundo sentimento de inadequação. [...] Muitos consideram que na vida é preciso estabelecer uma meta para encontrar o sucesso, mas eu não acredito que funcione dessa maneira. Talvez no mundo dos negócios ou no âmbito científico. Na arte, ao contrário, o aperfeiçoamento só pode surgir da inadequação. (KIAROSTAMI, 2004:181).

Num primeiro momento, temos a impressão de que os filmes de Kiarostami são “fáceis” de serem feitos, já que não possuem grandes produções, extenso elenco e todas as parafernálias utilizadas nos filmes hollywoodianos. Mas só o processo de trabalhar com não-atores exige meses de trabalho para ter algum resultado. “É preciso que eles acreditem nos diálogos, de modo que, com o tempo, tenham a sensação de que as frases sejam suas” (KIAROSTAMI, 2004:130).

Para Kiarostami (KIAROSTAMI, 2004:130-131), a relação afetiva é fundamental para que haja uma comunicação com os atores não-profissionais durante os longos períodos de trabalho. Suas relações são estabelecidas com muita antecedência ao início das filmagens e seu processo é bem diferente dos habituais construídos entre o diretor e seus atores.

Para o diretor, é somente assim que eles conseguem, de certo modo, representar. Ao contrário dos atores profissionais, estas pessoas não conseguem receber ordens e fazer exatamente o que o diretor quer.

Isso cria uma tal aproximação que não se sabe mais quem escreveu os diálogos, você ou eles, se é você que dirige ou o inverso. Acabo por precisar vê-los com frequência, eles se tornam uma parte de mim, e vice-versa. Se há atuações sensíveis em meus filmes, isso se deve a essa relação afetiva que existe entre mim e esses atores. (KIAROSTAMI, 2004:130-131).

O objetivo de Kiarostami é que a relação caminhe para um ponto em que o ator não- profissional faça o que ele quer e da forma mais natural possível, como na cena em que o Engenheiro pergunta para o menino se ele o acha mau:

- Como está a inválida? Pergunta o Engenheiro. - Bem. Responde o menino.

- Sim.

- Ontem à noite ela tomou a sopa de Tajdolat. - Tajdolat? A mulher que serve?

- Isso. Ela tomou tudo. - Houve outros sinais? - Sim. Ela está falando. - Está falando?

- Está.

- Venha e sente-se um minuto. - Como assim, falando?

- Minha avó falou com meu tio ontem à noite. Ela o reconheceu. Depois, pediu notícias da família. Meu tio chorou. Ele perguntou à minha mãe: "Sou um mau filho?". Minha mãe disse: "Não, você não é mau, você é só ocupado demais". Então eles se reconciliaram. Ele disse que estava partindo para Kermanshah para pedir uma licença e que voltaria.

- Imagine só! Então, ele partiu.

O Engenheiro abaixa a cabeça, pensativo.

- Pode responder com sinceridade? Ele pergunta pro menino. - Claro.

- Você acha que sou mau? - Não.

- Tem certeza?

- Tenho. Responde o menino rindo, meio sem graça. - Como pode ter certeza?

- Eu sei. Você é bondoso.

- Bem, como eu sou bondoso então, você me arruma uma tigela para buscar leite?

Na segunda parte da sequência, quando o Engenheiro e a criança estão no plano/contra plano, é Kiarostami quem dirige os diálogos – ou seja, a pessoa que está do outro lado contracenando com o ator, seja a criança ou o Engenheiro, é o Kiarostami. Essa é a técnica desenvolvida pelo diretor e se repete, geralmente, nos planos/contra planos de seus filmes (KIAROSTAMI, 2004).

Logo que a criança é perguntada se o Engenheiro (no caso, Kiarostami) é mau, ela responde que não, mas percebemos claramente que ela não acredita naquela resposta, como se ela estivesse respondendo para ser educada.

Fui eu que dirigi a pergunta ao menino. E ele estava respondendo a mim, não ao Engenheiro. Eu sabia que não gostava muito de mim e, por isso, quando ele me diz que sou uma boa pessoa, não parece lá muito convincente. (KIAROSTAMI, 2004:252).