• Nenhum resultado encontrado

O vaguear em “O Vento nos Levará”

comunicação através das imagens

3.2. O vaguear em “O Vento nos Levará”

A imagem tem como característica o espaço perceptivo, em que o “vaguear dos olhos” é circular. Mas ao invés de o homem utilizar esse caráter como possibilidade de mediação com o mundo – em que as imagens estão a serviço do homem – há uma inversão: o homem passa a viver em função das imagens. O homem se aliena em relação aos seus próprios instrumentos, se deixa levar pela comunicação que supõe ideologias, em que somos vistos como meros receptores de informação definida e fechada. A percepção, em consequência, se torna automática. As máquinas de percepção sintética criadas superam nossas capacidades visuais. (Virilio, 2002).

O paradoxo lógico é finalmente o desta imagem em tempo real que domina a coisa representada, este tempo que a partir de então se impõe ao espaço real. Esta virtualidade que domina a atualidade, subvertendo a própria noção de realidade. Daí esta crise das representações públicas tradicionais (gráficas, fotográficas, cinematográficas...) em benefício de uma apresentação, de uma presença paradoxal, telepresença à distância

do objeto ou do ser que supre sua própria existência, aqui e agora. (VIRILIO, 2002:91).

Criamos uma comunicação autossuficiente e totalitária, a “sociedade Frankenstein” (Sfez, 1994), em que a relação homem-máquina se torna confusional. “A comunicação se faz aqui de si para si mesmo, mas um si diluído num todo. Essa comunicação é, portanto, a que se estabelece entre um não-si e um não-si-mesmo” (SFEZ, 1994:77).

A máquina surge como ameaça ao homem: reduz o conhecimento àquilo que a máquina dispõe. Ou seja, o conhecimento do homem se torna resultado da explicação autossuficiente que a máquina proporciona. Armamo-nos de aparatos técnicos que direcionam a nossa percepção. “Em la actual historia técnica de los medios, la producción de imágenes se describe en cierto modo como automatismo de la técnica de los medios”. (BELTING, 2007:37).

É por isso que a produção cinematográfica se especializa cada vez mais nos efeitos visuais, e ali investem todo seu tempo e tecnologia: como essas imagens absorvem o “pensamento-em-linha” e mais nada significam, os efeitos visuais servem de apoio para que os homens esqueçam cada vez mais a sua realidade e se absorvam naquela narrativa que não nos diz nada. Entramos num estado de tautismo 2.

Através de uma linguagem própria, em um filme em que não há narratividade, Kiarostami consegue quebrar os automatismos, fazendo com que os espectadores se percebam. No momento em que assistimos ao “Vento nos Levará”, temos a possibilidade do vaguear pela imagem através do modo como ele trabalha seus planos: longos, com um tempo lento, como se fossem uma pintura. Ao conseguir nos levar pela proposta, nos perdemos entre o deserto e os campos de trigo.

                                                                                                                         

2 Neologismo proposto por Sfez (1994) entre as palavras totalidade, autismo e tautológico –, em que a

realidade representada é substituída pela realidade expressa, em que o receptor se torna uma “esponja” que absorve toda informação transmitida.

Procurando aqui entender a comunicação como possibilidade de produção de conhecimento, não podemos pensar no cinema como dispositivo que limita os saberes, que não estimula a imaginação. De acordo com o pensamento complexo desenvolvido por Morin (2003), não podemos reduzir o conhecimento do todo ao conhecimento das partes:

O pensamento complexo conduz-nos a uma série de problemas fundamentais do destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender os nossos problemas essenciais, contextualizando-os, globalizando-os, interligando-os; e da nossa capacidade de enfrentar a incerteza e de encontrar os meios que nos permitam navegar num futuro incerto, erguendo ao alto a nossa coragem e a nossa esperança. (MORIN, 2003:23).

Para o autor, a cultura geral busca a contextualização de uma ideia ou informação, enquanto que a ciência e a técnica separam os saberes. Essa especialização da ciência e da técnica, em que o objeto é extraído do seu contexto e do seu conjunto, acaba por rejeitar os laços e as relações deste objeto com seu meio, rompendo sua multidimensionalidade.

A partir desta lógica reducionista, a visão de conhecimento do homem se torna parcelada, o que fragmenta os problemas. Quantas vezes saímos do cinema e ficamos desejando aquele ter amor, aquele carro, aquela vida? Ou seja, esses filmes que nada nos dizem, ou melhor, nos dizem até demais e nada nos acrescentam, reduz a possibilidade imagética a um desejo consumista e ilusório: eles também são espetaculares.

Ao contrário do pensar “máquina”, em que a importância é a linearidade do movimento – que propõe a redundância em sua “fórmula” e atinge o estado de repouso após a conclusão do seu percurso –, o “organismo” se constrói em espiral, cresce, vive por si mesmo. E é nesse organismo vivo que pulsa e nos incomoda tanto que Kiarostami apoia sua linguagem e desenvolve seu cinema tão peculiar.

O que conta é o processo, sempre inacabado, sugerindo uma porosidade e flexibilidade e reforçando a ideia de que o conhecimento é circular. “Quanto maior a redundância no interior de uma mensagem, tanto menor a possibilidade de interpretação do receptor” (SFEZ, 1994:45).

E é claro que o caminho de “O Vento nos Levará” se torna mais difícil: não há a intenção de distração, a possibilidade de fuga da realidade, a satisfação de um desejo. Mas é exatamente por ser mais árduo, por exigir mais de nós mesmos, que existe a possibilidade de quebra dos automatismos.

Textos são séries de conceitos, ábacos, colares. Os fios que ordenam os conceitos são fruto de convenção. [...] Essa conscientização, recente, faz com que se perca a confiança nos fios condutores. As pedrinhas dos colares se põem a rolar, soltas dos fios tornados podres, e a formar amontoados caóticos de partículas, de quanta, de bits, de pontos zero- dimensionais. Tais pedrinhas soltas não são manipuláveis (não são acessíveis às mãos) nem imagináveis (não são acessíveis aos olhos) e nem concebíveis (não são acessíveis aos dedos). Mas são calculáveis (de calculus = pedrinhas), portanto tateáveis pelas pontas de dedos munidas de teclas. (FLUSSER, 2008:17).

Como vimos no tópico anterior, a manifestação da imagem é de fundamento antropológico que se difunde, num primeiro momento, por meio da imagem mimética, através da dimensão mítica.

O bombardeamento de superfícies, numa sociedade em que a moeda de valor é a velocidade, as imagens se perdem: não conseguimos mais relacioná-las com o mundo. Imagens já não significam nada. Reféns de nossos próprios instrumentos, somos cada vez mais incapazes de decifrar as imagens.

[...] que futuro estará reservado à imaginação individual nessa que se convencionou chamar “a civilização da imagem”? O poder de evocar as

imagens in absentia continuará a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas? (CALVINO, 1990:107).

A partir deste questionamento proposto por Calvino (1990), a pergunta que aqui se faz é: como podemos passar do nível de mera descrição de imagens – como as propostas pela indústria cinematográfica, que apenas afirmam conceitos determinados –, e caminharmos para uma epistemologia da comunicação feita por imagens, como propõe Kiarostami por meio de sua linguagem em “O Vento no Levará” que supõem, assim, um trabalho de escavação arqueológica. Como podemos pensar por imagens?

Se incluí Visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens. Penso numa possível pedagogia da imaginação que nos habitue a controlar a própria visão interior sem sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas permitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável, auto-suficiente, “icástica”. (CALVINO, 1990:107-108).

A consequência da banalização dos processos comunicativos, transformando-os apenas em meros meios técnicos traz como perda da capacidade do homem de fabular. Mas o simples fato de procurarmos entender o que é a imagem e seu caráter de cognição, já nos permite ultrapassar a sua dimensão antropológica. Neste momento, percebemos a necessidade de superar a imagem como faculdade da percepção e operar a imagem como conhecimento visual.

Esse questionamento só é possível por chegarmos a um momento em que o homem começa a perceber que conceitos são frutos de convenção:

Ao pensar por meio de conceitos, o homem tornou-se não somente o sujeito de um mundo objetivado de fatos, mas também um mundo objetivado de imagens. O homem está agora começando a aprender a lidar com esse seu mundo conceitual, ao recorrer novamente à sua capacidade imaginativa. Mediante a imaginação ele começa a objetivar seus conceitos e, conseqüentemente, a libertar-se deles. (FLUSSER, 2007:121).

Ou seja, quando Kiarostami atravessa o muro da indústria cinematográfica e impõe um novo modo de trabalhar a linguagem audiovisual, ele está ultrapassando a dimensão meramente explicativa e propondo um trabalho indagativo.

Em “O Vento nos Levará”, temos a possibilidade de explorar a visualidade como dispositivo estratégico – a nosso ver, então, um contra dispositivo, da natureza de profanação já que não possui o caráter de estratégia para a disseminação de uma ideologia, mas exatamente o oposto: desmontar o que está montado.

Ao fazer uma releitura acerca das teorias foucaltianas sobre o dispositivo, Agamben o define como qualquer coisa com capacidade de “orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” (AGAMBEN, 2009:40). Neste sentido, o dispositivo acaba por adquirir um sentido militar, calcado na noção de estratégia, na disposição dos elementos conforme um plano definido. Para Foucault e para Agamben (2009), ele sempre está inserido num jogo de poder, condicionando, assim, os limites do saber.

É com o mecanismo do contra dispositivo utilizado que podemos considerar que Kiarostami possibilita pensar por imagens: produção de conhecimento a partir do tempo presente, do agora, que deixa de ser narrativo-linear para assumir uma relação de indeterminação. Mas é necessário desconstruir, fazer ver o que não é visto: a presença na ausência. E é por este motivo que Kiarostami consegue explorar uma arqueologia da imagem.

Colocada em notória visualidade pelo estruturalismo, aquela arqueologia coloca em crise a simples discriminação dos signos que configuram a emergência do sentido, a fim de ser possível perceber que, atrás daquela configuração, não está um sujeito que agencia a mensagem que se comunica, mas um processo que se situa além dele, porque se expande na mesma medida em que se dissolve ambientalmente, mas não desaparece, porque é constituído pela própria comunicação no seu fazer-se: um processo que, em evolução, se transforma e tende sempre a superar a anterior configuração com que se apresenta inicialmente. (FERRARA, 2011:6-7).

Podemos perceber que o “processo” ao qual Ferrara (2011) se refere não possui o mesmo sentido do “processo” histórico que vimos no começo deste capítulo. Aqui o “processo” se concretiza no presente, pois supõe superar a configuração que passou. Por isso sempre assume o caráter de novo, de indeterminado.

A redução do conhecimento a apenas descrição entra, no território da comunicação, no campo do dispositivo – de ordem inabalável e de controle e que estão mais no âmbito da mediação dos meios/suportes. Sendo assim, a linguagem do diretor iraniano supera o dispositivo e pressupõe uma dialética: a imagem que não mimetiza, que não representa nada e, dessa forma, opera pela visualidade.

3.3. O acontecimentalizar: produção de