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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

RENATA MONASTIRSCY GAUCHE

Comunicação por imagens e produção de conhecimento:

“O Vento nos Levará”, de Abbas Kiarostami

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

RENATA MONASTIRSCY GAUCHE

Comunicação por imagens e produção de conhecimento:

“O Vento nos Levará”, de Abbas Kiarostami

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica,

com área de concentração em Signo e

Significações na Mídia, sob orientação da Profª Drª Lucrécia D`Alessio Ferrara.

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

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Banca Examinadora

________________________________________________

________________________________________________

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Agradecimentos

A realização dessa pesquisa só foi possível por conta do apoio do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da qual fui bolsista.

Agradeço profundamente à minha orientadora Profa. Dra. Lucrécia Ferrara, que me acolheu desde o início dessa trajetória e sempre me incentivou a lançar novos olhares sobre o modo como se pesquisa. Pela sua confiança, respeito, generosidade e atenção, sempre presentes.

Quero agradecer à minha família, que sempre me apoiou em minhas decisões, por mais que isso significasse ficar longe de casa.

Agradeço, emocionada, à todos aqueles que se fizeram presentes nesse caminho, principalmente os amigos que estão no meu coração, que sempre escutaram minhas angústias e dúvidas, acreditando no meu potencial de realizar este trabalho. Vocês são, sem dúvida, especiais.

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Resumo

GAUCHE, Renata. Comunicação por imagens e produção de conhecimento: “O Vento nos Levará”, de Abbas Kiarostami.

A presente pesquisa tem o objetivo de compreender como ocorre a produção de conhecimento por meio de uma comunicação por imagens, tendo como objeto de exemplificação o filme “O Vento nos Levará”, de Abbas Kiarostami. A questão que motiva a pesquisa é que as produções cinematográficas que exploram uma comunicação de massa, utilizada como técnica, solicitam cada vez menos a imaginação do sujeito. Abbas Kiarostami, em “O Vento nos Levará”, propõe uma nova linguagem cinematográfica que estimula o “ver sem mostrar”, que vem contra a corrente clássica cinematográfica imposta pelos moldes hollywoodianos, explorando um cinema de “esticar o pescoço”. Na procura de um entendimento de como este filme se configura como filme, por meio de uma nova linguagem cinematográfica que rompe com a estrutura narrativa, tentamos compreender a produção de conhecimento feita através das imagens críticas, sempre em vias de nascer. Tendo como metodologia de pesquisa a análise da configuração semiótica do filme, atrelada às bases teóricas solicitadas pelo objeto de estudo, a pesquisa se apoia nas seguintes hipóteses: 1) por meio de uma nova linguagem, Kiarostami procura outras formas de envolver o espectador e ver/ler o território, a cultura de seu país; 2) Kiarostami não propõe uma narrativa, em que as imagens possuem uma história a contar, mas se ocupa de uma abertura narrativa de formas em formação, ou seja, no filme não há narrativa e, portanto, não há entretenimento; 3) a comunicação por imagens, através de imagens dialéticas, potencializa o funcionamento da imaginação e a produção de conhecimento. A base teórica do presente estudo parte do conceito de que o homem pensa e se comunica por imagens, através dos estudos de Belting, Flusser, Bachelard e Calvino. Para compreender a linguagem de Kiarostami e como ele desconstrói o cinema, apoiaremos a pesquisa nos conceitos desenvolvidos por Kiarostami, Bernardet. Utilizaremos também os conceitos de visualidade, visibilidade e imagem dialética, desenvolvidos por Benjamin, Didi-Huberman, Sodré, Ferrara e Flusser, solicitados a fim de entender a comunicação como fluxo que se expande e se contrai num processo de inesgotável troca.

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Abstract

This research aims to understand how the production of knowledge occurs through a communication by images, where the object of exemplifying the film "The Wind Will Carry Us" by Abbas Kiarostami. The question that motivates the research is that the film productions that explore a mass communication technique used to request less the imagination of the subject. Abbas Kiarostami, in "The Wind Will Carry Us", proposes a new cinematic language that encourages the "see no show", which comes against the current molds imposed by classical Hollywood film, a film exploring "stretch the neck." In the search for an understanding of how this film as a film set, through a new cinematic language that breaks with the narrative structure, we try to understand the production of knowledge through images made critical, always about to be born. Having as a research methodology to analyze the semiotics of film setting, linked to the theoretical basis required by the object of study, the research is based on the following assumptions: 1) by means of a new language Kiarostami seeks other ways to involve the viewer and view / Read the territory, the culture of your country, 2) Kiarostami does not propose a narrative, in which images have a story to tell, but it occupies an opening narrative forms in training, in other words, there is no narrative in the film, and therefore there is entertainment, 3) communication through images, through dialectical images, boosts the functioning of the imagination and knowledge production. The theoretical basis of this study is the concept that man thinks and communicates through images, through studies of Belting, Flusser, Bachelard and Calvin. To understand the language of Kiarostami and how it deconstructs the film, will support research on concepts developed by Kiarostami, Bernardet, beyond the concepts of visuality, visibility and dialectics, developed by Benjamin, Didi-Huberman, Sodré, Ferrara and Flusser, requested to understand the communication flow as it expands and contracts in a process of endless change.

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Sumário

Introdução | 9 |

Capítulo 1 – ABERTURAS PARA UMA NOVA LINGUAGEM

CINEMATOGRÁFICA | 12 |

1.1. O contexto para um novo cinema no Irã | 12 | 1.2. O metacinema de Kiarostami | 16 |

1.3. Contextualização narrativa em “O Vento nos Levará” | 21 |

Capítulo 2 – ANÁLISE DE “O VENTO NOS LEVARÁ” | 35 |

2.1. Uma nova proposta de linguagem cinematográfica | 35 | 2.2. O estranhamento em “O Vento nos Levará” | 40 | 2.3. Um filme sem narrativa | 45 |

Capítulo 3 – PENSAR A COMUNICAÇÃO ATRAVÉS DAS IMAGENS | 56 |

3.1. Aprender a “ler” superfícies | 56 |

3.2. O vaguear em “O Vento nos Levará” | 66 |

3.3. O acontecimentalizar: produção de conhecimento através das imagens | 72 |

Considerações Finais – ABERTURAS PARA O ENTENDIMENTO DE UMA

INTERCULTURALIDADE | 82 |

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Introdução

   

Com o passar do tempo, minha atração por muitas coisas diminui, dia após dia. Quero dizer que já não tenho o mesmo grau de preocupação com os meus filhos, que meu apetite por comida é menos intenso, que o desejo de ver meus amigos é menos. O que substitui tudo isso e que se torna cada vez mais forte, embora não me atraísse em primeira juventude, ou eu não o percebesse, é o desejo de estar na natureza, de contemplar o céu, o outono, as quatro estações. Muitas vezes declarei a meus amigos: “essa é a única coisa que me faz temer a morte”. Não o medo de morrer, mas a ideia de perder a natureza que ainda tenho, a possibilidade de contemplar o mundo. Porque o único amor que aumenta de intensidade a cada dia, enquanto os outros amores perdem sua força, é o amor pela natureza. É por esse motivo que meus próximos filmes ainda continuarão a observar a natureza, e de fato seus temas constituirão um pretexto para encontrar-me de novo no meio dela. (KIAROSTAMI, 2004:188-189).

Sendo um dos diretores de cinema iraniano mais conhecido do mundo, Abbas Kiarostami sempre deixou claras suas intenções com seu modo particular de fazer cinema. Mais do que uma forma de experimentar novas construções e linguagens, sua vontade é de encontrar, no fazer cinematográfico, um modo de também fazer poesia, na qual podemos nos perder para, depois, nos reencontrar, como ele mesmo afirma.

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Como veremos no decorrer da pesquisa, seus filmes não são fáceis de serem vistos, por conta dos próprios elementos de linguagem que causam desconforto no espectador. Mas, ao mesmo tempo, mesmo com realidades culturais “diferentes” ele também possibilita o fluxo entre elas: entre o filme e o sujeito.

Com o intuito de tentar compreender como os filmes de Kiarostami se configuram e potencializam essas duas questões distintas, a dificuldade de serem vistos e a possibilidade dos fluxos, é através da análise fílmica de “O Vento nos Levará” (Bad ma-ra khahad bord, 118’, 35mm, cor) que iremos tentar compreender como o filme se comunica com o espectador, por meio de sua linguagem, a fim de ser possível refletir sobre o conceito de imagem e uma comunicação como produção de conhecimento.

No filme, podemos perceber a busca de Kiarostami para explorar os espaços de diálogo entre o filme e o sujeito que o assiste, potencializados através do percurso narrativo do Engenheiro entre os lugares do vilarejo visitados durante sua espera. Ao observar as relações travadas entre o Engenheiro e os habitantes locais, podemos refletir sobre como são constituídas as esferas de vivência entre os personagens do filme.

Ao observar uma região isolada com uma população desconhecida, o diretor, aos poucos, percebeu que o personagem principal do filme era ele mesmo. “Comecei a trabalhar sobre o tema da espera, sobre os espaços vazios. Sei que é preciso ter coragem para mostrar o nada, mas essa coragem era estimulada pela confiança que deposito no espectador, principalmente nestes tempos em que o cinema procura conquistar o público mostrando-lhe tudo” (KIAROSTAMI, 2004:250). Partindo dessa afirmação, é que a pesquisa em questão se baseia.

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vamos observar mais à frente, que o diretor iraniano questiona as suas inquietações e elabora críticas do fazer cinematográfico – o que chamamos de metacinema.

No segundo momento, vamos partir para um estudo de como o filme se configura, através de suas características de linguagem cinematográfica, como enquadramento, personagens, planos e luz. É por meio dessa análise que vamos poder perceber como Kiarostami, através de “O Vento nos Levará” questiona a visualidade narrativa do cinema.

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CAPÍTULO 1 – Aberturas para uma

nova linguagem cinematográfica

1.1. O contexto para um cinema novo no Irã

Produzindo uma média de 70 filmes por ano, o Irã está entre os doze países que mais realizam filmes no mundo. Segundo Meleiro (2006), apenas uma pequena parcela dessas produções (10%) – sendo a maioria filmes de arte – é mostrada para os outros países, através de festivais e cinemas comerciais no Ocidente.

O Novo Cinema no Irã surgiu no contexto pós-revolução Islâmica, que ocorreu em 1979 e transformou rapidamente a sociedade iraniana. O povo lutava por um regime democrático que atendesse às necessidades de todos e que seguisse as orientações do islã determinadas pela constituição do país. Em meio à revolução, o líder religioso Khomeini foi eleito por sua força política e religiosa, utilizando seu carisma para ocultar o verdadeiro interesse dos clérigos pelo petróleo iraniano.

Durante a revolução, os tribunais revolucionários islâmicos dizimaram uma parte da população. “As celas dos presídios eram cheias de manhã e esvaziadas no meio da noite. Nos corpos dos mortos, muitas vezes eram deixadas notas assegurando que aquele seria o fim de quem desobedecesse às leis islâmicas ou recusasse a vestir o véu” (MELEIRO, 2006:28).

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preço do petróleo e ainda oito anos de guerra com o Iraque, enfraquecendo a economia do país.

No antigo regime, o contexto cinematográfico iraniano era caracterizado por uma produção majoritária de filmes vulgares e obscenos, ainda que o país pudesse contar com cineastas independentes, mas que permaneciam fora dos circuitos comerciais. Com a Revolução, a exibição destes filmes considerados impróprios foi proibida.

Os anos que se estenderam da revolução até os anos 90 foram marcados pela produção de longas-metragens realistas, que tratavam de temáticas sociais. Para Abbas Kiarostami (2004), o período que vai de 1978 até 1982 foi considerado o pior momento em toda história do cinema iraniano, que passou a ter uma produção anual de vinte filmes.

A diminuição do número de produções iranianas foi resultado das medidas de “purificação” do cinema, o que acarretou na perseguição de alguns cineastas, que foram encarcerados, exilados e até mesmo executados. No período, o baixo orçamento, a competição com os filmes estrangeiros e a aplicação abusiva da censura, sem critérios claros, também contribuíram para o enfraquecimento do número de filmes. Tendo em vista que inúmeras pessoas da cena audiovisual foram exiladas, a criatividade e a produção ficaram comprometidas, principalmente pelas incertezas apontadas do que seria ou não censurado.

Com a diminuição do número de filmes iranianos, a cadeia de produção cinematográfica foi completamente interrompida. A retomada deu-se com a intervenção do Estado através do controle moral e do apoio financeiro. Essa foi a forma encontrada pelo governo para gerar um estilo nacional no qual a “imoralidade” seria eliminada através de um cinema puro.

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A instabilidade política e econômica pós-revolução diminuiu o interesse por investimentos na área cinematográfica iraniana. Neste período, o número de produções importadas aumentou consideravelmente, enquanto que os filmes realizados no Irã, durante o período anterior à revolução, tiveram a edição e os títulos reformulados, numa tentativa de se adaptar aos modelos islâmicos.

Com o objetivo de revelar uma sociedade islâmica livre de corrupção moral, o governo iraniano busca incentivar os diretores cinematográficos a produzirem filmes que trabalhem com temáticas ligadas à guerra e à República Islâmica. No período pós-revolucionário, o governo buscou nos filmes de guerra os canais de propaganda para orientar ideologicamente a população de acordo com as crenças do regime. Tais filmes serviam de controle social com o objetivo de ampliar o apoio ao islã.

De acordo com o Artigo 24 da Constituição, elaborada em 1979, que rege o regime islâmico, a mídia “é livre para apresentar qualquer matéria, exceto aquelas nocivas aos princípios fundamentais do islã ou aos direitos do público”. Já o Artigo 25 declara que “a liberdade de expressão e disseminação de pensamentos no rádio e na televisão na República Islâmica do Irã devem estar de acordo com os critérios islâmicos e com os interesses do país”.

A censura cinematográfica no Irã é vinculada ao Ministério da Cultura e Orientação Islâmica, que examina, através de uma equipe, o roteiro proposto e as pessoas envolvidas na produção, como os atores e equipe técnica – certificando-se de que a produção se encontra nos moldes estabelecidos pelas leis islâmicas. Uma nova análise é feita quando o filme é montado. Visitas aos locais de filmagem também são formas de controle encontradas pelo governo para verificar se os filmes continuam respeitando as

normas de boa conduta1.

                                                                                                                         

1

 De acordo com a regulamentação de 1996, publicada como “The Principles and Operational Producers

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Existe um forte interesse político nas instituições públicas relacionadas à produção cinematográfica, que definem quais filmes serão realizados e exibidos. Dessa forma, fica claro o objetivo do governo iraniano de fomentar a produção cinematográfica como forma de difundir uma ideologia islâmica. “No Irã, os valores morais e a orientação política do diretor, produtor e equipe técnica importam mais no momento de aprovação pelo Ministério da Cultura e Guia Islâmico do que um projeto bem definido ou um roteiro de boa qualidade” (MELEIRO, 2006:48).

Para Kiarostami, a chegada da Revolução extinguiu o cinema por cerca de quatro anos. No período, salas de cinema foram destruídas, incendiadas. No entanto, as dificuldades enfrentadas pelos cineastas permitiram o melhoramento das obras através do desenvolvimento de uma estética e linguagem próprias.

A produção cinematográfica iraniana no período pós-revolução é caracterizada por um cinema de autor de caráter militante, que procura, em diversos níveis, realizar uma crítica à sociedade iraniana – utilizando a metáfora como uma das principais

ferramentas.

De forma diferente ao período pré-revolução, o Novo Cinema se torna político, rejeitando as estruturas típicas do cinema comercial à procura de uma abordagem social que potencializasse o público para a ação. Para Meleiro (2006), a ideologia deste cinema político procura citar e exemplificar, na narrativa, as contradições e problemáticas existentes no Irã.

A linguagem desenvolvida pelos cineastas nos piores momentos da censura (década de 1980) foi aclamada por críticos do Oriente e do Ocidente e, sem dúvida, foi a forma que os cineastas encontraram para elaborar seus discursos. A metáfora, no entanto, é uma das formas de elaboração do discurso no cinema de arte (MELEIRO, 2006:79).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      personagens negativos com barba; 3.c) contato físico ou piadas entre homens e mulheres; 3.d) piadas sobre exército, polícia ou família; 3.e) palavras estrangeiras ou grosseiras; 3.f)  músicas estrangeiras ou  

qualquer tipo de música que evoque prazer e alegria; 3.g) mostrar de maneira positiva um personagem  

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1.2. O metacinema de Kiarostami

Não há nenhuma razão especial pela qual eu tenha me tornado um realizador cinematográfico. Meu pai era caiador de paredes e não me lembro de nenhum sinal de vida cultural em minha família. Não vejo, no meio em que vivi, nenhum sinal particular que me houvesse encaminhado para a carreira artística, e em especial para o cinema. Talvez seja por isso que até agora não tenha conseguido encontrar uma definição de cinema. Mas posso dizer o que não gosto nele. Não gosto quando se limita a contar uma história ou quando se torna um substituto da leitura. Não aceito que subestime ou exalte o espectador. (KIAROSTAMI, 2004: 181).

Abbas Kiarostami nasceu em Teerã, em 1940. Desde cedo sentiu necessidade de estar sempre ocupado. Já aos cinco anos não gostava de programas pré-determinados e procurava no porão de sua casa sempre alguma distração durante as tardes longas e quentes, enquanto se recusava a fazer a sesta.

Ainda hoje, adulto, tenho necessidade de estar sempre ocupado. Quando estou em casa, sou incapaz de ficar sentado, vendo televisão. [...] Sempre me senti pressionado pela urgência de comunicar meus sentimentos, para que ninguém esqueça que eu existo. (KIAROSTAMI, 2004:195).

Mesmo procurando alternativas para se comunicar, sempre teve problemas de relacionamento enquanto criança. Durante o primário, era solitário e soturno. “Acho que nunca falei com ninguém durante toda a escola primária. Sim, sequer uma palavra”, como afirma (KIAROSTAMI, 2004:194). Encontrou na pintura – que começou a praticar ainda quando pequeno – uma forma de lutar contra a solidão, uma espécie de terapia artística. Na poesia também.

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cotidiano, mas eram as obras neo-realistas italianas que ficavam mais tempo gravadas em sua mente.

[...] Era possível assistir a muitos filmes norte-americanos nas salas de Teerã. Um dia, minha irmã me levou ao cinema. Era a primeira vez na minha vida. Não me lembro do título do filme, mas lembro-me perfeitamente da primeira imagem que vi: o leão da Metro Goldwyn Mayer. Ele rugiu e eu fiquei morto de medo. Foi terrível. Na escuridão, minha mão procurava a de minha irmã, tentando apertá-la. [...] Em todo caso, adormeci antes do final da projeção, talvez porque, assistindo aos filmes hollywoodianos, já tinha a sensação de que aqueles personagens só podiam existir no cinema, e não na vida real. (KIAROSTAMI, 2004:196).

Foi reprovado em sua primeira tentativa no exame para ingressar no curso de Belas Artes e acabou por aceitar a trabalhar no escritório administrativo do Departamento de Estradas – visto que tinha deixado sua família aos 18 anos e precisava de dinheiro para o sustento. Como estudava de dia e trabalhava à noite, demorou 13 anos para se formar no curso.

Vizinha a meu escritório havia uma produtora de filmes publicitários, a Tabli Film, à época a mais importante de Teerã. Um dia apresentei-me aos escritórios deles e ofereci-me como diretor. A primeira coisa que me pediram foi um texto de um aquecedor qualquer. Passei a noite toda escrevendo um poema. (KIAROSTAMI, 2004:198).

Em menos de três dias o comercial já rodava na televisão com seus versos. Pouco a pouco fez progresso e, entre 1960 e 1969, realizou mais de 150 anúncios.

Para o diretor, fazer propagandas foi sua escola de cinema. Foi onde aprendeu a influenciar o espectador em propagandas de trinta segundos e em projetos gráficos que ocupavam apenas uma página ou coluna em impressos. Também fazia as telas de créditos dos filmes – foi quando descobriu a câmera cinematográfica.

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não percebi na hora o que eles me diziam, mas por muito tempo temi aqueles ‘truncamento de planos’. De qualquer maneira, lembro-me de que diziam que minhas publicidades eram boas, mas não para vender produtos. Por isso não prossegui nesse caminho (KIAROSTAMI, 2004:199).

Logo ingressou no Kanun – também chamado de Instituto de Desenvolvimento

Intelectual das Crianças e Adolescentes, o IDICA. Foi convidado para abrir um departamento cinematográfico, depois que o presidente do Instituto assistiu sua propaganda sobre a marca de aquecedores.

Fundado em 1965, o Kanun criou um espaço para as crianças e adolescentes do país,

com circuito de bibliotecas, ateliês de pintura, laboratórios de teatro e publicação de livros infanto-juvenis. O objetivo era incentivar a produção de obras destinadas ao público jovem. De acordo com o diretor iraniano, seu primeiro contato com a profissão de diretor de cinema aconteceu no Instituto.

No período pré-revolução islâmica, importantes organizações culturais possibilitavam

que os artistas tivessem liberdade de expressão em suas produções. O Kanun foi uma

das instituições que mais influíram no cinema social e cultural já desenvolvido no Irã. Segundo o diretor, a principal ruptura no cinema iraniano aconteceu com as primeiras pesquisas cinematográficas desenvolvidas no Kanun.

Para Kiarostami, o positivo ambiente de amizades que guiava o departamento foi fundamental para que os filmes desenvolvidos no Kanun dessem certo. Como os filmes eram financiados e não tinham como objetivo o lucro, suas produções tinham uma maior liberdade e não precisavam dos clichês cinematográficos como forma de atrair uma audiência. “Tínhamos liberdade para experimentar, livres de pressão da censura”, conta (KIAROSTAMI, 2004:201).

Outro elemento importante para o êxito dos filmes foi o público alvo, que era composto de crianças. Ao contrário dos filmes que abordavam temas com conotação sexual e

violência – e que imperavam no circuito comercial, os filmes do Kanun contavam

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Nossos trabalhos eram depositários de uma reflexão ausente nos filmes daquela época. A tendência cinematográfica nesse período era, por um lado, o cinema comercial cujo único objetivo era divertir os espectadores e, por outro lado, alguns exemplos de cinema engajado, de difícil intelecção para os espectadores. (KIAROSTAMI, 2004:200).

As produções desenvolvidas no Kanun durante a época de retomada, com a intervenção do Estado, continuaram a ser produzidas, sendo adaptadas ao novo modelo de censura religiosa e moral de arte e cultura imposto pelo regime e fez com que os cineastas refletissem mais sobre seu trabalho.

***

Antes de se tornar fotógrafo e cineasta, ainda no curso de Belas Artes, Kiarostami pintava – apesar de nunca ter se considerado um pintor. A própria academia o fez

perceber que a pintura era uma espécie de terapia. Considerava-se um voyeur,

sobretudo.

Quero dizer que me concentrava em detalhes que, para os outros, eram insignificantes. Interessava-me por tudo aquilo que lhes dizia respeito, mas jamais consegui pintar o que via. Sentia-me impotente diante de uma tela [...]. A descoberta da câmera fotográfica talvez tenha substituído a terapia da pintura. (KIAROSTAMI, 2004:186).

Segundo o diretor, na fotografia somos mais livres, já que no cinema é preciso contar uma história. Na fotografia, numa imagem estática, o espectador pode fazer sua própria viagem, podendo pensá-la até numa arte mais completa que o cinema. “O mistério de uma fotografia permanece em segredo porque é sem sons, não há nada em seu entorno. Uma fotografia não conta uma história, e por isso está em perene transformação. Sobretudo tem uma vida mais longa que a do filme” (KIAROSTAMI, 2004:185).

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Um dia em que não tinha nada para fazer (eram os primeiros anos da revolução, e nosso trabalho de cineastas fora interrompido por fatos políticos), comprei uma câmera fotográfica Yashica barata e fui até o campo. Sentia necessidade de sentir-me em unidade com a natureza, era ela que me guiava. E, ao mesmo tempo tinha necessidade de partilhar com os outros os bons momentos que testemunhava. Assim, comecei a tirar fotografias, para tornar, de alguma maneira, eternos esses momentos de paixão e dor. Há 25 ou 26 anos faço seriamente a fotografia. Nem sempre sou cineasta, pelo contrário, realizo um filme a cada dois ou três anos, mas frequentemente as regras narrativas me impedem de realizar certas imagens que tenho em mente (KIAROSTAMI, 2004:184).

A maioria de seus filmes acaba por explorar o espaço rural, através da natureza desértica, da imensidão das terras secas do Irã, repletas de montanhas cinzentas, onde há escassez da vegetação. Isso se deve, também em parte, por causa de sua infância. “Quando eu era garoto, a casa de minha família encontrava-se à margem de um trigal e recordo-me de ter-me enfiado muitas vezes no meio dele para estudar. Em casa, quando alguém perguntava onde eu havia me escondido, ouvia-se a resposta: ‘Abbas está no meio dos campos’” (KIAROSTAMI, 2004:249).

Conhecem a história do menino que pediu ao pai para lhe mostrar uma floresta? O pai concordou, e, quando chegaram, o pai perguntou se o menino avistava a floresta. Admirado, o menino disse: “Vejo, mas são tantas árvores que quase não consigo ver a floresta”. Quando se tem tanta árvore alinhada de um lado a outro, já não se veem as árvores. Vê-se outra coisa que transmite outro conceito (KIAROSTAMI, 2004:186).

O cinema de Kiarostami é caracterizado pelo legado de resistência. Suas obras mostram a inquietude de um autor que quer descobrir histórias a partir do cotidiano do povo iraniano, através de realidades simples, sem que as pessoas se sintam violentadas com o dispositivo da câmera e sem que suas verdades sejam deformadas com o intuito arrancar uma verdade – como ele próprio afirma. Sua busca é por realidades simples, “mas escondidas através das realidades aparentes” (KIAROSTAMI, 2004:105).

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cinematografia. É um pouco como deixar em branco a última página de um livro e oferecê-la ao espectador” (KIAROSTAMI, 2004:211).

Tanto nos filmes “Caso 1, caso 2” (Ghaziye shekl-e avval, ghaziye shekl-e dovvom, 1979, 53’, 16mm, cor) como em “Dor de dente” (Dandan-e dard, 1980, 25’, 16mm, cor) nasceram de episódios ocorridos com seu filho. “Uma noite, meu filho mais novo veio até mim e me pediu autorização para ir para a cama sem escovar os dentes. Perguntei a mim mesmo se não tratava de um problema ou não, e resolvi fazer um filme para explicar porque era melhor que o fizesse” (KIAROSTAMI, 2004:215-216). Já em “Com ou sem ordem” (Be tartib ya bedun-e tartib, 1981, 16’, 35mm, cor), queria explicar porque as pessoas deveriam arrancar o carro com cuidado quando o sinal abre.

Sou um daqueles artistas que cria sua obra a partir de si mesmo. O menino que chora no berço em “E a vida continua” talvez seja a imagem de minha infância. O homem que bate em “O viajante” sou eu adulto. O pai que descuida de seu filho sou eu também. São duas faces de minha figura de pai. Em “O viajante”, Qasem, que viajava sempre só, e Akbar, que gostaria de acompanhar o seu amigo, estão ambos muito próximos de minha pessoa. Do mesmo modo, em “Close-up”, o impostor sou eu (KIAROSTAMI, 2004:202).

1.3. Contextualização narrativa em “O Vento nos

Levará”

Logo que cheguei ao Curdistão, percebi que aquele lugar era o que eu procurava. Demorei dois anos para encontrá-lo. Tinha viajado por todas as regiões do Irã, exceto aquela. Estava curioso para conhecer uma região que, para mim, era somente um nome no mapa. Fiquei impressionado não apenas com a paisagem extraordinária, mas também com a atmosfera de outros tempos, determinada pelo isolamento em que viviam seus habitantes. Eles não faziam idéia do que fosse o cinema e trabalhavam sempre, sem parar. Vi com os meus próprios olhos um menino de cinco anos conduzir, sob um sol escaldante, um rebanho de carneiros. (KIAROSTAMI, 2004: 249-250).

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No filme, uma equipe de reportagem, liderada por um personagem chamado de Engenheiro, tem o objetivo de registrar uma tradicional cerimônia fúnebre, onde as mulheres desfiguram o próprio rosto como simbolismo de dor e luto. Na visita, a velha senhora que supostamente viria a morrer, melhora subitamente, afastando as chances da documentação da cerimônia.

A ideia original de “O Vento nos Levará” era também de um documentarista que queria registrar a cerimônia fúnebre tradicional das aldeias remotas do Irã. Mas, ao chegar à região, o documentarista se depara com a velha senhora que não vem a morrer – o que leva seu marido a negociar sua morte. Para permitir que o filme fosse realizado, ao final, a moribunda aceita o pedido.

Parecendo difícil concretizar a ideia, pela dificuldade de discutir sobre a morte com uma velha senhora moribunda, Kiarostami repensa a proposta e modifica o projeto original.

Chegando a Shiah Dareh, percebemos que a idéia original era impossível de ser realizada. Na presença de uma senhora verdadeiramente à beira da morte, percebemos não só o quanto era difícil qualquer tipo de comunicação, mas também nosso embaraço de envolvê-la em tal projeto. Além disso, seu estado de saúde não lhe permitia representar. Aquela era, desde o começo, uma idéia equivocada. Era indispensável mudar o projeto... No fim das contas, faz parte da minha maneira de trabalhar considerar também os riscos ou – talvez seja melhor dizer – a necessidade de modificar um filme em contato com a realidade e os seus imprevistos. (KIAROSTAMI, 2004:249).

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Cena de início do filme “O Vento nos Levará”

- Então, onde está o túnel? - Já o passamos.

- Quando?

- Alguém estava dormindo! - Onde ele está?

- Passamos lá atrás, perto de Biston. - Estamos indo a lugar nenhum. - Leia o endereço, para ver onde é. - Quantas vezes quer que eu leia?

- Depois da junção, pegamos uma estrada sinuosa. - Esta é a estrada sinuosa.

- Já estamos nela.

- Depois da estrada sinuosa, descemos o morro. Então, há uma árvore isolada.

- Há muitas aqui. - E depois? - Nada.

- Eu sei o que há. Nada. - Nada?

- Há uma estrada perto da árvore. - Vou lhe dizer o que há.

"Junto à árvore há uma rua sombreada mais verde que os sonhos de Deus".

(Risadas)

- O que há depois da árvore? Leia o endereço. - Fala de uma árvore alta, isolada.

- Há muitas nesses morros. - É muito alta?

- Sim, diz que é muito alta.

- Então, deve ser diferente das outras. - A árvore isolada? Há tantas.

- Estão todas no morro. - É isso que está aqui.

- Não acho que isso nos levará a algum lugar.

- Ali está.

(24)

- Lá em cima.

- Estou vendo... Que árvore grande! Veja! - Ele estava certo.

- Jahan, dê uma olhada. - Onde?

- Tarde demais, você vai ter que olhar pelo teto, mas não vai vê-la. Ou pela janela de trás se tiver coragem de se virar.

- Como é grande!

- Passamos a árvore isolada. - Mais duas ali. É lindo.

- Disse que estamos chegando a outras duas árvores. - Seria bom perguntar para alguém.

- Não se preocupe, acharemos alguém.

Como espectadores, ficamos, de certa forma, à espera que os personagens sejam apresentados. Durante toda esta sequência cinematográfica, marcada pelo diálogo acima, não vemos as pessoas que estão dentro do carro, não conhecemos os personagens em seu aspecto físico em um primeiro momento – e apenas vamos ver um ou outro.

(25)

Não apenas nesta primeira sequência, mas durante todo o percurso do filme, ficamos à espera da “história começar”. Ao contrário do cinema hollywoodiano, que tem como método o “contar uma história”, Kiarostami trabalha com situações desconectadas, incompletas, sempre tendo como base a desinformação. Em seus filmes, percebemos elementos como a utilização de não-atores e os finais abertos “indicando talvez a impossibilidade de uma resolução ou de final – tanto na arte como na vida” (KIAROSTAMI, 2006:106).

(26)

Vale Negro Engenheiro e menino, subindo a ladeira da aldeia

- As pessoas sempre chegam por aqui? Pergunta o Engenheiro. - Não, há vários caminhos diferentes. Responde o garoto. - Este é bem duro.

- Este não é o caminho principal. - Onde fica o caminho principal?

- É longe daqui. Este caminho é mais curto. - Foi por isso que o pegamos?

- Foi.

A criança é quem guia o personagem principal no percurso do filme. É ela que apresenta os lugares da aldeia, explica as tradições do lugar e dá as informações que o Engenheiro necessita sobre a senhora que está à beira da morte. Essas situações são sempre travadas enquanto há o movimento entre os dois pela aldeia, seja a pé ou de carro.

- Que linda vila branca. Por que se chama “Vale Negro”? - Os ancestrais deram esse nome.

- Não podem chamá-lo de “Vale Branco”? - Não, temos que chamá-lo pelo nome.

- Tem que continuar assim. Responde o Engenheiro.

(27)

- Nosso professor dá poesia de vez em quando. - Entendo.

Eles continuam a caminhar pela aldeia.

Construída entre duas montanhas, ao que parece, a aldeia se confunde com a natureza do Curdistão Iraniano. Para Ishaghpour (2004), “ela constitui um espaço contínuo, sem distinção entre dentro e fora, entre os tetos, os pátios, as casas ao pé dos rochedos: moradia, escultura, vielas, uma espécie de organicidade, de corpo, sem nada que separe; passa-se por tetos, pátios e casas alheias para se ir de um lugar a um outro” (KIAROSTAMI, 2004:150).

A ausência de história, de entrecho, não é suficiente para criar a impressão de real – o mesmo vale para as ruínas da aldeia e para as árvores. É preciso ainda um “ritmo”: o imprevisível dos acontecimentos, de alguma coisa em devir, o sentimento de não saber por onde avançar, os encontros ocasionais, a espera, o progresso ao sabor das possibilidades, sem a certeza de chegar aonde se quer ir. A vida e o filme tornam-se o aqui-e-agora de um presente, sem passado, sem história, sem projeto, sem futuro. (KIAROSTAMI, 2004:135-136).

Como colocando anteriormente, a maneira do diretor trabalhar é considerar os riscos e imprevistos e, assim, assumir a necessidade de modificar o filme depois do contato com a realidade. Em “O Vento nos Levará”, Kiarostami afirma que muitas das situações narrativas foram construídas a partir das vivências no vilarejo durante as filmagens.

“O Vento nos Levará” mostra o quanto de mim existe nos filmes que dirijo. Embora seja difícil e até inútil fornecer um percentual exato, não posso negar que em cada um desses personagens existe um pouco de mim: um habitante de Teerã, certa fase de minha vida, eu como cineasta e as perguntas que me faço. (KIAROSTAMI, 2004:252).

(28)

- Levantem, já dormiram demais, seus preguiçosos - Fala o Engenheiro para sua equipe, que está dentro do quarto.

- Levantem-se,trouxe maçãs frescas. Ele insiste. Esta é para Ali e esta para Keyvan.

- Olá. Fala o menino.

- Olá, como está? Responde o Engenheiro. - Bem. Trouxe pão fresco para vocês. - O que é?

- Pão.

- Temos pão fresco. O que mais podemos desejar?

Não teremos outra chance como esta - Fala o Engenheiro para sua equipe, enquanto continua a lavar as maçãs.

- Esta é para mim.

A maçã grande é para o tio Jahan. (A maçã cai e sai rolando). - Olha só isso! Ele fala.

Esta maçã não é de Jahan. Acho que é sua. Sim, sim, está chegando. Pegue.

- Tudo bem. Responde o menino. - Já ganhou a sua?

- Já.

- Aonde vai? - Para a escola. - Para a escola? - É.

- Você tem tempo para nos mostrar a vila? - Não, eu tenho prova.

- Vou com você até a escola. - Está certo.

(29)

Kiarostami conta que os problemas que o Engenheiro tem com sua equipe são os mesmo que ele teve com sua equipe durante as filmagens de “O Vento nos Levará”, e em especial com Mahmud Kalari, um dos mais importantes diretores de fotografia iraniano:

Lembrava-me de três ou quatro enquadramentos magníficos de velhos filmes de Kimiavi, nos quais davam-se mais espaço ao céu do que à terra. Ele já havia dito anteriormente que queria trabalhar comigo e, uma vez que era muito bom nas filmagens de exteriores e com luz natural, pensei que seria a pessoa certa para o filme. Entretanto, depois de uma semana de filmagens, percebemos que não éramos indicados para trabalhar juntos. De minha parte, estava convencido de que devíamos levantar cedo para desfrutar a luz natural das primeiras horas da manhã, já que mais tarde fazia muito calor. Kalari fazia questão de dizer que eu era o único disposto a levantar cedo; os outros queriam dormir. Ele nunca começava a trabalhar antes das duas ou três da tarde; portanto, não podia apreciar a beleza da aurora. Depois de dois meses de tolerância, uma parte da equipe regressou a Teerã, enquanto eu fiquei com o técnico de som e o com o operador assistente para terminar o filme. Parecia-me importante, ainda, deixar marcas, no filme, de minha dificuldade de trabalhar com a equipe. (KIAROSTAMI, 2004: 251-252).

A própria sequência da maçã também é um exemplo de como Kiarostami está inserido em seus filmes e neste, principalmente, já que o diretor relata que a imagem da maçã que oscila numa varanda e cai nas mãos de um menino ressurge em uma de suas poesias. “Para ‘preencher’ a espera, recorri a fatos, eventos, imagens, sensações que faziam parte de minha vida” (KIAROSTAMI, 2004: 251).

(30)

- Está procurando algo? Pergunta uma mulher.

- Minha câmera. Deixamos aqui, e ela sumiu. Responde o Engenheiro. - Você não trancou o carro. Passou a noite assim, você espera encontrá-la?

O Engenheiro cumprimenta a mulher enquanto caminha para a casa de chá.

- Tem sorte. Ela fala. - Obrigado. Muito obrigado.

- Eles esqueceram-na e não trancaram o carro. É milagre ainda estar aqui. Bem-vindo.

- Obrigado, é bondade sua.

- Aqui, mesmo se seu carro for de ouro, ninguém toca nele. Do outro lado da escola, os alunos estão curiosos.

É melhor trancar. - Está bem.

- Você trabalha com telecomunicações? Pergunta a mulher enquanto serve outra pessoa.

- Telecomunicações? Sim.

- Este lugar é um mundo de telecomunicações. Por que está aqui? - Entendo.

Nunca vi uma mulher servir antes. - De onde você apareceu?

- O quê?

- Você tem pais, não? Quem serviu chá para seu pai? - Minha mãe.

Por que diz que nunca viu isso? Todas as mulheres servem. Elas têm três ofícios: De dia, elas trabalham.

À noitinha, servem e, à noite, trabalham. Menos a sua mãe.

- Obrigado mesmo assim.

(31)

Estacione ao lado do engenheiro. Lá é apropriado. Quando você dá a partida, você polui o café. Você me faz perder os clientes.

- Onde mais posso estacionar? Responde o homem. - Onde o engenheiro estacionou.

Você nos sufoca quando dá a partida. Engolimos fumaça em vez de chá. - Vou estacionar aqui mesmo.

- Você não pode. Não tem esse direito.

É meu café, meu território. Você não pode estacionar aqui. - Qual é o problema?

- Estacione junto ao engenheiro. [...]

Apesar de a senhora afirmar que aquele é o “mundo das telecomunicações”, em vários momentos do filme, quando celular do Engenheiro toca, ele precisa pegar o carro e ir ao ponto mais alto do vilarejo, que ao nosso ver parece ser o cemitério. Nesses momentos, ele sempre encontra um senhor, que não aparece fisicamente para nós espectadores, que está cavando um poço para instalar, ao que parece, uma antena para telecomunicações:

- Olá. Cumprimenta o Engenheiro.

- Olá. Responde o homem que não aparece.

- Por que parou de cantar? Você canta tão bem. Vamos, continue a cantar.

- Não ouso.

- Por quê? Você está aí e eu, aqui. Não podemos nos achar nos olhos. Não consigo ver você. Fala o Engenheiro.

- Mas eu consigo. - O que está fazendo aí? - Estou cavando um poço.

- Não se cavam poços em morros. - É uma valeta.

- Para que uma valeta? - Para as telecomunicações. - Por que está sozinho?

- Trabalhar sozinho simplifica tudo.

(32)

Vemos um osso voar ao alto, sendo pegue pelo Engenheiro. - Ele era alto. Fala o Engenheiro.

- É do seu tamanho.

- É a perna esquerda ou direita? - É o osso da perna, não um sapato.

Em dado momento do filme, após várias vezes atender o celular, o Engenheiro presencia o soterramento deste homem que está a cavar. Rapidamente avisa aos homens do vilarejo e disponibiliza seu carro para o resgate do mesmo. Visto que ficou a pé, o Engenheiro pega uma carona com o médico em sua motocicleta. Permeados pelos campos de trigo das montanhas, eles conversam sobre a morte e, também, sobre a senhora que está debilitada:

- Doutor, você estava dizendo... Qual o problema dela? Indaga o Engenheiro.

- Nada, ela só está velha e fraca. Ela é só um monte de ossos e não está nada bem.

- A velhice é uma doença terrível. - Sim, mas há doenças piores. A morte. - A morte?

- Sim. A morte é o pior. Quando você fecha os olhos para este mundo, esta beleza, a maravilha da natureza e a generosidade de Deus, quer dizer que você nunca mais voltará.

- Dizem que o outro mundo é mais bonito.

- Mas quem voltou de lá para nos contar se é bonito ou não? “Dizem que ela é linda como uma huri do céu! Mas eu digo que o suco da vinha é melhor. Prefira o presente a estas belas promessas. Mesmo um tambor parece melodioso à distância. Prefira o presente”.

(33)

No filme, já faz mais de duas semanas que a equipe está à espera pela morte da senhora. Os companheiros do Engenheiro partem, deixando-o para trás. Já é noite. Numa fusão, vemos a alvorada. O Engenheiro caminha pelo vilarejo deserto com sua mala. Só escutamos os animais. Ele acende um cigarro. Observa a casa da senhora. Vemos vultos pela janela e ouvimos um choro. O Engenheiro caminha para o carro.

O tempo passa e já o sol já está forte. De longe, escutamos vozes de mulheres – seria o início do ritual? Elas caminham em procissão. São muitas. Ele fotografa. Após um tempo, vemos o Engenheiro jogar água no carro. Vemos o osso humano. Ele o pega e atira em direção ao riacho. Observamos o seu percurso. A força da natureza em ritmo lento. Sobem os créditos.

(34)

Em “O Vento nos Levará”, Kiarostami afirma que teve muita dificuldade de trabalhar com os habitantes do local, visto que era muito difícil convencê-los a abandonarem momentaneamente os campos para participarem da filmagem. Mesmo convencendo-os a participarem, ele também não conseguia dirigir os atores como queria, já que suas maiores preocupações eram suas tarefas. A vantagem é que ninguém se dava conta da presença da câmera.

Foi uma experiência cansativa, difícil. Em alguns momentos, não sabia se conseguiria terminar o filme. Depois dos problemas no set e na fase de montagem, por muito tempo pensei que fosse um mau filme. Não conseguia libertar-me dele. (KIAROSTAMI, 2004:252).

Ao observar uma região isolada com uma população desconhecida, o diretor aos poucos percebeu que o personagem principal do filme era ele mesmo. Partindo da próxima afirmação, é que a pesquisa em questão se baseia:

Comecei a trabalhar sobre o tema da espera, sobre os espaços vazios. Sei que é preciso ter coragem para mostrar o nada, mas essa coragem era estimulada pela confiança que deposito no espectador, principalmente nestes tempos em que o cinema procura conquistar o público mostrando-lhe tudo. (KIAROSTAMI, 2004:250).

(35)

CAPÍTULO 2 – Análise de “O Vento

nos Levará”

2.1. Uma nova proposta de linguagem

cinematográfica

Em minha noite, tão breve, oh pena O vento vai de encontro às folhas Minha tão breve noite completa-se de Atroz angústia

Ouve! escutas o sopro das trevas? Dessa felicidade sinto-me estranho. O desespero já me é costume Ouve! escutas o sopro das trevas? Ali, na noite, algo se passa

A lua é vermelha e de angústias [...]

(Trecho retirado do poema “O Vento nos Levará”, de Forough Farokhzad).

Através de uma construção fílmica num vilarejo do Curdistão Iraniano, que possui um cotidiano artesanal onde as pessoas utilizam o trabalho árduo com a terra para a sobrevivência, Kiarostami explora uma nova linguagem cinematográfica. Como veremos no decorrer do capítulo, é através desta nova linguagem que Kiarostami procura no cinema outras formas de envolver o espectador e ver/ler o território, a cultura do seu país.

(36)

Voltando ao primeiro capítulo, podemos perceber que, mesmo tentando “contar a história do filme”, algo parece faltar. É como se os parágrafos escritos fossem pequenas histórias contadas separadas, em que o ponto em comum é o mesmo personagem, no mesmo local, mas algo falta, não se relaciona. Esse texto não é casual: no filme não há uma história a ser contada. É quando nos perguntamos: como se dá a narrativa de “O Vento nos Levará”?

“O Vento nos Levará” é a espera de uma ação que não se concretiza. No percurso do filme, o elemento principal na linguagem de Kiarostami é a falta de informação, que reverbera em todo o contexto do filme. O que percebemos é que os personagens não aparecem, não há distinção entre o passar dos dias, não há começo, meio e fim das conversas e os diálogos são entrecortados. Ou seja, a falta de informação vai afetar toda a construção narrativa, que se torna fragmentada e desconexa.

Estes elementos descritos vão aparecer no filme de forma repetitiva: Kiarostami consegue transmitir para os espectadores a monotonia do passar dos dias sem ter o que

fazer, sentimento experimentado pelo Engenheiro. Como por exemplo, na cena do

celular: “Nós também nos cansamos aqui. Não sabemos o que fazer nesta província”, fala o Engenheiro no celular, em uma das vezes.

(37)

Um sentimento de inadequação por parte do espectador surge: o filme não é fácil de ser assistido. Enquanto assistimos ao filme, nos sentimos perdidos. Mexemos de um lado para outro, suspiramos. Se o filme é visto em casa, então é que fica difícil: temos vontade de colocar “pause” o tempo inteiro, seja para fazer qualquer coisa. Sentimo-nos incomodados, “cutucados” e “invadidos”.

Tudo isso, para mim, tem a ver com um problema de inquietude, com o fato de ter de sobreviver de qualquer maneira e reagir a um profundo sentimento de inadequação. [...] Muitos consideram que na vida é preciso estabelecer uma meta para encontrar o sucesso, mas eu não acredito que funcione dessa maneira. Talvez no mundo dos negócios ou no âmbito científico. Na arte, ao contrário, o aperfeiçoamento só pode surgir da inadequação. (KIAROSTAMI, 2004:181).

(38)

Para Kiarostami (KIAROSTAMI, 2004:130-131), a relação afetiva é fundamental para que haja uma comunicação com os atores não-profissionais durante os longos períodos de trabalho. Suas relações são estabelecidas com muita antecedência ao início das filmagens e seu processo é bem diferente dos habituais construídos entre o diretor e seus atores.

Para o diretor, é somente assim que eles conseguem, de certo modo, representar. Ao contrário dos atores profissionais, estas pessoas não conseguem receber ordens e fazer exatamente o que o diretor quer.

Isso cria uma tal aproximação que não se sabe mais quem escreveu os diálogos, você ou eles, se é você que dirige ou o inverso. Acabo por precisar vê-los com frequência, eles se tornam uma parte de mim, e vice-versa. Se há atuações sensíveis em meus filmes, isso se deve a essa relação afetiva que existe entre mim e esses atores. (KIAROSTAMI, 2004:130-131).

O objetivo de Kiarostami é que a relação caminhe para um ponto em que o ator não-profissional faça o que ele quer e da forma mais natural possível, como na cena em que o Engenheiro pergunta para o menino se ele o acha mau:

- Como está a inválida? Pergunta o Engenheiro. - Bem. Responde o menino.

(39)

- Sim.

- Ontem à noite ela tomou a sopa de Tajdolat. - Tajdolat? A mulher que serve?

- Isso. Ela tomou tudo. - Houve outros sinais? - Sim. Ela está falando. - Está falando?

- Está.

- Venha e sente-se um minuto. - Como assim, falando?

- Minha avó falou com meu tio ontem à noite. Ela o reconheceu. Depois, pediu notícias da família. Meu tio chorou. Ele perguntou à minha mãe: "Sou um mau filho?". Minha mãe disse: "Não, você não é mau, você é só ocupado demais". Então eles se reconciliaram. Ele disse que estava partindo para Kermanshah para pedir uma licença e que voltaria.

- Imagine só! Então, ele partiu.

O Engenheiro abaixa a cabeça, pensativo.

- Pode responder com sinceridade? Ele pergunta pro menino. - Claro.

- Você acha que sou mau? - Não.

- Tem certeza?

- Tenho. Responde o menino rindo, meio sem graça. - Como pode ter certeza?

- Eu sei. Você é bondoso.

- Bem, como eu sou bondoso então, você me arruma uma tigela para buscar leite?

Na segunda parte da sequência, quando o Engenheiro e a criança estão no plano/contra plano, é Kiarostami quem dirige os diálogos – ou seja, a pessoa que está do outro lado contracenando com o ator, seja a criança ou o Engenheiro, é o Kiarostami. Essa é a técnica desenvolvida pelo diretor e se repete, geralmente, nos planos/contra planos de seus filmes (KIAROSTAMI, 2004).

Logo que a criança é perguntada se o Engenheiro (no caso, Kiarostami) é mau, ela responde que não, mas percebemos claramente que ela não acredita naquela resposta, como se ela estivesse respondendo para ser educada.

(40)

2.2. O estranhamento em “O Vento nos Levará”

De acordo com Chklóvski, teórico da escola formalista russa, a obra de arte é desenvolvida através de procedimentos que levam o receptor a ver a realidade em forma de re-conhecimento, ou seja, não apenas uma identificação, mas o conhecer outra vez. Neste caso, a obra não é apenas a expressão direta do sentimento do autor, ela é sempre construção e jogo, no que ele chama de estranhamento.

Para Ferrara (2009), Chklóvski apóia sua teoria na ação de “estranhar” o objeto de arte, possibilitando que haja novas percepções opostas àquelas estabelecidas pelo hábito, que permeiam a sensação do “já visto”. Ao propor uma faceta incomum, o artista consegue destruir os clichês e associações estereotipadas, impondo uma nova forma de o objeto de arte ser percebido, em que a deformação do ato criativo permite que seja alcançada uma densidade perceptiva.

A arte é feita para dar a sensação de coisa enquanto coisa vista e não enquanto coisa reconhecida; o procedimento da arte é o procedimento da representação insólita das coisas, é o procedimento da forma confusa que aumenta a dificuldade e a duração da percepção, porque em arte o processo de percepção é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é o modo de viver a coisa no processo de sua consecução, em arte aquilo que está feito não tem importância. (CHKLÓVSKI apud FERRARA, 2009:34).

Alcançar o estranhar, segundo Ferrara (2009), não significa que o autor tenha que substituir o simples pelo elaborado. A busca é pelo singular, no descentramento do uso comum, em que o produto se torna difuso, atravessado: uma contra-comunicação que se torna mais difícil e ao mesmo tempo mais fértil para o receptor. “Na duração perceptiva, a arte é percebida ou apreendida não na sua espacialidade, mas na duração, na continuidade da percepção” (FERRARA, 2009:35). Entre obra e receptor se estabelece uma relação torcida, densa.

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Não deixo os espaços em branco apenas para que as pessoas tenham algo para completar. Deixo-os em branco para que as pessoas possam preenchê-los de acordo com o que pensam e querem. Em minha perspectiva, a abstração que aceitamos nas outras formas artísticas – pintura, escultura, música, poesia – também pode entrar no cinema. Em persa temos um ditado que afirma, quando alguém olha algo com verdadeira intensidade: “Tinha dois olhos e pediu mais dois emprestados”. Estes dois olhos tomados de empréstimo são aquilo que quero capturar (KIAROSTAMI, 2004:184).

Segundo o formalista russo, é através da atividade criativa do artista que está calcada a teoria do estranhamento. Quando Kiarostami propõe uma nova possibilidade de linguagem, através dos elementos descritos, ele potencializa a construção de circunstâncias singulares da percepção. Segundo Ferrara (2009), estranhar é a desautomatização da percepção com o intuito de criar um específico artístico. Sobre “O Ventos nos Levará”, afirma Bernardet (2004):

Sempre falta algo para que possamos firmar os pés num chão seguro. O que fica não é a resposta a alguma indagação, a resolução de algum problema, mas o não-saber, a hipótese, a possibilidade, a dúvida. A certeza, nunca. O que fica é o movimento que se desenrola no tempo, não a sua finalidade. O que imposta na busca é o seu dinamismo, não o seu objetivo (BERNARDET, 2004:57).

O estranhamento supõe uma reação perceptiva que está subjacente a ele próprio. É quando se cria uma reação que desestabiliza o que se estranha e o modo como se estranha. Nesse sentido, quando Kiarostami propõe uma linguagem outra em seu cinema, em que toda a construção é posta em jogo, podemos pensar que ele está, a nosso ver, estranhando o objeto da arte.

(42)

Enquanto os dois conversam sobre a máquina fotográfica, o objetivo do personagem de estar na aldeia e a função do servir, o diálogo entre os dois é entrecortado por outro diálogo: enquanto a câmera está enquadrada no personagem principal, a senhora começa a conversar com outra pessoa sobre onde estacionar o carro – que não aparece em momento algum, nem o homem e muito menos o carro.

Num primeiro momento, ficamos sem entender com quem ela está falando. Sentimo-nos perdidos. Só percebemos que não ela não fala com o Engenheiro após algum tempo.

Dessa forma, ao invés de termos um plano geral, mostrando a disposição dos personagens em cena, que é o que estamos acostumados a ver em montagens, Kiarostami utiliza apenas o plano/contra plano das pessoas que estão na casa de chá. Mas o homem que quer estacionar o carro, que é parte integrante da ação que é apresentada, não aparece em nenhum momento.

Para Bernardet, deixar as ações em aberto é uma característica do diretor. Assim, ele consegue arejar o plano/contra plano provocando uma sensação de instabilidade em relação ao espaço, já que as coordenadas espaciais nunca ficam de fato configuradas. Nunca temos certeza de onde os personagens – que normalmente não aparecem, se encontram espacialmente. Apenas temos uma sugestão.

Para conseguir este feito, o diretor dissocia a imagem do som, como já pudemos perceber também em outros momentos de “O Vento nos Levará”, como na sequência de início do filme, quando temos um plano aberto do carro percorrendo a estrada enquanto apenas ouvimos a conversa do que aparenta serem dos passageiros que estão em seu interior.

(43)

Para o diretor, o som chega a ser mais importante que a imagem, já que a superfície deixa de ser bidimensional e passa a trazer uma terceira dimensão: uma profundidade da imagem. Para ele, o sonoro pode assumir o papel do que não é visível. Mas isto não

significa que este papel esteja claro para os espectadores.

Outros momentos em que o extracampo e a dissociação entre imagem e som são bem presentes são as sequências em que o Engenheiro trava conversas com um homem que está a cavar um poço:

- Olá. Cumprimenta o Engenheiro.

- Olá. Responde o homem (que não aparece).

- Por que parou de cantar? Você canta tão bem. Vamos, continue a cantar.

- Não ouso.

- Por quê? Você está aí e eu, aqui. Não podemos nos achar nos olhos. Não consigo ver você. Fala o Engenheiro.

- Mas eu consigo. - O que está fazendo aí? - Estou cavando um poço.

- Não se cavam poços em morros. - É uma valeta.

- Para que uma valeta? - Para as telecomunicações. - Por que está sozinho?

- Trabalhar sozinho simplifica tudo.

- É bom, você não tem patrão. O que é isso aí atrás de você? Vire-se... para a esquerda. Isso que você encostou. Cuidado para não quebrá-lo. Tente soltá-lo. Puxe para fora. Jogue para mim.

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- É do seu tamanho.

- É a perna esquerda ou direita? - É o osso da perna, não um sapato.

Durante o filme, todas as vezes que o Engenheiro tem que subir o morro para atender o celular, ele acaba por encontrar este homem que está a trabalhar para que seja instalada uma antena de telecomunicações. Todas as vezes eles conversam, seja sobre o trabalho ou a morte, ele nunca aparece. Apenas quando é soterrado, seu corpo é mostrado e,

mesmo assim, de forma bem rápida.

Estes elementos exemplificados e analisados nas sequências também nos fazem refletir acerca do estranhamento como estratégia de percepção, que supõe uma relação com

aquilo que é percebido pelo modo como se percebe. Para Brecht, o efeito de

distanciamento, como tradução do estranhamento, supõe que o espectador, ao invés de ter a possibilidade de experimentar uma vivência, precisa se sintonizar com ela, ou seja, sair da automatização daquilo que vem pronto e partir para a ação. Para Kiarostami, o espectador, ao assistir “O Vento nos Levará”, não tem apenas que se identificar com a ação, mas descobrir suas soluções.

Mas para que o espectador consiga descobrir soluções ou perceber as encontradas pelo diretor, ele precisa se afastar do filme, que é justamente o que o estranhamento propõe. “Para poder interferir na realidade é necessário reconhecê-la, mas como processar esse reconhecimento se a realidade se tornou rotina, hábito familiar. Há necessidade de produzir-se uma interferência que permita ver à distância, isto é, longe de condicionamentos”. (FERRARA, 2009: 37).

Ao utilizar todos estes elementos em seus filmes e, principalmente em “O Vento nos Levará”, Kiarostami provoca um afastamento. É o que Ferrara, apoiada nos estudos de Chklóvski e Brecht afirma como anti-representação: o que sobra é a distância entre o que é dito e o que se quis dizer, a negação, a diferença.

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A arte, neste momento, deixa de ser um produto com um significado, e passa a ser a linguagem que se processa e que se estrutura no processo. Ela exige que o receptor esteja ativo e opere com esta linguagem, transformando-a e transformando, também, o universo que o cerca. Este espectador, no momento em que compactua com esta proposta, deixa de ser mero espectador da arte e passa a ser um usuário da linguagem, no qual o “significado não é ou está, mas processa-se” (FERRARA, 2009:43).

2.3. Um filme sem narrativa?

A ausência de história, de entrecho, não é suficiente para criar a impressão de real – o mesmo vale para as ruínas da aldeia e para as árvores. É preciso ainda um “ritmo”: o imprevisível dos acontecimentos, de alguma coisa em devir, o sentimento de não saber por onde avançar, os encontros ocasionais, a espera, o progresso ao sabor das possibilidades, sem a certeza de chegar aonde se quer ir. A vida e o filme tornam-se o aqui-e-agora de um presente, sem passado, sem história, sem projeto, sem futuro. (KIAROSTAMI, 2004:135-136).

Temos a impressão de que os filmes de Kiarostami se baseiam no improviso e, por isto, muitos críticos de cinema e estudiosos o aproximam do neo-realismo italiano, que busca uma relação direta com a realidade. Para Deleuze (2007), apoiado em Zavattini, o neo-realismo é a arte dos encontros fragmentários, efêmeros, interrompidos, fracassados. É um cinema em suspensão e não mais de ação, em que há um “afrouxamento dos vínculos sensórios-motores” (DELEUZE, 2007:19).

De fato, podemos afirmar que os filmes de Kiarostami também acabam por buscar os encontros fragmentários, que se aproximam de um neo-realismo italiano em que, para Deleuze, a conexão das partes não é dada e no qual os personagens estão ausentes na sua subjetividade e, portanto, remetem ao vazio.

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do que vemos nos seus filmes, mas significações construídas. Faz parte dessa composição disfarçar a construção, nos levando a uma ilusão: não há construção” (BERNARDET, 2004:143). A própria casa de chá é fruto de uma construção, já que não existe este tipo de estabelecimento no Curdistão Iraniano, como afirma o diretor. Sobre “O Vento nos Levará”, ele afirma:

Há algo que respeito em geral nos meus filmes: tento gravar na memória o primeiro encontro com uma nova região, meu primeiro encontro com as pessoas. Tento me lembrar como foi o dia da minha chegada num vilarejo desconhecido, como reagiram as pessoas, qual foi meu primeiro olhar. Nós nos prejudicamos tanto quando criamos hábitos. Depois de encontrar uma região, de tanto ir até lá, nos acostumamos. Trabalhei seis meses naquele lugar. Conhecia-o como minha própria rua. Mas tinha que voltar à minha impressão do primeiro dia, ao meu primeiro olhar e ao primeiro olhar das pessoas sobre mim (KIAROSTAMI apud BERNARDET, 2004:143-144).

Quando Kiarostami propõe um cinema que, de certa forma, rompe com as estruturas do cinema clássico, por meio da construção fílmica que estimula o “ver sem mostrar”, podemos dizer que ele vem contra essa corrente clássica, estabelecendo outras formas do fazer cinematográfico. “Ao contrário, minha maneira de enquadrar a ação obriga os espectadores a manterem-se mais diretos e a esticar o pescoço para tentar enxergar aquilo que não mostro!” (KIAROSTAMI, 2004:184).

Para Bernardet (2004), ao contrário das narrativas tradicionais, em que conhecemos os objetivos dos personagens e ficamos à espera para que o mesmo seja alcançado, o desconhecimento dos objetivos que conduzem os personagens resulta de uma trajetória que não se dá em linha reta, mas que se espalha em pausas e desvios. Nunca temos certeza do que estamos vendo. Esta insegurança faz com que prestemos muita atenção em todos os detalhes do filme.

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independentemente de quem as estiver resolvendo (KIAROSTAMI, 2004:183 e 184).

É quando podemos pensar em um cinema sem narrativa e, portanto, sem entretenimento. Como já pudemos perceber na descrição do filme no primeiro capítulo, não há dramatização do personagem e, nem ao menos, um contexto do filme. Analisemos a sequência em que o Engenheiro conversa com a mulher que o está hospedando e à equipe :

- Você consegue um pouco de leite para nosso café da manhã? Pergunta o Engenheiro, enquanto faz a barba.

- Não tenho vacas. E estou sozinha. Diga a Farzad para trazer um pouco – responde a mulher grávida, enquanto estende, aparentemente, um rolo de lã.

- Não entendo isso.

- Peça ao garoto, ele trará um pouco.

- Estamos no campo, gostamos de consumir produtos locais. - Não tenho nada. Não tenho nem vacas. Tenho muito trabalho.

- Onde estão as pessoas? Ontem, andando pela aldeia, não vi ninguém, só crianças e velhos.

- Os jovens trabalham no campo, na agricultura. Ninguém fica ocioso. Só os mais velhos e as crianças ficam na aldeia.

- Onde estão os jovens?

- Acabei de dizer. Estão trabalhando no campo. O milho e a cevada estão prontos para a colheita. Os jovens trabalham três meses. No inverno, eles não trabalham. Eles ganham a vida durante três meses. No inverno, eles sentam por aí, bebendo chá. Não há muito o que fazer no inverno.

- Aparentemente, não estão ociosos.

- Não, eles não fazem nada. Sentam-se ao redor do fogo para se aquecer. Passam as noites juntos.

***

Referências

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