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3 A TRIBUIÇÃO DE S ENTIDO

3.1 A LGUNS C ONCEITOS DE H ANNAH A RENDT

3.1.1 L ABOR , T RABALHO E A ÇÃO

Ao utilizar a expressão vita activa para se referir às três atividades humanas que considera fundamentais — labor, trabalho e ação, que serão abordados mais adiante —, Hannah Arendt, em seu livro A Condição Humana, evidencia o lugar de destaque que confere à política, apontando que esta expressão, “que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho onde, como vita negotiosa ou actuosa, reflete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos.” (ARENDT, 2005, p. 20)

A autora afirma que esta expressão, em Agostinho, ainda reflete seu significado original, porque, depois desta época, a expressão passou a “denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo.” (ARENDT, 2005, p. 22)

Arendt recorre à filosofia clássica para caracterizar a atividade política, partindo do conceito grego de vida na polis, na qual o modo de vida político “denotava uma organização política muito especial e livremente escolhida, bem mais que mera forma de ação necessária para manter os homens unidos e ordeiros.” (ARENDT, 2005, p. 21)

De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de bios politikos: a ação (praxis) e o discurso (lexis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos (ta ton anthropon pragmata, como chamava Platão), que exclui estritamente tudo o que seja apenas necessário ou útil. (ARENDT, 2005, p. 34)

Aqui, a função da política refere-se, fundamentalmente, à atividade dos assuntos humanos que são de interesse comum aos cidadãos. Não há como falar em bem comum, se a significação deste não puder ser compartilhada. Para tanto, a fim de que exista o

compartilhamento de significados, há a necessidade da existência de espaços comuns, em que as pessoas possam se comunicar. Na visão desta autora, é o aparecimento da polis, ao inaugurar um espaço público para o diálogo, que instaura a política propriamente dita.

É por isso que a palavra adquire especial importância no conceito de ação de Arendt. “É o discurso que faz do homem um ser político.” (2005, p. 11) Para Arendt, “o ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência.” (2005, p. 35)

O sentido stricto de política é, pois, indissociável da ação, da palavra — uma vez que a ação só se dá pela palavra — e da polis. Em posição diametralmente oposta, a violência é o fracasso da ação e da palavra, constituindo, assim, a negação da política. É a ação que realmente diferencia o homem de qualquer outro ser vivo sobre a Terra.

O labor consiste nas atividades ligadas à manutenção biológica da vida, “corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida.” (2005, p. 15)

O labor diz respeito às práticas de subsistência do homem, à luta pela sobrevivência, consistindo no esforço de perpetuação da vida e continuidade da espécie. O labor, portanto, esgota-se na própria tentativa de manutenção da vida, e as atividades a ele relacionadas não apresentam durabilidade, consomem-se no exercício de tal manutenção. Tudo o que é fruto do labor volta-se para o ciclo da natureza, sendo consumido e absorvido nesse processo.

O trabalho, por sua vez,

é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. (ARENDT, 2005, p. 15)

O fruto do trabalho revela-se nas obras que permanecem no mundo ou para além da vida, tendo como finalidade principal a durabilidade no mundo. Conseqüentemente, ao promover durabilidade, o trabalho interrompe o ciclo da natureza. Diferentemente do labor, o fruto do trabalho não se consome, embora possa se desgastar pelo seu uso.

O mundo é, portanto, uma criação do homem que não se opõe à vida. Pode-se perceber, então, que a distinção entre labor e trabalho não depende do sujeito que se dedica a tais atividades.

A atividade que depende essencialmente do sujeito e o caracteriza como ser humano é a ação. Para Arendt, trata-se da “única atividade que se exerce diretamente entre os homens e sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (2005, p. 15). A autora, para reforçar esta idéia, recorre ao idioma dos romanos, “que empregava como sinônimas as expressões ‘viver’ e ‘estar entre os homens’ (inter homines esse), ou ‘morrer’ e ‘deixar de estar entre os homens’ (inter homines esse desinere).” (2005, p. 15)

Neste contexto, Arendt estabelece uma relação de tais atividades com outros conceitos fundamentais de sua obra, que se interconectam, tais como as noções de tempo, imortalidade, pluralidade, singularidade e liberdade.

Para Arendt (2005, p. 16) “a pluralidade é a condição da ação humana [e de toda a vida política] pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.”

Sem a pluralidade não há ação, e o discurso destitui-se de sentido político.

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas. (ARENDT, 2005, p. 188)

A autora define pluralidade com base na singularidade humana, isto é, o fato de cada ser humano, mesmo sendo condicionado pelo mundo, ser único. Essa natureza singular é enfatizada em relação aos demais seres vivos — “embora vivamos agora, e talvez tenhamos que viver sempre, sob condições terrenas, não somos meras criaturas terrenas.” (2005, p. 19) Sem a pluralidade não há, pois, singularidade. Ao ser humano só é possível manifestar a sua singularidade em meio à pluralidade dos demais cidadãos da polis. E isto só se dá, portanto, por meio da ação. Mesmo sendo todas as atividades humanas condicionadas pelo fato de os homens viverem juntos, “a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens.” (ARENDT, 2005, p. 31)

De forma equivalente, “[...] é o olhar (e, podemos acrescentar, o ‘dito’) dos outros que me constitui e delimita o território em que nos reconhecemos, no qual nascemos, sempre e mais uma vez, juntos.” (MAFFESOLI, 2004, p. 53)

O conceito de singularidade associa-se, a seu turno, com a idéia do novo e com as possibilidades que nascem juntamente com cada nova vida, pois se da perspectiva biológica os seres humanos podem ser tomados como iguais, do ponto de vista da natalidade cada novo ser é único.

Atrelada tanto às definições de labor, trabalho e ação, quanto aos conceitos de pluralidade e singularidade, está a noção de tempo e de mortalidade. De um lado, a vida é cíclica em sua dimensão biológica, de outro, a vida de cada ser humano é única, na dimensão do mundo.

Segundo esta autora, o mundo só existe como espaço público e crítico — na interação com outras pessoas —, e, para tanto, deve ser estruturado pelo trabalho e pela ação, como fica patente no seguinte trecho:

[...] o mundo ao qual viemos, não existiria sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo político. Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. (2005, p. 31) O mundo — artifício humano — separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando para tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do homem um filho da natureza. (2005, p. 10)

Pode-se entender, portanto, a criação do mundo como uma tentativa de se alcançar a imortalidade — vencer a morte —, em que o ser humano se imortaliza por meio de suas ações e palavras, transcendendo o que é da ordem do labor e do trabalho. A força do

processo de ação “nunca se esvai num único ato, mas, ao contrário, pode aumentar à medida que se lhe multiplicam as conseqüências; as únicas “coisas” que perduram na esfera dos negócios humanos são esses processos, e sua durabilidade é ilimitada, tão independente da perecibilidade da matéria e da mortalidade dos humanos quanto o é a durabilidade da humanidade. (ARENDT, 2005, p. 245)

A luta pela imortalidade é, pois, o próprio “modo de vida do cidadão, o bios politikos” (ARENDT, 2005, p. 29).

Utilizando o exemplo dos heróis gregos — que não são eternos, mas garantem sua permanência entre os homens por intermédio da lembrança e dos frutos de seus atos e de suas palavras —, Arendt estabelece a distinção entre perpetuação, imortalidade e eternidade.

A eternidade ou a experiência do eterno, na visão desta autora, “só pode ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens.” (ARENDT, 2005, p. 29) Assim sendo, só é eterno o que não é feito de matéria humana; o que é divino.

Por outro lado, tudo que é perpétuo refere-se ao ciclo da natureza, e é por meio do labor que a vida busca perpetuação. Por essa razão, é o desejo de imortalidade — alcançado pela durabilidade no mundo advinda do trabalho — que distingue o homem de qualquer outro animal.

Tal desejo de permanência no mundo (ou de imortalidade), paralelamente à noção de tempo que cada ser humano vivencia, será fundamental para a discussão sobre os fins da educação na contemporaneidade, o que será abordado em tópico posterior neste trabalho.