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4.1 A E DUCAÇÃO PARA A RENDT : A CRISE DO SENSO COMUM E A DEMANDA DE SENTIDO

Apesar de tratar especificamente da crise educacional norte-americana, Arendt afirma que não se trata de um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos — ao contrário, manifesta-se globalmente —, e que, mesmo assim, é tentador considerá-lo como um fato isolado e de pouca importância.

[...] se compararmos essa crise na educação com as experiências políticas de outros países no século XX, com a agitação revolucionária que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial, com os campos de concentração e de extermínio, ou mesmo com o profundo mal-estar que, não obstante as aparências contrárias de prosperidade, se espalhou por toda a Europa a partir do término da Segunda Guerra Mundial, é um tanto difícil dar a uma crise na educação a seriedade devida. É de fato tentador considerá-la como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século, pelo qual se deveriam responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados Unidos que não encontrariam provavelmente contrapartida nas demais partes do mundo. (ARENDT, 1992, p. 222)

Assinalando a importância das transformações ocorridas no final do século XX e de sua ampla abrangência no cenário mundial, Arendt (1992, p. 222) acrescenta: “[...] pode-se admitir como uma regra geral neste século que qualquer coisa que seja possível em um país pode, em futuro previsível, ser igualmente possível em qualquer outro país.”

Para a autora, a crise consiste no desaparecimento do senso comum, em que as respostas para determinadas questões — aquelas que sempre foram tidas como certas — tornam-se insatisfatórias, com a conseqüente perda de significações compartilhadas, acarretando, inevitavelmente, a destruição de uma parte do mundo comum. Aqui, o senso comum — o “sexto sentido” tratado na seção 3.2.2 — deixa de promover satisfatoriamente a orientação do homem no mundo das aparências.

Sempre que, em questões políticas, o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas, nos deparamos com uma crise; pois essa espécie de juízo é, na realidade, aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos. O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Em toda crise, é destruída uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento. (ARENDT, 1992, p. 227)

Contudo, a autora encara a crise de forma bastante positiva, como sendo uma ótima possibilidade para a reflexão sobre questões importantes. Nesta perspectiva, observa que “uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos [...]” (ARENDT, 1992, p. 223); exige do homem a atividade do pensar especulativo a respeito de questões que escapam ao domínio do senso comum, ou seja, obriga a mente a voltar-se ao que não é (ou está) acessível aos cinco sentidos humanos. Arendt (1992, p. 223) afirma que “uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos.”

Aqui, a autora enfatiza a importância da reflexão, e aponta para a irreflexão tão presente no mundo moderno: “[...] a irreflexão — a imprudência temerária ou a irremediável confusão ou a repetição complacente de ‘verdades’ que se tornaram triviais e vazias — parece ser uma das principais características de nosso tempo”. (2005, p.13)

Arendt, ao procurar identificar os aspectos do mundo moderno que se revelam na educação e em sua crise, afirma que os Estados Unidos, na busca pela erradicação da opressão e da pobreza, fixaram como objetivo o estabelecimento de uma nova ordem mundial, ou seja, da fundação de um novo mundo contra o antigo, por intermédio da educação.

O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, a partir dos tempos antigos, mostra quanto parece natural iniciar um mundo novo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos. No que toca à política isto implica um grave equívoco: ao invés de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse. Por esse motivo na Europa, a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feitio tirânico que, ao chegarem ao poder, subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam. (ARENDT, 1992, p. 225)

Com base no exposto, a autora (1992) constata que “a educação não pode executar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados” (p. 225), e que, de forma inversa, a política também não pode desempenhar qualquer papel na educação, tendo em vista que não há, na relação professor–aluno, isonomia — condição necessária à ação política. Assim, para garantir a isonomia, qualquer um que queira criar uma “nova ordem política mediante a educação, isto é, nem através de força e coação, nem através de persuasão, se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica: o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado.” (1992, p. 225-226)

Se, por um lado, ao se vislumbrar uma nova ordem mundial, não é raro se pensar na formação das crianças — que serão os adultos de um novo mundo, em um futuro próximo —, por outro, é comum se ouvir que a escola deve prepará-las para o mundo.

Entretanto, Arendt (1992) alerta para o fato de que a escola, ao preparar as crianças para um mundo novo, nega a possibilidade de que estas realmente construam algo verdadeiramente novo, perpetuando, assim, as estruturas sociais e políticas já presentes. A autora afirma, ainda, que a escola deve fazer a transição que a criança tem de realizar, da sua família ao mundo dos adultos — em certo sentido, a escola representa o mundo, embora não o seja de fato.

Nestes termos, a escola é, pois, uma instância pré-política, na qual as crianças não participam da vida dos adultos. Em sua argumentação, a autora observa que, na Grécia antiga, a skhole — raiz grega da palavra “escola”, como a palavra latina otium, que “significa basicamente isenção de atividade política e não simplesmente lazer, embora ambas sejam também usadas para indicar isenção do labor e das necessidades da vida” (ARENDT, 2005, p. 23) — consistia justamente no local em que as crianças eram mantidas afastadas do mundo dos negócios dos adultos, até atingirem a condição necessária para atuarem politicamente.

A americanização das crianças — com repercussões sociais profundas em suas famílias, em que, de fato, ocorre o despojamento de um mundo antigo para a imersão em um mundo novo — promove a impressão de que, para que se possa construir um mundo novo, é necessário destruir o mundo antigo. Isto acarreta sérias conseqüências no que diz respeito à tradição, que passa a ser encarada, irrefletidamente, como algo obsoleto.

Porém, como observa Arendt (1992, p. 226), “o mundo no qual são introduzidas as crianças, mesmo na América, é um mundo velho, isto é, um mundo preexistente, construído pelos vivos e pelos mortos, e só é novo pelos que acabaram de penetrar nele pela imigração.”

Dentre as inúmeras implicações decorrentes dessa busca pertinaz de uma nova ordem, destaca-se a crença exacerbada no novo e uma suposta perfectibilidade a ele associada. Nesse sentido, as inovações tecnológicas constituem o campo em que tal pathos pelo novo se manifesta mais clara e fortemente.

Para a elaboração de sua análise sobre a crise em educação que se manifesta no mundo moderno, Arendt utiliza-se de três pressupostos, a saber: o pathos pelo novo — citado anteriormente; o mundo autônomo das crianças; e a pedagogia como ciência autônoma.

A concepção de um mundo autônomo faz com que a atenção seja voltada para o grupo — e não para a criança individualmente — e que “a autoridade que diz à criança o que fazer e o que não fazer repousa apenas no próprio grupo de crianças.” (ARENDT, 1992, p. 230)

Como conseqüência imediata disto, tem-se a perda da autoridade do adulto, e a transferência desta para o grupo, o que para Arendt (1992, p. 230) configura uma situação tirânica, “mais forte do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado.” Referindo-se à tal situação, a autora afirma que a criança

não se encontra mais em uma luta bem desigual com uma pessoa que, é verdade, tem absoluta superioridade sobre ela, mas no combate a quem pode, no entanto, contar com a solidariedade das demais crianças, isto é, de sua própria classe; em vez disso, encontra-se na posição, por definição irremediável, de uma minoria de um em confronto com a absoluta maioria dos outros. [...] Assim ao emancipar-se das autoridades dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria. (p. 230)

A partir do terceiro pressuposto, Arendt (1992) aborda os efeitos da emancipação da pedagogia — sob influência da psicologia moderna e do pragmatismo — como uma ciência autônoma, emancipada da matéria a ser ensinada. Uma das implicações disto foi o surgimento da crença de que o professor deveria ser capaz de ensinar qualquer coisa, e de que sua formação seria no ensino e não no domínio de assuntos específicos. Outra conseqüência seria

o fato de que os alunos não só estariam “efetivamente abandonados a seus próprios recursos; mas também que a fonte mais legítima da autoridade do professor, como a pessoa que, seja dada a isso a forma que se queira, sabe mais e pode fazer mais do que nós mesmos, não é mais eficaz.” (p. 231)

A oposição da autora refere-se a atribuir “à ciência específica da pedagogia [...] a relação entre adultos e crianças em geral [...]” (ARENDT, 1992, p. 247)

Todo este quadro promove uma supervalorização do processo de aprendizagem em si mesmo e um esvaziamento das disciplinas no que se refere a seus próprios conteúdos. A idéia seria de “levar o professor ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem de tal modo que ele não transmitisse como se dizia, ‘conhecimento petrificado’, mas, ao invés disso, demonstrasse constantemente como o saber é produzido.” (1992, p. 232)

Arendt destaca o fracasso de tal intenção, tanto no que se refere à aquisição de conhecimento quanto à tentativa de promover nas crianças o desenvolvimento de habilidades que as levassem a tal conquista.

A avaliação que Arendt tece sobre a crise é norteada pela busca de respostas a duas perguntas:

Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso? Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação — não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana? (ARENDT, 1992, p. 234)

A resposta à segunda pergunta é fornecida, parcial e sinteticamente, na enunciação da própria interrogação: a educação faz-se necessária devido à natalidade, porque crianças nascem e precisam ser iniciadas e introduzidas em um mundo preexistente a elas. É em nome das crianças, dos novos, dos recém-chegados ao mundo, que a educação deve a razão de sua existência. Isto, portanto, é o que confere sentido à educação, na visão de Arendt.

A justificativa que a autora apresenta sobre a necessidade da educação revela um consistente entrelaçamento — descrito a seguir — dos conceitos abordados anteriormente neste trabalho — tais como tradição, responsabilidade, autoridade, separação das esferas pública e privada —, fundamentais para o estudo da influência da tecnologia sobre o pensamento especulativo e, por conseguinte, sobre o processo de atribuição de sentido.

De acordo com o exposto na seção 3.1, tudo com que os homens entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência, e o fruto do trabalho das mãos humanas está sempre fadado à ruína. Somente a natalidade possibilita a renovação e a manutenção do mundo. Educa-se para que este mundo permaneça vivo. Conseqüentemente, a educação centra-se tanto na criança quanto no mundo.

É aí que a tradição alcança lugar de relevo, na medida em que o novo — aquele que chega pelo nascimento a um mundo que lhe é estranho — precisa ser protegido do mundo, e o mundo, por sua vez, precisa ser protegido do novo, a fim de garantir sua conservação. Tradição e conservação são, pois, essenciais em educação, na medida em que, diante de uma aparente antinomia, são elas que possibilitam a ação do novo e a preservação do mundo: “exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora.” (ARENDT, 1992, p. 243)

Portanto, a tradição e a razão para a existência da escola, para Arendt, andam juntas:

[...] a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas [as crianças], a aprendizagem volta- se inevitavelmente ao passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente. (ARENDT, 1992, p. 246)

Nesse contexto, responsabilidade e autoridade surgem fortemente atreladas uma a outra e, também, à tradição. Os pais, ao trazerem seus filhos ao mundo,

assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. [...] Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes. (ARENDT, 1992, p. 235)

Nos parágrafos precedentes, depreende-se uma imagem de autoridade do educador, traçada sobre uma relação assimétrica professor–aluno, cuja origem e superioridade baseiam- se, essencialmente, no saber específico do professor, circunscrito aos domínios de sua área de conhecimento. Porém, mais do que isso, essa imagem de autoridade completa-se, agora, com a responsabilidade que o educador assume quanto a apresentar à criança o mundo como este é — e que se encontra em permanente mudança. Segundo Arendt (1992, p. 239),

Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do educador não são a mesma coisa. Embora a qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só

autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo.

A autora apresenta claramente a responsabilidade pelo mundo como a fonte principal da autoridade do professor, e afirma que “o problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição.” (ARENDT, 1992, p. 245-246)

Finalmente, Arendt (1992) resume todos os seus argumentos que atribuem sentido à educação, na brilhante enunciação: “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vida dos novos e dos jovens”. (p. 247)

4.2T

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