• Nenhum resultado encontrado

3 A TRIBUIÇÃO DE S ENTIDO

3.2 O C ONCEITO DE S ENTIDO PARA A RENDT

3.2.3 S ENTIDO E F ORMAS DE R EPRESENTAÇÃO

O ser-real do pensar está fora de seu próprio alcance porque não se revela autenticamente no mundo das aparências. Segundo Arendt (1977, p. 41), a vida do espírito não pode ser percebida pelos órgãos sensoriais, nem expressa por meio destes; pode somente manifestar-se por intermédio de metáforas

extraídas de experiências e dados corporais. O mesmo uso de metáforas, além disso, é característico da nossa linguagem conceptual [...]; as palavras que usamos no discurso estritamente filosófico são também invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo como é dado aos nossos cinco sentidos corporais, de cuja experiência são então, como Locke observou, “transferidas” — metapherien, transportadas para — “significações mais abstrusas, e postas a valer como ideias que não estão incluídas no acto cognitivo dos nossos sentidos”. Só por meio de uma tal transferência podiam os homens “conceber essas operações que experimentaram em si próprios, e que não apresentam aparências sensíveis exteriores.”

Além disso, de acordo com a autora,

Nenhum acto mental, e menos do que todos o acto de pensar, se contenta com o seu objecto tal como lhe é dado. Ele transcende sempre a pura doação de seja o que for que possa ser atraído a sua atenção e transforma-o naquilo que Petrus Johannis Olivi, o filósofo franciscano da Vontade do século treze, chamava um experimentum suitatis, uma experiência do eu consigo mesmo. (ARENDT, 1977, p. 86)

A adequação do discurso metafórico à atividade do pensar — tanto no que se refere ao modo como a razão se torna manifesta no mundo das aparências quanto à maneira como os objetos dados aos sentidos são transformados em coisas-do-pensamento — revela a importância da linguagem e das formas de representação de que se utiliza a mente humana para atribuir sentido. Em um mesmo exemplo, ao destacar a relevância do discurso para a questão do sentido, Arendt (1977, p. 150) torna evidente, também, como o alheamento do mundo se faz necessário neste processo:

[...] Ulisses chegou à corte dos Feaces e, por ordem do rei, é divertido pelo bardo, que canta uma história qualquer da vida do próprio Ulisses, a sua disputa com Aquiles: Ulisses, ouvindo, cobre a face e chora, embora nunca tenha chorado antes, e certamente não quando o que agora está a ouvir aconteceu realmente. Só quando ouve a história é que fica completamente cônscio do seu sentido.

Nessa passagem, Ulisses só adquire consciência do sentido da própria história ao encontrar-se afastado, no tempo e no espaço, do acontecimento real de sua disputa com Aquiles. E tudo isto se dá por meio de uma narrativa do fato, e não do que lhe foi propriamente oferecido aos seus cinco sentidos, durante o desenrolar do confronto em si.

O pensar e o discurso estão de tal modo associados que “o pensamento sem a fala é inconcebível; ‘o pensamento e a fala contam um com o outro. Tomam continuamente o lugar um do outro’, na realidade cada um deles toma o outro por certo.” (ARENDT, 1977, p. 42) “O pensar [...], em contraste com as actividades cognitivas que podem usar o pensar como um dos seus instrumentos, precisa da fala e não apenas para se tornar audível e manifesto; precisa absolutamente dela para poder desempenhar o seu papel.” (p. 134)

A fala e demanda de sentido são questões inseparáveis, “porque nosso espírito exige a fala.” Arendt (1977) sinaliza a similaridade entre os pensamentos e o discurso coerente (logos), cujo critério “não é a verdade ou a falsidade mas sim o sentido. [...] dado que as palavras — portadoras de sentido — e os pensamentos se assemelham, os seres que pensam têm um anseio de falar, os seres que falam têm um anseio de pensar.” (p. 111)

Para além de sua função de comunicação entre os homens, a linguagem intensifica sua importância na medida em que é vital para a própria elaboração dos pensamentos: “de todas as necessidades humanas, só ‘a necessidade da razão’ é que nunca poderia ser adequadamente satisfeita sem o pensamento discursivo, e o pensamento discursivo é inconcebível sem palavras que já têm sentido, antes que um espírito viaje, por assim dizer, pelo meio delas [...].” (ARENDT, 1977, p. 111)

Para a autora, a razão necessita do falar e deseja a comunicação por causa da pluralidade — o fato de o homem “existir” somente em meio a outros homens; se despojada da possibilidade de sua comunicação, a razão pode desnortear-se.

A função desse falar sem som — tacite secum rationare, “raciocinar silenciosamente consigo mesmo”, nas palavras de Anselmo de Cantuária — é pôr-se de acordo com seja o que for que possa ser dado aos nossos sentidos nas aparências de todos os dias; a necessidade da razão é dar conta, logon didonai, como os gregos lhe chamavam com maior precisão, de seja o que for que possa ser ou possa ter ocorrido. Isto é instigado não pela sede de conhecimento — a necessidade pode surgir em conexão com fenômenos bem conhecidos e inteiramente familiares — mas sim pela necessidade de sentido. O simples nomear das coisas, a criação das palavras, é o modo humano de apropriar para si e, por assim dizer, desalienar o mundo em que, afinal, cada um de nós nasceu como um recém-chegado e um estrangeiro. [grifos da autora] (ARENDT, 1977, p. 112)

O pensamento com a linguagem conceptual que o acompanha, dado que ocorre em e é falado por um ser que se sente em casa num mundo de aparências, tem necessidade de metáforas para lançar uma ponte sobre o espaço entre o mundo dado à experiência sensível e um reino onde esta apreensão imediata da evidência nunca pode existir. (ARENDT, 1977, p. 42-43)

A atividade de pensar prepara os objetos “visíveis” e torna-os “invisíveis” — “a actividade do pensar lida com os invisíveis em toda a experiência” (ARENDT, 1977, p. 235) —, possíveis de serem manipulados pela mente, e disponíveis para outras atividades do espírito, como o querer e o julgar (ver Quadro 3). Estes “invisíveis”, estas coisas-do- pensamento, propiciam ao homem a capacidade de avaliação sobre o próprio passado — isto é, lidar com “as coisas que já não são” —, bem como a possibilidade de refletir a respeito de seu futuro — ou seja, ocupar-se das “coisas que ainda não são”. Portanto, “o pensar é uma preparação indispensável para decidir o que deve ser e para avaliar o que já não é.” (ARENDT, 1977, p. 235)

Quadro 3. Atividades do espírito (pensar, julgar, querer) e o mundo das aparências.

A razão, pois, ao alhear-se do mundo, lida com o que não está mais acessível aos sentidos. Arendt (1977, p. 88) esclarece que este alheamento é “não tanto do mundo — só o pensamento, por causa da sua tendência para generalizar, isto é, da sua especial preocupação com o geral enquanto oposto ao particular, tende a alhear-se completamente do mundo — como da situação de o mundo estar presente aos sentidos.”

Uma vez que “todo o acto do espírito assenta na faculdade do espírito de ter diante de si o que está ausente dos sentidos” [grifos da autora] (ARENDT, 1977, p. 88), à mente é imprescindível o poder da representação. “A re-presentação, o tornar presente o que está efectivamente ausente, é o dom incomparável do espírito, e dado que toda a nossa terminologia acerca do espírito é baseada em metáforas extraídas da experiência da visão, esse dom é chamado imaginação.” (ARENDT, 1977, p.88)

De acordo com Arendt (1977, p. 99), os homens utilizam-se da imaginação, pois precisam repetir, na mente, a experiência por que, inicialmente, passaram os sentidos e que não está mais acessível a estes, tornando-a não-sensível (a recordação, então, é essencial à imaginação). “E só nesta forma imaterial pode a nossa faculdade de pensar começar agora a ocupar-se destes dados. Esta operação precede todo o processo de pensamento, tanto o pensamento do sentido quanto o pensamento acerca do sentido.”

Uma vez que o pensar deve-se à demanda de sentido e os objetos-do-pensamento são preparados pela imaginação a partir da experiência dos sentidos, estabelece-se, aqui, uma relação direta entre sentido e experiência. A imaginação é, assim, indispensável à atribuição de sentido, pois “todo o pensamento surge da experiência, mas nenhuma experiência produz qualquer sentido ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginar e pensar.” (ARENDT, p. 1977, p. 100) Portanto, todo sentido deriva-se da experiência, desde que esta passe, obrigatoriamente, pelas atividades do pensar e do imaginar.

A atribuição de sentido acontece por meio de metáforas e narrativas. Nisto, as formas de representação e o alheamento do mundo das aparências ganham especial importância neste processo: “a recordação, por meio da qual tornamos presente para nosso espírito o que realmente está ausente e é passado, revela o sentido sob a forma de uma narrativa.” (ARENDT, 1977, p. 151)