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CAPÍTULO 3 Desenvolvendo Software, Produzindo Sistemas

3.2. Georreferenciando em Diversas Escalas: O Momento Implicações

3.2.1. A abordagem de sistemas tecnológicos

Como observa Hughes (1983: 5), a definição de “sistema” é abrangente e flexível12

, mas de forma geral fala sobre composições de elementos de tipos heterogêneos que se relacionam, e ao afetarem uns aos outros afetam a configuração geral dessa composição. Como observa o autor “um sistema é constituído de componentes que se relacionam” (HUGHES, 1983: 5, tradução própria)13. Esses componentes se conectam uns aos outros, e dessas conexões, conformam topologias, redes ou estruturas que definem sua configuração geral. Como os componentes se relacionam por meio dessas redes de interconexões, a atividades - ou inatividade - de um componente influencia o estado de outros componentes no sistema e ao final dessa cadeia, afeta o sistema como um todo.

Os componentes de um sistema podem ser técnicos ou não técnicos, e o uso do termo “sistema” normalmente denota a relação entre componentes de categorias diferentes. E nesse sentido, o autor observa:

‘Sistema’ significa então: componentes interativos de diferentes tipos, tal como técnicos e institucional, e de diferentes valores; tal sistema não tem um controle centralizado e nem é direcionado a um objetivo claramente definido. (HUGHES, 1983: 6, tradução própria)14

Um “sistema tecnológico” está dentro da perspectiva de sistema apresentado acima e herda dela suas características. Um sistema tecnológico é um conjunto que associa conhecimentos científicos, com artefatos técnicos, dispositivos jurídicos, políticos, econômicos, ambientais, organizacionais etc., de forma a atingir uma finalidade comum objetivada pelo sistema (ou pelos integrantes do sistema). Um artefato - seja ele físico ou não - funcionando como um componente em um sistema, interage com outros artefatos, que contribuem direta, ou indiretamente (através de outros componentes), com essa finalidade comum do sistema (HUGHES, 1983).

12

Assim como em Hughes(1983) não cabe aqui fazer uma recordação da literatura sobre sistemas, ou teoria sistêmica, visto a enorme quantidade de material diverso produzido. O uso do sistema tecnológico de Hughes vai muito mais no sentido de aproveitar as reflexões propostas pelo autor para tratar questão dentro do STS, para uma discussão sobre sistemas ver:

13

“A system is constituted of related components”(Hughes, 1983: 5)

14 “System” then means: interacting components of different kinds, such as the technical and the institutional, as well as different values; such a system is neither centrally controlled nor directed toward a clearly defined goal. (HUGHES, 1983: 6)

O sistema tecnológico também herda a interconectividade entre os componentes. Caso um componente do sistema seja removido, ou tenha suas características alteradas, os outros componentes do sistema vão responder de acordo. Ou como observa o autor ”sistemas tecnológicos contém componentes confusos, complexos e que resolvem problemas. São, ao mesmo tempo, socialmente construídos e moldam a sociedade” (HUGHES, 2013: 45, tradução própria)15. É importante observar, como nos lembra o autor, que inventores, cientistas, engenheiros e trabalhadores são componentes de um sistema, mas não são artefatos. Eles não são criados pelos construtores de sistemas, indivíduos e grupos em um sistema tem graus de liberdade que os artefatos não possuem (HUGHES, 2013: 48).

Sistemas tecnológicos não se constituem do nada, eles são inventados e desenvolvidos por pessoas e grupos, por construtores de sistemas (“system builders”) (HUGHES, 2013: 46), que criam componente por componente, e por isso, os componentes de um sistema tecnológico também são artefatos socialmente construídos. Como observa o autor, a característica principal desses construtores de sistemas é a habilidade de criar unidade a partir da diversidade e o sucesso em construir sistemas coesos está diretamente relacionado com a capacidade desses construtores de lidar com a heterogeneidade de questões que aparecem ao longo do processo. E como mostra Hughes (2013) e Mackenzie (2013), os construtores de sistemas que obtém sucessos são aqueles que conseguiram lidar, simultaneamente, com questões técnicas, econômicas e políticas. São os que conseguem desempenhar um papel de “engenheiros da heterogeneidade” (heterogeneous engineers) (HUGHES, 2013), desrespeitando fronteiras disciplinares e transitando entre diferentes domínios.

Porém, como observa Mackenzie (2013: 191), sistemas não devem ser compreendidos como estruturas dadas, e nem devem ser compreendidas como sinônimo de estabilidade ou ausência de conflitos. Sistemas são constructos que só se mantêm firmes enquanto as condições corretas prevalecem. E sempre existe a possibilidade de um sistema se dissociar em seus componentes-parte, dissolvendo sua estrutura. Para manter um sistema tecnológico funcionando e seus componentes conectados corretamente, de modo que seu funcionamento esteja de acordo com o objetivo comum do conjunto, é preciso o trabalho constante dos diversos atores em negociar e manter as relações entre os componentes que estruturam esse sistema. Tanto em termos técnicos, de manter uma máquina ou processo

15“technological systems contains messy, complex, problem-solving components. They are both socially constructed and society shaping”(HUGHES, 2013: 45)”

produtivo operando corretamente, quanto em termos políticos, mantendo relações institucionais importantes para o funcionamento do sistema. Como observa Mackenzie (2013):

Atores criam e mantém sistemas, e se eles falham nisso, o sistema em questão deixa de existir. A estabilidade de um sistema é uma conquista frequentemente precária face às forças potencialmente hostis, tanto sociais quanto naturais. (HUGHES, 2013: 191, tradução própria)16

Uma preocupação central para Hughes ao desenvolver sua teoria sobre sistemas tecnológicos é sobre como ocorre seu movimento de crescimento. De acordo com Hughes (2013), os grandes sistemas tecnológicos tendem a crescer avançando sobre os elementos que ele não tem controle, na tentativa de diminuir as fontes de incerteza que podem afetar a estabilidade do sistema. Hughes (2013) chama de ambiente tudo que está fora do controle do sistema, todas as forças, naturais ou sociais, organizacionais, ou econômicas que afetam a estabilidade do sistema e que ele não tem poder sobre. Assim, o movimento ideal do sistema é avançar sobre esses elementos e incorporá-los em seus sistemas, diminuindo as fontes de incerteza que o cercam e garantindo uma maior estabilidade em seu funcionamento.

Devido a própria complexidade de um sistema tecnológico e suas múltiplas partes, seu crescimento dificilmente é linear, ou homogêneo, pois suas diversas partes crescem em velocidades diferentes. Conforme o sistema avança sobre o ambiente, novos tipos de problema aparecem. Alguns desses problemas são chamados por Hughes de “reverse salient” (HUGHES, 1983: 14), ou saliente reverso - um reverso que se torna saliente.

O saliente reverso é algo que atrapalha o crescimento de um sistema. É um termo que traduz a desarmonia em associações complexas, onde as partes do sistema expandem em ritmos diferentes, com algumas avançando mais rapidamente e outras mais devagar. Esses elementos que atrasam, que estão em descompasso com o ritmo de expansão do sistema, são os elementos chamados pelo autor de “saliente reverso”.

Uma saliência é uma protrusão em uma figura geométrica, uma linha de batalha, ou uma frente fria em expansão [...]. Reversos salientes são componentes no sistema que ficaram para trás ou que estão em desacordo com os outros. Por sugerir mudanças desiguais e complexas, essa metáfora é

16

[A]ctors create and maintain systems, and if they fail to do so, the system in question cease to exist. The

stability of the system is a frequently precarious achievement in the face of potentially hostile forces, both social and natural.(MACKENZIE, 2013: 191)

mais apropriada ao se tratar de sistemas do que o conceito visualmente rígido de gargalo. ” (HUGHES, 2013: 66-67, tradução própria)17

Os reversos salientes são elementos que impedem o crescimento do sistema e devem ser resolvidos para garantir a continuidade do avanço do sistema sobre o ambiente, porém, as vezes um saliente reverso pode colocar em risco todo o funcionamento do sistema. Quando isso ocorre, ele se torna um “problema crítico” (HUGHES, 2013: 69). Esse problema crítico é quem vai receber o esforço criativo dos atores do sistema com o objetivo de resolvê-lo, e é nesse momento, como observa Hughes (1983), que agem as forças criativas:

Tendo identificado os reversos salientes, os encarregados do sistema podem então analisá-los como uma série de problemas críticos. Definir um saliente reverso como um problema crítico é a essência do processo criativo. Um inventor transforma um desafio amorfo - o atraso de um sistema - em um conjunto de problemas que se acredita que sejam solucionáveis. (HUGHES, 1983: 14, tradução própria)18

Identificar reversos salientes e resolvê-los são as atividades fundamentais para a manutenção da estabilidade de um sistema tecnológico. Devido a interconectividade de seus componentes os reversos salientes podem ser difíceis de identificar, e sua própria identificação está suscetível a conflitos e negociações, pois são os atores do sistema que os identificam, a partir de suas próprias interpretações, que podem ser discordantes e conflitantes. Assim, a própria identificação de um saliente reverso e de problemas críticos também é fruto da atuação dos atores no sistema, e como observa MacKenzie (2013), “obviamente, para concordar em que constitui a barreira ao progresso do sistema, é preciso que exista consenso sobre onde o que o sistema quer alcançar. E isso não pode tomado como certo. ” (MACKENZIE, 2013: 191, tradução própria)19

.

17

A salient is a protrusion in a geometric figure, a line of battle, or an expanding weather front.[...] Reverse

salients are components in the system that have fallen behind or are out of phase with the others. Because it suggests uneven and complex change, this metaphor is more appropriate for systems than the rigid visual concept of a bottleneck.”(HUGHES, 2013: 66-67).

18

Having identified the reverse salients, the system tenders can then analyze them as a series of critical

problems. Defining reverse salients as critical problems is the essence of creative process. An inventor applier of science transforms an amorphous challenge - the backwardness of a system - into a set of problems that are believed to be solvable.”(HUGHES, 1983: 14).

19“most obviously, to agree on what constitutes a barrier to progress requires agreement on what one is trying