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CAPÍTULO 3 Desenvolvendo Software, Produzindo Sistemas

3.2. Georreferenciando em Diversas Escalas: O Momento Implicações

3.2.2. O artefato e seus componentes

Mas porque usar a abordagem de sistemas tecnológicos proposta por Hughes no meu problema? O objeto de estudo de Hughes (1983) no desenvolvimento dessa abordagem, são os grandes sistemas tecnológicos, especialmente em 1983 em seu livro, seu objeto é o crescimento de sistemas de fornecimento de energia elétrica. Um grande sistema tecnológico que engloba uma parte significante do mundo e foi responsável por grandes mudanças na sociedade.

Sem dúvida o objeto de trabalho do autor é bem diferente do que minha questão apresenta neste texto. Enquanto Hughes (1983) trabalha com um extenso sistema tecnológico para fornecer energia elétrica, meu objeto é uma experiência muito mais pontual. Porém, apesar das diferenças, sua abordagem de sistemas tecnológicos ajuda a compreender uma questão chave sobre as diferentes escalas que um artefato habita. Auxiliando a responder questões como, “qual o papel de um software em um projeto de recuperação ambiental? ”, ou “qual o papel do SGMN na recuperação das nascentes da chapada? ”.

Para justificar minha apropriação da abordagem de sistema tecnológico, sigo a estratégia em MacKenzie (2013), que utiliza a abordagem de sistemas tecnológicos para tratar de um problema também muito diferente do apresentado em Hughes (1983). No caso, o autor está analisando o processo de desenvolvimento tecnológico da extrema precisão em mísseis balísticos (MACKENZIE, 2013: 189), e da mesma forma ele se apropria da perspectiva de sistemas tecnológicos pelas capacidades analíticas que a perspectiva possibilita.

O autor observa que no nível mais simplista, uma abordagem de sistemas para a orientação de mísseis não faz muito sentido, pois a aspecto principal dessa tecnologia é justamente ela se autocontido, ou seja, ser o oposto de um sistema (MACKENZIE, 2013: 193). Porém, o autor mostra que a abordagem de Hughes contribui de duas formas principais: 1) se recusando a lidar separadamente com o que é técnico e que é o social; e 2) e recusando a traçar uma diferença absoluta entre o micro e o macro, criando pontes entre as escalas por meio do saliente reverso e do problema crítico. Duas abordagens fundamentais para compreender o fenômeno da TS em sua complexidade e multiplicidade de manifestações.

Como observa MacKenzie (2013: 195) essas duas perspectivas ajudam a compreender um artefato para além de sua materialidade imediata. O sistema de mira de mísseis é autocontido apenas em um sentido estritamente operacional, pois para seu correto

funcionamento, é preciso de uma série de outras informações, como seu local de lançamento, as coordenadas precisas de seu alvo, informações sobre o campo gravitacional da terra etc. Todas essas informações dependem da articulação de uma série de outros atores e instituições que não estão sob o controle do sistema de mira de mísseis.

O sistema de orientação inercial - que é o artefato autocontido que fica dentro do míssil e que calcula sua trajetória - é em si próprio um sistema, um artefato composto por uma série de outros componentes e circuitos, como giroscópios, acelerômetros, microprocessadores, mapas de gravidade e dados geodésicos, que operam em sintonia para garantir que o instrumento funcione corretamente e mantenha o trajeto correto do projétil. A extrema precisão do míssil é, como observa MACKENZIE (2013: 195), resultado das interações entre os componentes, é o produto sistêmico dessa composição, onde o “todo é maior que a soma das partes”.

De forma semelhante, o SGMN é também um artefato autocontido, onde são introduzidos dados e se obtém mapas. Porém, o SGMN é também um sistema, como o próprio nome dele diz, com diversos componentes que precisam operar em sintonia para cumprir com o objetivo comum do sistema, que é georreferenciar as atividades de conservação na chapada. Para compreender o funcionamento do SGMN é preciso pensar na forma como seus componentes se relacionam, pois, para o software, não interessa se os dados geográficos foram coletados corretamente ou não, nem se as fotos realmente são do lugar ou não. O software não tem como atestar a veracidade dessas informações. Nesse sentido, o software é uma caixa preta, que recebe os dados como entrada e produz um mapa como saída. Porém, para cumprir o objetivo imediato do SGMN é preciso que as coordenadas geográficas sejam coletadas corretamente e que as fotos sejam referentes aos locais trabalhados, para cumprir o objetivo comum do sistema é preciso que os atores envolvidos no sistema garantam que os componentes estejam se relacionando corretamente.

Assim, o funcionamento do SGMN depende: da corretude do software em processar os dados inseridos, etapa de responsabilidade da FS, pois é ela quem tem o domínio técnico para desenvolver e manter o software; da corretude da coleta de dados, que depende das pessoas que operam os equipamentos, que é normalmente o coordenador da FS; e da disponibilidade de recursos do CPCD, especialmente do carro, do combustível e de um funcionário que conheça a chapada, para conduzir os equipamentos de coleta de dados e o operador até as nascentes. O funcionamento correto apenas do software, ou apenas dos

instrumentos de coleta não é suficiente para garantir que o objetivo comum do sistema seja cumprido, é preciso que todos os componentes sejam mobilizados simultaneamente. E uma missão de coleta de dados não depende apenas de que os componentes funcionem corretamente e simultaneamente, depende também de que o ambiente seja favorável, como um tempo favorável.

Fica claro que o funcionamento do SGMN depende de um equilíbrio delicado, e que qualquer mudança nos componentes pode afetar diretamente a capacidade dele de cumprir com seus objetivos. Seja uma chuva, ou uma falha no servidor onde o software está hospedado, ou até o conflito de horários na agenda do funcionário que guia o carro da sede da FS até a chapada, cada nova saída para coletar dados e inserir dados no software depende da capacidade do coordenador da FS em mobilizar uma série de questões de diferentes domínios. Nesse sentido, assim como observa Hughes (2013), o funcionamento do sistema depende tanto do funcionamento correto de seus componentes, de um ambiente favorável e da capacidade dos atores envolvidos em mobilizar e adaptar o que for necessário para cumprir o objetivo do sistema, de aparelhos GPS portáteis e drones, até facões para abrir trilha. Ou seja, o sucesso depende de uma engenharia da heterogeneidade para o funcionamento de um sistema.

Apesar de todo o esforço para a coleta de dados, o produto do SGMN é apenas um mapa, uma localização azul acompanhada de fotos e descrições, não é o SGMN que produzir, diretamente, a conservação e recuperação das águas da chapada. A conservação é produto de uma composição mais ampla, onde o SGMN é apenas uma parte, e cumpre o papel de um componente na operação de um sistema maior.