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2. QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

2.1. Abordagens Qualitativas

Nossa proposta não é de elucidar, de imediato, questionamentos a priori estabelecidos por séculos de formulações epistêmicas. No caso da nossa pesquisa, a mulher docente na academia defronta-se com a produção de ciência, bem como, com as formulações advindas, em grande medida, do que se compreende por ciência. Os que pregaram durante muito tempo o pragmatismo, e ainda o disseminam, procuraram fixar imagens com o objetivo de invisibilizar a produção feminina. Compreendido como o conhecimento que está sob comando da vontade dos seres humanos, sem pretensão, precisão prática, não há conhecimento. Nietzsche formulou um pensamento que “consistia no seu exercício enquanto espírito livre”, conforme aponta Marton (NIETZSCHE, 2002, p. 14). Essa imposição de normas e padrões é bastante criticada por ele. Ainda há uma dominação por parte de entidades reguladoras que posteriormente Althusser (1970, p. 43) chamará de Aparelhos Ideológicos de Estado, sendo um deles a religião. Nietzsche diz que a ciência regula a vida das pessoas, controla seus corpos em detrimento de suas almas, se referindo aos cristãos. Há, segundo ele, uma tentativa de implementação de um tipo de sociedade ideal, que é a sociedade cristã ocidental, para dominar ideologicamente as pessoas.

O que é cristão é um certo instinto de crueldade para consigo e para com os outros; o ódio aos que pensam de maneira diferente; a vontade de perseguir. São as ideias

ocidental típico: ‘Esta conversa deve buscar o seu parceiro em todos os lugares, só porque este parceiro é outra, e, especialmente, se o outro é completamente diferente’ [...]. “Em uma conversa gadameriana, meu parceiro ideal seria a pessoa que está tanto ao contrário de mim quanto possível, e que eu deveria promover ativamente conversa com aqueles que não compartilham minhas opiniões e compromissos” (FLEMING, 2003, p. 110-111). Tradução nossa. Beauvoir (1980) destaca a importância de considerar o Outro como uma categoria a ser analisada. “A categoria do Outro é tão original quanto a própria consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias, encontra-se sempre uma dualidade que é a do Mesmo e a do Outro” (BEAUVOIR, 1980, p. 11).

sombrias e inquietantes que ocupam o primeiro plano; os estados de alma mais rebuscados, designados com os nomes mais honrosos, são estados epilépticos... (NIETZSCHE, 2002, p. 54).

Corroborando com a percepção apresentada acima, Hessen (2003) ressalta que “Verdadeiro, segundo essa concepção, significa o mesmo que útil, valioso, promotor da vida” (HESSEN, 2003, p. 40). Essa doutrina é baseada numa expressão muito interessante que é “O erro mais adequado”. Santos (2006) traz o debate sobre a validade dessas críticas, já que para ele a

indolência dos debates está em que eles, em geral, não põem em questão a descontextualização da razão como alguma coisa separada da realidade e acima dela. É por isso que, a meu ver, a crítica mais eloquente vem daqueles para quem as razões metonímica e proléptica não são simplesmente um artefacto intelectual ou um jogo, mas a ideologia subjacente a um brutal sistema de dominação, o sistema colonial (SANTOS, 2006, p. 782).

Procuramos propor alternativas de atuação, onde as “velhas verdades”, construídas sob o domínio do processo histórico controlado pelo patriarcado, sejam revistas, rompendo com as mesmas e, assim sendo, proporcionar novos diálogos. Nesse sentido, citando Amorós, Lagarde (1996, p. 53) diz que

El patriarcado... lejos de tener unidad ontológica estable es un conjunto práctico – es decir, que se constituye en y mediante un sistema de prácticas reales y simbólicas y toma toda su consistencia de estas prácticas –. Un conjunto práctico tal no puede ser sino metaestable. Por lo que podríamos decir que patriarcado es el conjunto metaestable de pactos – asimismo metaestablesentre - entre los varones, por el cual se constituye el colectivo de éstos como género-sexo y, correlativamente, el de las mujeres por razón estimamos que no tiene mucho sentido establecer una tipología abstracta de sistemas de género-sexo distinguiendo analíticamente la construcción cultural diferencial de los géneros del hecho de que la hegemonía puede tenerla en principio cualquiera de ambos, resultando así sistemas de género-sexo con dominante masculina o con dominante femenino o bien igualitarios.

Segundo Lage (2008b), as lutas igualitárias nos mais variados campos de experiências levam os movimentos sociais a “... reivindicarem metodologias sociais em campos historicamente afastados de qualquer possibilidade de acesso, como, por exemplo, o da educação” (LAGE, 2008b, p.09). Por isso mesmo, a ideia de inconclusividade da pesquisa, evitando o dogmatismo28 já mencionado. Ainda sobre essa questão Löwy (2003, p. 6) afirma que “A categoria metodológica da totalidade significa a percepção da realidade social como um

28 Como o próprio nome já nos diz, é uma corrente que procura uma única verdade, e baseado nesse ponto podemos

afirmar que ela possui um único ponto de vista que é a existência de uma verdade absoluta. O dogmatismo é unilateral em suas interpretações da realidade e faz com que haja uma possibilidade de encontro entre sujeito e objeto. Ainda descreve que todo conhecimento é racional e que este mesmo saber provém do conhecimento do sujeito. Hessen (2003) divide o dogmatismo em três, sendo eles: o teórico, o ético e o religioso.

todo orgânico, estruturado, no qual não se pode entender um elemento, um aspecto, uma dimensão, sem perder a sua relação com o conjunto”.

Para romper com uma visão de pesquisa que procura ser apenas algo alheio ao objeto a ser pesquisado, concordamos com o pensamento desenvolvido por Brandão (1984) quando afirma que deve vir da própria realidade.

Participar da produção deste conhecimento e tomar posse dele. Aprender a escrever a sua história de classe. Aprender a reescrever a História através da sua história. Ter no agente da pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma gente aliada, armada dos conhecimentos científicos que foram sempre negados ao povo, àqueles para quem a pesquisa participante – onde afinal pesquisadores-e-pesquisados são sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes – pretende ser um instrumento a mais de reconquista popular (BRANDÃO, 1984, p.11).

Sendo assim, pesquisador/a e objeto a ser pesquisado estão intrinsicamente ligados, procurando uma função social para a pesquisa, não apenas enclausurando-se em campos distantes do objeto pesquisado sem a intencionalidade de uma procura de mudança, dada a objetivação do caso pesquisado. No tocante à objetividade (CASTAÑEDA, 2008, p. 41-46) pretendida pelas ciências, sobretudo em relação a pesquisas nesta esfera, Santos (2004a) nos informa

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que precedem (SANTOS, 2004a, p.21).

Com isso, a nossa proposta não procura ser conclusiva, mas, sim, pretendemos trazer à luz das discussões temas que estejam, por hora, “ocultas”. Nossa investigação transcorre por caminhos nem sempre evidentes das representações sociais (CARNEIRO, 1994, p. 190), já que a imagem que é constituída sobre o nosso objeto de estudos (a mulher no espaço do trabalho acadêmico como produtora de conhecimento sobre si mesma) é erigida mediante a interpretação de pessoas, construções socioculturais, etc. (LAGARDE, 2011, p. 106). As interpretações podem ser construídas em consonância com a ação de tudo o que formou/forma o pensamento. O que recebe o nome de Zeitgeist (espírito da época), isso numa perspectiva de compreensão baseada na hermenêutica de Ricoeur (1978). Em outras palavras, tudo aquilo que levou o/a autor/a a produzir determinada ideia/concepção.

Entendemos por representações sociais o conceito definido por Minayo (1996). Para ela, “as Ciências Sociais são definidas como categorias de pensamento de ação e de sentimento que

expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a” (1996, p.158). (MINAYO, 2004, p. 13), (BRANDÃO, 1984, p. 21-22). Para Chartier, (2002) há uma intencionalidade nessa produção da representação (TEDESCHI, 2015, p. 574-578), uma concepção repleta de elementos de dominação e elementos tendenciosos (VEYNE, 1983, p. 6). As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 2002, p. 17).

Corrobora com a ideia acima a historiadora Scott (1992a), que destaca o papel da experiência (profissional) em observar as linguagens utilizadas, assim como, o sujeito que surge mediante o discurso.

Questions about the constructed nature of experience, about how subjects are constituted as different in the first place, about how one's vision is structured—about language (or discourse) and history—are left aside. The evidence of experience then becomes evidence for the fact of difference, rather than a way of exploring how difference is established, how it operates, how and in what ways it constitutes subjects who see and act in the world29(SCOTT, 1992a, p. 25).

Porém, Mies, nos evidencia a necessidade de não se colocar para pesquisa nossas frustrações, carregadas na experiência. “La introducción de la categoría de experiencia – o del ‘factor subjetivo’ – en la ciencia correspondía al lema según el cual ‘lo personal es político’” (MIES, 1998, p. 73), assim sendo, não levaria a resultados satisfatórios. Visão também compartilhada por Amorós (1994).

Toda experiência é confronto, já que ela opõe o novo ao antigo, e, em princípio, nunca se sabe se o novo prevalecerá, quer dizer, tornar-se-á verdadeiramente uma experiência, ou se o antigo costumeiro e previsível reconquistará finalmente a sua consciência (GADAMER, 2003, p. 14).

Santos (2006) vai trabalhar a ideia de inexperiência como fonte de dúvida ou mesmo impossibilidade de construção de saberes que sejam validados. Para ele a

pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar (SANTOS, 2006, p. 785).

29 “Questões sobre a natureza construída de experiência, sobre como os sujeitos se constituem como diferente, em

primeiro lugar, sobre como sua visão está estruturada – sobre a linguagem (ou discurso) e história – são deixadas de lado. A evidência da experiência, em seguida, torna-se evidência para o fato da diferença, em vez de uma maneira de explorar como a diferença é estabelecida, como ela funciona, como e de que forma ela constitui sujeitos que veem e agem no mundo”. Tradução nossa.

Lagarde (2000) nos auxilia com a ideia de autoestima, reforçando o caráter de confronto e bagagem pessoal. “La autoestima es, de hecho, una experiencia subjetiva y práctica filosófica asentada en una ética” (LAGARDE, 2000, p. 31). Continua afirmando que a

autoestima es, consecuentemente, una experiencia ética de fidelidad a una misma: una experiencia que fluye y se transforma en permanencia. Simboliza la máxima transgresión del orden hegemónico que prohíbe tal autoestima a las mujeres en rango de tabú. Construir la autoestima es vivir, de hecho, bajo las pautas éticas del paradigma feminista, es ser libre. La política feminista plantea como aspiración a que, además de ser libres, las mujeres vivamos en libertad” (LAGARDE, 2000, p.

32).

Graf (2012, p. 24-25) também questiona essa pretensa objetividade do método de pesquisa, pois posiciona a priori o/a pesquisador/a que procura conhecer como superior ao elemento investigado. Determinando o que conhece e quanto se conhece sobre determinado tema. Essa é uma das grandes características de uma epistemologia feminista (SILVA; OLIVEIRA, 2015a, p. 196-200).

A proposta epistêmica, sobretudo da quebra, trazida pelo pós-estruturalismo (DOSSE, 1993, 1994) avança em ampliar os estudos sobre gênero, em grande medida, nas ciências humanas e no papel desempenhado pela educação (LOURO, 2014, p. 142-160) e (LOURO, 2015, p. 7-34). Chartier (2002) salienta a ideia de real com um outro sentido, procurando não transformar a discussão entre verdade e ficção. É apenas no representado, que as práticas possuem valor, isto é, mediante a sua representação o seu estar para alguém. “O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efectivamente, não e (ou não e apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade da sua produção e na intencionalidade da sua escrita” (CHARTIER, 2002, p. 63).

Os conflitos, segundo essa concepção, não se dão a partir do social e sim da representação que o mesmo possui. Ampliando essa ideia e incorporando a concepção de realidade feminina, Pinsky (2009), associando-se a Scott (1990) e Lagarde (1996) entre outras, salienta a contribuição trazida com o advento da categoria e análise de gênero, sobretudo, pelas ciências sociais.

A categoria de gênero, (...) ajuda a pensar nessas questões, escapar ao reducionismo, levar em conta as transformações históricas e incorporar, na pesquisa e na análise, seus entrecruzamentos com etnia, raça, classe, grupo etário, nação entre outras variáveis (PINSKY, 2009, p. 163).

Associamo-nos com Ales-Mazzotti e Gewandsznajder (2004), Bogdan e Biklen (1994) e Richardson (1999), quando identificam a pesquisa qualitativa como própria para as ciências sociais. Nas quais a “abordagem qualitativa de um problema, além de ser uma opção do

investigador, justifica-se, sobretudo, por ser uma forma adequada para entender a natureza de um fenômeno social” (RICHARDSON, 1999, p.79). Assim como Minayo (1994), corroborando com esta perspectiva de maior proximidade e contato com o objeto e função social da pesquisa, diferentemente das ciências biológicas ou da natureza, não significando o enclausuramento da mesma. “O endeusamento das técnicas produz ou um formalismo árido, ou respostas estereotipadas. Seu desprezo, ao contrário, leva ao empirismo, sempre ilusório em suas conclusões, ou a especulações abstratas e estéreis” (MINAYO, 1994, p.16).30

A pesquisa qualitativa, na perspectiva apresentada acima, se caracteriza por ser uma forma de análise em que as condições estão inseridas de forma a evidenciar o papel não meramente estatístico dos dados que o/a pesquisador/a pretende analisar, mas sim evidenciar as condições e processamento dos mesmos. Relacionado a isso, percebemos que ela desenvolve um percurso onde a amplitude de conceito se estabelece de forma a auxiliar em nossa sugestão de trabalho (LAGE, 2013, p. 50).

Apesar dessa pesquisa ter uma abordagem qualitativa a sistematização dos dados será dada mediante a construção de tabelas, o que pode trazer a ideia de uma pesquisa quantitativa. O que não é o caso.

Acreditamos que a junção de métodos de análise e interpretação trazidos tanto pela concepção de pós-colonialidade, quanto associado a outras formas de interpretações epistemológicas, podem colaborar na nossa produção e análise dos dados de nossa pesquisa. Entretanto, não deixaremos de utilizar ferramentas teóricas desenvolvidas por concepções diferentes destas citadas, pois não compreendemos que exista uma teoria perfeita em si, nem em um método que, por si só, consiga responder a todas as demandas levantadas durante o processo de pesquisa, mesmo no que se refere à compressão de dados, análises totais, entre outros aspectos. Acaso essa fosse nossa compreensão, acreditamos que estaríamos incorrendo nos mesmos equívocos que estamos procurando combater em nossa produção, tais como: a uniformização, as verdades eternas, o dogmatismo, etc.

30 Hessen (2003, p. 54-58) define que, para muitos/as pensadores/as, o empirismo é o oposto ao que se define por

inatismo. Com isso, proclama que toda fonte de conhecimento humano advém da experiência vivida. De outra forma, este conhecimento não pode se processar. O empirismo combate o inatismo por sua análise conter apenas o elemento do “já existido”, a razão inata; enquanto na doutrina empirista, “irá existir” a partir das experiências dos seres humanos, o conhecimento só poderá existir através deste mecanismo. Assim como o inatismo, o empirismo cai num rigor metodológico que é unilateral, exclusivo, e torna-se assim questionável, ou seja, passível de erros de interpretação, pois uma única forma não seria capaz de explicar todos os elementos estudados/analisados/questionados.