O enunciar de uma pintura fotogénica (Foucault, 1975), que assombra pintores e fotógrafos a par- tir da segunda metade do século xix, posiciona formas de reacção distintas ao aparecimento de um meio, que Jean Auguste Dominique Ingres não hesitou em qualificar como andrógino: «a
pintura não diz que a fotografia é bela. Ela faz melhor: produz um belo hermafrodita do registo fotográfico e do quadro, a imagem andrógina». (Foucault, 1975: 346)
Heinrich Schwarz, historiador de arte com relevantes contributos para o estudo das rela- ções entre a Arte e a Fotografia, publica na década de 1950 o ensaio Art and Photography, no qual utiliza o termo abstracção para caracterizar a capacidade que a prática fotográfica tem de estabe- lecer «uma organização emocional e racional destinada a eliminar a desordem e tanto quanto possível o acidente» (Schwarz, 1985). Defensor da ideia de que, mais do que reproduzir, fotografar é um modo
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122. ana leonor (madeira rodrigues), Abstracção Fotográfica, 1981. Óleo sobre tela, 90 × 120 cm.
transforma a realidade, não a duplica. Por outras palavras produz uma abstracção.». (Schwarz, 1985)
É precisamente esta capacidade de produzir abstracção e (des)ordem formal, entre a re- presentação fotográfica e pictórica, que se experimenta na segunda exposição apresentada na ether, entre 6 e 30 de Maio de 1982.
Abstracção Fotográfica (1982) integra e debate a ligação disciplinar entre a Pintura e a Foto-
grafia, abrindo o programa expositivo da associação às relações recíprocas que sempre preva- leceram entre ambas e que se esclarecem no texto do cartaz/desdobrável, não assinado, mas de autoria de António Sena: «para quê ocuparmos um espaço dedicado à fotografia com uma exposição de pintura?». (Rodrigues, 1982)
Na primeira exposição individual de Ana Leonor (Madeira Rodrigues), depois das primei- ras exposições colectivas na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e na Sociedade Nacional de Belas Artes, foram apresentadas seis pinturas — óleo sobre tela, acrílico e têmpera em tela — realizadas a partir de amplicópias de negativos fotográficos. [fig. 122] Nestas obras, Ana Leonor desenvolve um trabalho pictural, que se desdobra no desenho e na gravura e adopta a apropria- ção da imagem fotográfica como método: «o seu ponto de partida são amplicópias comuns de nega-
tivos péssimos e sem tratamento laboratorial adequado. Porquê um tal desinteresse e uma tal indiferença pela sua qualidade? Para Ana Leonor “a fotografia fica esquecida por trás da pintura”, ela está-se nas tintas para o objecto que lhe serve de auxílio porque a fotografia não passa de uma coisa insignificante.».
(Rodrigues, 1982)
Em Abstracção Fotográfica (1982), é possível reconhecer a tensão que a Fotografia desde
sempre manteve com a Pintura, passando de mero instrumento auxiliar do pintor para a irre- versível transformação dos modos de representar e reproduzir a sua obra: «pintores e fotógrafos,
felizes e infelizes com o realismo fotográfico, alimentaram os seus gostos e desgostos com as relações de volume, as escalas cromáticas, os brilhos, os enquadramentos, os instantâneos, a perspectiva e a visão monocular que alteravam a sua velha maneira de ver». (Rodrigues, 1982) Nestes primeiros trabalhos,
mais do que instrumento, a imagem fotográfica é dissolvida e desrealizada pela própria pintura, adquirindo uma capacidade de abstracção ou, parafraseando a expressão de Jean Auguste Domi- nique Ingres, alcançando a androginia da imagem pela técnica.8
8. Foi possível identificar duas referências no texto do catálogo que se repetem no argumento de Olho de Vidro,
uma História da Fotografia. A primeira trata-se da afirmação de Jean Auguste Dominique Ingres, «a fotografia é uma coisa maravilhosa mas não se deve dizê-lo» (Rodrigues, 1982), que surge no argumento do segundo episódio a par da
referência às vanguardas históricas; e uma segunda citação, mais extensa, com eco na participação de Isabel de Castro, ainda no primeiro episódio:«Dizer de uma pintura que ela “até parece uma fotografia” ou dizer de uma fotografia que ela “até parece uma pintura” continuam a ser atributos de qualidade na apreciação comum. Parecer aquilo que não é talvez seja o jogo mais frequente da história das expressões». (Rodrigues, 1982)
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O título da exposição, Abstracção Fotográfica, segue essa contradição entre a génese técnica que prende todas as fotografias a uma realidade, e a possibilidade de equacionar a experiência e a percepção abstracta dessa realidade, pela sua contínua apropriação e reprodução. Uma contradi- ção que é interrogada no texto do catálogo: «enquanto as palavras definem, limitam ou restringem — basta terem significados próprios e distintos — é urgente descobrir uma certa indefinição evidente na con- tradição entre o título (“abstracção fotográfica, 1982”) e o material utilizado (as tintas)». (Rodrigues, 1982)
As imagens que servem de fundamento para as pinturas retratam diferentes enquadra- mentos do interior de uma máquina de lavar loiça e motivam um imaginário próximo das temá- ticas que Ana Leonor Rodrigues desenvolve, a partir de 1993, nas situações ficcionadas sobre o espaço da cozinha, apresentadas respectivamente nas séries O Efeito BBB sobre bactérias em cozi- nhas azuis abandonadas (Lisboa, 1996) e Der BBB Effekt (Frankfurt, 1998), ambas publicadas em Queimado Por Azul (Rodrigues: 2006) ou, recentemente revistas, em Actos Compulsivos de Comuni- cação entre Bactérias e Humanos (2009) e When a kitchen dreams II (2009).
À semelhança das opções gráficas e editoriais adoptadas em Lisboa e Tejo e tudo (1956/59), também o catálogo de Abstracção Fotográfica (1982) [fig. 120-121] repete o formato de cartaz/des-
dobrável, reunindo, para além das obras, uma sequência de documentos sobre a exposição que, neste caso, incluem o próprio processo de produção e montagem. Assim, no verso do cartaz/ desdobrável são reproduzidas três das seis pinturas expostas (com dimensão original de 90 × 120 cm), esboços de paginação do catálogo e duas fotografias da autoria de António Sena: um retrato de Ana Leonor Rodrigues e uma vista do atelier da autora, com uma das telas, ainda em processo, sobre o cavalete.
A imagem escolhida para a frente do cartaz9, a reprodução serigráfica de uma das telas em exposição, é uma imagem composta, que resulta de uma sobreposição de técnicas de impressão: uma serigrafia feita a partir de uma reprodução fotográfica de uma pintura a óleo sobre tela, apropriada de negativos fotográficos positivados em amplicópias. Uma imagem síntese que é, de certo modo, uma história abreviada dos meios de reprodução em que a Fotografia se insere e onde frequentemente alcança a invisibilidade.
Nesta exposição, a Fotografia torna-se uma discreta infiltração, nas tintas e pigmentos que a reproduzem de forma desinteressada, participando numa imperceptível cascata de ima- gens, para a qual muitas vezes se pode olhar sem ver.
9. Cada um dos exemplares do cartaz/desdobrável foram personalizados por Ana Leonor Rodrigues com uma assinatura pintada a acrílico e/ou caneta de feltro, inscrevendo uma linha amarela vertical e uma linha vermelha de disposição aleatória na frente do cartaz.