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4 INSTRUIR O CLIENTE A MENTIR EM JUÍZO: UM DIÁLOGO ENTRE O EXERCÍCIO ÉTICO DA ADVOCACIA E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA

4.1 O “DIREITO DE MENTIR” DA PARTE E A CONDUTA DO SEU REPRESENTANTE

4.1.2 Do abuso do direito

Verifica-se o abuso do direito quando o indivíduo é titular de um direito que lhe é conferido por lei, mas faz uso desmedido desse direito, causando prejuízos a outras pessoas, direta ou indiretamente. Assim, o exercício do ato é legal, porém o modo de praticar o direito é abusivo. São elementos fundamentais à configuração do abuso do direito: a titularidade de um direito, a possibilidade de exercício desse direito, o uso de um direito objetivo e legal, a existência de dano a um interesse protegido, que este dano seja imoral ou antissocial e o desvio de finalidade quando da prática do ato lesivo (THEODORO JÚNIOR, 2000).

O abuso do direito foi ventilado, inicialmente, na esfera do direito processual civil, mas, desde o final do século XX, vem sendo considerado também como um instituto do direito processual penal. Isso porque o Estado Social de Direito, com todas as suas implicações, está claro nos diversos princípios constitucionais que privilegiam as situações existenciais e de igualdade social. Por estarem no topo do ordenamento jurídico, esses princípios devem ser a base das normas infraconstitucionais de todos os ramos do direito, bem como da atuação do intérprete na aplicação do direito positivo, incluindo, por óbvio, a aplicação do direito

processual penal.

Assim, os indivíduos, no exercício dos seus direitos subjetivos, tanto no dia-a- dia como na condição de sujeitos processuais, devem observar se esse exercício está em conformidade com a função social da norma que os prevê. Para tanto, é preciso verificar se encontram suporte nos princípios constitucionais de igualdade, solidariedade e dignidade, dentre outros. Caso o exercício esteja em harmonia com a norma, mas em desacordo com os princípios constitucionais determinantes da função social desta mesma norma, resta patente o exercício abusivo do direito, nas mais diversas esferas do direito. Conforme ensina Cordeiro (1997, p. 879), “o abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jussubjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema que estas se integrem”.

De certo modo, as experiências autoritárias do passado contribuem com as ideias que autorizam o uso de quaisquer ferramentas processuais contra o poder punitivo do Estado, que seria sempre abusivo. Todavia, se a dogmática está encarregada de conter os excessos do poder punitivo, a leniência diante do abuso do direito de defesa não é o meio para se alcançar tal objetivo. No âmbito processual penal, ainda que não exista uma regulação referente ao abuso do direito tão expressa quanto na legislação civil, a feição constitucional do procedimento acusatório serve de abrigo ao reconhecimento do abuso de garantias processuais. Há, subjacente, uma regra tácita que demanda o exercício funcional de qualquer garantia.

Não se faz impossível aplicar regras preventivas do abuso de garantias no processo judicial, porquanto o exercício de uma garantia não apenas se ordena em face do Estado, mas também opera eficácia contra particulares. Isto é, na relação processual, o exercício da defesa não somente exige posturas negativas (de abstenção) ou positivas (de prestação) do Estado-Juiz, mas igualmente da parte contrária (ALVES, 2007).

Também as partes da relação processual penal têm o dever de agir com lealdade, probidade e boa-fé, sendo que os direitos que lhes são permitidos exercer não podem ser manejados de modo abusivo ou temerário, nem servir para a procrastinação do processo. É fundamental que se conceba o processo penal como um instrumento ético de aplicação do direito, em que os excessos, a má-fé e a deslealdade não merecem guarida, sejam por parte da acusação ou da defesa.

Neste diapasão, é inadiável a garantia de um processo penal justo e leal, calcado em procedimentos livres de incorreções por parte dos que dele participam. Esta concepção é pertinente a todo o tecido processual penal, seja no tocante ao exercício de ação, ao direito à instrução probatória ou ao direito do acusado à ampla defesa (SOUZA, 2007).

O direito ao silêncio está consubstanciado no direito à ampla defesa, já abordado mais detalhadamente. A ampla defesa confere ao imputado, como visto, a possibilidade de se defender do fato que lhe é atribuído, utilizando todas as provas admitidas pelo Direito (BRASIL, 1988). Porém, não pode o acusado ultrapassar a linha da autodefesa e atrapalhar o curso do processo, caso contrário, estará incorrendo em abuso do direito. Assim, ao se defender, ele não está autorizado a, em nome do direito à ampla defesa, no qual reside o direito de permanecer calado em juízo, valer-se de expedientes como mentir diante do julgador ou atribuir crime a outra pessoa. Isso porque tais expedientes dificultam a consecução da função social do direito e, consequentemente, de suas normas.

Ademais, utilizando-se dessas ferramentas, o acusado promoveria a dilação indevida do processo, proibida, pela Constituição vigente no país, que preza pela duração regular do processo, pois o julgador necessitaria de mais diligências, a fim de alcançar a verdade real. Essa dilação indevida também corrobora para que outras pessoas tenham dificuldade em usufruir de uma boa prestação de serviços por parte do Judiciário. A partir de quando um processo demanda, desse Poder, mais tempo para ser solucionado, o acesso dos demais indivíduos à Justiça se torna dificultoso e moroso, em decorrência do acúmulo de ações que ficam pendentes de resolução.

Consequentemente, se o imputado ultrapassa os limites da autodefesa, incorre em abuso de direito processual, posto que não lhe é permitido manejar o processo de forma a causar danos à sociedade e à justiça. É abusiva, então, a conduta de quem, com espeque no direito de permanecer calado em juízo, manipula o processo conforme seus interesses, em detrimento da função social do direito e de suas normas, das quais toda a sociedade é destinatária, dificultando, assim, a realização da justiça.