• Nenhum resultado encontrado

A VERDADE NO ÂMBITO JURÍDICO: VERDADE FORMAL, VERDADE MATERIAL E VERDADE PROCESSUAL

O direito está inserido nos diversos campos do conhecimento que têm alçado a verdade a objeto de estudo. No mundo jurídico, uma dificuldade fundamental que se apresenta ao julgador, na busca pela realidade dos fatos a serem considerados na decisão, é a impossibilidade de observação direta dos acontecimentos.

Diferentemente do que se passa nas ciências experimentais, em que o pesquisador tem contato direto com fenômenos que se repetem na natureza ou pode reproduzi-los em laboratórios, a investigação judicial dirige-se a situações que já ocorreram, cuja reconstituição só pode ser realizada por meios indiretos. Inclusive, ainda que o julgador tenha presenciado algum evento que está agora sub judice, não poderá julgá-lo utilizando seus conhecimentos pessoais, posto que, nessa situação, será testemunha judicial, e não julgador (GOMES FILHO, 1997).

Nos processos que tramitam no Poder Judiciário, a verdade é geralmente analisada sob dois prismas: o da verdade formal e o da verdade material. A verdade formal pode ser considerada como a que resulta do processo, embora possa não encontrar exata correspondência com os fatos, como aconteceram historicamente. É a validade de uma conclusão à qual se chega seguindo-se as regras de inferência, a partir de postulados e axiomas aceitos. A verdade formal é extraída das provas

produzidas nos autos, que podem ser diversas da efetiva realidade. É, então, caracterizada pela possibilidade de se proferir decisão dissociada da realidade, com base em elementos probatórios insuficientes para o completo esclarecimento dos fatos, mas ancorada no sopesamento dos elementos probatórios levados aos autos pelas partes. Pode, assim, também ser chamada de verdade judicial (SILVA, 2002).

Ainda que a verdade judicial não corresponda à completa realidade dos fatos, a decisão proferida com base nela é legal. Isso porque tal decisão foi prolatada em conformidade com o conjunto probatório que emerge dos autos, ou seja, a atuação jurisdicional está devidamente amparada e fundamentada no que consta no processo, não sendo, desse modo, uma arbitrariedade do julgador.

Já a verdade material ou real é tida como reveladora dos fatos tal como ocorreram historicamente e não como querem as partes que apareçam realizados. É a adequação entre o que é e o que é dito, e determina que o fato investigado no processo deve corresponder ao que está fora dele, em toda sua plenitude, sem quaisquer artifícios, presunções ou ficções. A verdade real encontraria menos empecilhos para atingir a verdade absoluta – a idêntica representação dos fatos (SILVA, 2002). Conforme ensina Tucci (1986, p. 83), pode-se definir a verdade real como "a reconstrução atingível de fato relevante e metaprocessual [...].”

A verdade real, todavia, não corresponde à verdade absoluta, do mesmo modo que a verdade formal não se identifica com a inverdade. A verdade absoluta é inatingível e seria utópico instituí-la como objetivo final a ser alcançado em uma ação judicial. A verdade é aferível dentro de certos limites processuais, aproximando-se, na medida do possível, de ideia que leve ao conhecimento da certeza almejada (TUCCI, 1986). A vedação constitucional à utilização das provas ilegais no processo é uma dessas limitações. A despeito dos diversos instrumentos dos quais o julgador pode lançar mão a fim de alcançar a verdade factual, ele fica restrito ao limite da legalidade, haja vista que a apuração sem limites de fatos puníveis pode colocar em risco valores individuais e coletivos de considerável relevância. A verdade real no processo, assim, não pode ser compreendida como a verdade absoluta. Mesmo quando o juiz busca por ela, sendo mais proativo na fase da instrução probatória, o efetivo aclaramento dos fatos pode não ser alcançado.

A prática jurídica levou à diferenciação entre verdade formal e verdade material em virtude da diversidade de características entre o processo civil e o processo penal. Aquele, em regra, é instrumento para a resolução de conflitos

referentes a direitos disponíveis. O magistrado, então, pode se contentar em acolher o que as partes levam ao processo, pouco ou nada interferindo na produção probatória. Ele pode ser mais condescendente na apuração dos fatos, sem a exigência de diligenciar, de ofício, para a apuração da verdade. Pode, portanto, se satisfazer com a verdade formal. Ao tratar do tema, Barros (2002) ensina que, tendo em vista a impossibilidade de alcance da verdade plena em todo o processo, em certos casos, por opção política, o Estado-juiz se limita à verdade produzida pelas partes, abreviando a solução dos conflitos, sem precisar dispender toda a sua energia para apurar, por iniciativa própria, a veracidade dos fatos.

Na esfera processual penal, de outro modo, prevalece, via de regra, a indisponibilidade de interesses. Dessa forma, a decisão prolatada nos autos deve refletir, na medida do possível, a realidade dos fatos ocorridos e, para tanto, a pesquisa acerca de o que efetivamente aconteceu deve ser ampla, a fim de que a realidade possa ser expressa, com fidelidade, no processo. Não é suficiente, portanto, no processo penal, que algo apenas pareça ser verdadeiro, razão pela qual se deve procurar introduzir, nos autos, a expressão do que mais se aproxime da realidade, por meio de uma conduta mais ativa do juiz quando da fase da produção de provas. Ao abordar o assunto, Mirabete (1992, p. 210) afirma que a verdade real exclui “os limites artificiais da verdade formal, eventualmente criados por atos ou omissões das partes, presunções ficções, transações etc., tão comuns no processo civil.”

Ocorre que o processo civil vem passando por importantes mudanças, que autorizam a maior participação do juiz na condução do processo, assumindo o julgador um papel mais incisivo na busca pela verdade material, com o objetivo de formar o seu melhor convencimento. Não se pode mais considerar razoável que o magistrado seja apenas um simples espectador no desenrolar do processo civil, que adquiriu caráter público, de finalidade sócio-política (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2008).

A dicotomia verdade material/verdade formal, nesse novo contexto, tem sido alvo de críticas. Prefere-se, hodiernamente, afirmar que a verdade é a judicial, caracterizada por ser contextual e funcional. Isso significa, respectivamente, que a verdade judicial estará sempre inserida em um determinado contexto, qualquer que seja o âmbito de investigação em que é obtida (havendo maior ou menor atividade do julgador na fase probatória) e que representa os valores vigentes na sociedade

em nome da qual a justiça é administrada. Tanto no processo penal quanto no civil, a verdade a ser alcançada é a processualmente válida (FERNANDES; GOMES FILHO; GRINOVER, 1994).

Ao julgador, não deve importar que o autor ou o réu vença a contenda judicial, com base nos seus caracteres pessoais. Mas a atividade judicial somente se justifica se buscar dar ganho de causa àquele a quem a razão assiste. Para que isso seja possível, é necessário que, nos processos judiciais, sejam eles provenientes de qualquer ramo do Direito, se pretenda obter a reconstrução fatual o mais próximo possível da realidade objetiva. O conhecimento mais acurado possível dos fatos essenciais ao deslinde da causa é, por princípio, requisito para uma boa sentença, ainda que fatores de política legislativa imponham a renúncia ao esgotamento completo das fontes de informação (MOREIRA, 1996).

A dicotomia verdade material − verdade formal, nesse novo contexto, tem sido, de fato, alvo de críticas. Prefere-se, agora, afirmar que a verdade é a judicial, caracterizada por ser contextual e funcional. Isso significa que, na busca pela realidade objetiva, factual, a verdade judicial estará sempre inserida em um determinado contexto, qualquer que seja o âmbito de investigação em que é obtida (havendo maior ou menor atividade do julgador na fase probatória) e que representa os valores vigentes na sociedade em nome da qual a justiça é administrada. Tanto no processo penal quanto no civil, a verdade a ser alcançada é a processualmente válida (FERNANDES; GOMES FILHO; GRINOVER, 1994).

É possível observar, desse modo, que na esfera jurídica os aplicadores do direito tratam da verdade em um sentido mais tradicional, enquanto correspondência ou adequação às coisas como elas são, aléthea, ou como associação da linguagem (relatos) aos fatos ocorridos, referindo exatamente as coisas como foram ou se passaram, veritas. Entretanto, os doutrinadores reconhecem a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de que o processo judicial reflita o que ocorreu, objetivamente, na realidade. Por isso, admitem, em consonância com uma perspectiva mais contemporânea da verdade, que aquilo que é tido como verdadeiro no âmbito jurídico- processual está submetido a determinados limites, condições e circunstâncias que acabam por direcionar a verdade rumo a finalidades que os homens almejam realizar, o que faz com que a verdade processual se mostre de maneiras diferentes, a depender das contingências.

3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA E O PAPEL DO