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Dentro do campo do desenho artístico existe uma pluralidade de hipóteses. Bernice Rose divide-o em dois grupos: o preparatório e o acabado (Rose, 1976). O preparatório relaciona-se, mais directa- mente, com os estudos feitos pelo artista para pré- -visualizar resultados que serão aplicados noutro

media. O desenho acabado consiste na obra em

si terminada. O desenho de massa consiste numa tentativa de aproximação do desenho ao efeito da cor. Os autores utilizam a massa para sugerirem a diferença tonal e os volumes. Este efeito pode con- trariar a utilização do desenho de contorno. Os tra- balhos de Georges Seurat situam-se aqui. O autor tencionava conferir uma igualdade de acabamento ao desenho tal como na pintura, elevando assim, o seu estatuto. A exibição de obras suas, como tra- balhos acabados, efectuadas deste modo, foi um dos passos fundamentais para a independência do desenho.

Seurat,

Passeio, 1883,

pena e tinta s/ papel- forte,

29,8 x 22,4 cm

Ao longo da história de arte muitos desenhos que foram feitos com a intenção de funcionarem como estudos, foram transferidos para o grupo do de- senho acabado. Isto sucedeu devido à valorização posterior a que foram sujeitos. O distanciamento levou a uma validação desse inacabado dentro da experiência estética. Esta valorização tem seme- lhanças com a ascensão da arte abstracta, no que concerne à liberdade concedida ao observador. Pe- rante o não figurativo tendemos a projectar formas concretas. De modo semelhante o inacabado pode incitar à finalização da obra. Ou seja, o que não está presente é convocado ou imaginado na mente daquele que vê a obra, diferindo de indivíduo para indivíduo.

A história do desenho oscila entre o desenho como esboço e enquanto trabalho acabado. Diferentes graus de apreciação foram feitos. Enquanto alguns prezavam os primeiros pensamentos dos mestres renascentistas, humildemente apresentados no papel, outros valorizavam o rigor do acabado e da pintura fina. Muitas vezes os desenhos eram classi- ficados por géneros (paisagem, grotesco, arquitec- tura, académico). Nos vários períodos existiram os- cilações na avaliação do desenho. No séc. XX, mais intensamente, a partir da segunda metade, a valori- zação do processo destacou o inacabado e o registo da ideia mental do artista. Neste caso, o desenho estava presente e os autores falavam dele, mas era mais um auxiliar ou uma metáfora para a criação do que propriamente o fim ou a técnica de eleição. A partir de 1990 assistiu-se a um ressurgimento da disciplina, desta vez aproximando-se mais do séc. XIX e opondo-se, muitas vezes à orientação através do processo.

O inacabado pode providenciar um início, dá azo a uma maior multiplicidade de interpretações e sen- sações, uma vez que não tem o mesmo teor rígido que uma obra terminada. O conhecimento deste aspecto leva muitos autores a aplicarem às suas produções esta estética do inacabado, aumentando a expressividade e plasticidade dos seus trabalhos. Com o pós-modernismo e os novos paradigmas que ele vem suscitar, como a desmaterialização do objecto artístico, o desenho foi também afectado.

Porém, neste caso, muitas foram as ocorrências que o enfatizaram. Sempre partindo da importância dada à disciplina como processo. Abordando-o con- ceptualmente foi realçada a sua natureza experi- mental e a ideia de inacabado.

Desde o período impressionista que os paradigmas artísticos foram sofrendo alterações consideráveis. Nesse momento os artistas realizam uma ruptura com cânones académicos. Ao trabalho acabado cuja ambição visa a perenidade opõem a captação do instante e fugidio conquistando uma libertação crucial para a exploração artística. A abstracção prende-se com um elevado grau de subjectividade. O Expressionismo Abstracto assumiu a valori- zação do inacabado. As obras desta manifestação artística tinham uma aparência incompleta. Por sua vez, esta característica potenciava uma ampli- ficação de interpretações. Estas circunstâncias na apresentação dos trabalhos levaram ao repensar dos próprios esboços. Uma vez que uma pintura po- dia ser validada deste modo, o mesmo ocorreria em relação ao desenho que deixava de ser apenas parte integrante de um projecto a realizar, para passar a ser julgado como obra em si. O que os artistas ex- pressionistas fazem é esse enaltecimento da marca do desenho, da acção criativa.

Jackson Pollock,

Untitled, 1944,

aguarela e tinta s/papel, 31,8 x 25,7 cm

«Distintions between drawing and painting became irretrievably blurred when Jackson Pollock started to paint with line in the late 1940s.» «In his pain-

1 DARWENT, Charles; MacFarlane, Kate; Stout, Katharine e Kovats, Tania, The Drawing Book: A Survey of Drawing- The Primary Means of Expression,

London, Black Dog Publishing, 2007, p. 18.

tings the scale of drawing is blown up and the line operates between description and non-description. By pouring paint onto canvas in an act of raw emo- tional expression, Pollock severed the anatomical connection that had tradicionally linked the artist’s hand, brush and canvas. Pollock’s work marked a shift away from representation and towards abs- traction that prioritized the act and the manipula- tion of materials. »1

Neste excerto assume-se a transferência da atitude do desenho para a pintura e com ela toda a experi- mentação implícita ao meio gráfico. A relação de intimidade entre o autor e materiais, instrumentos, suporte, é mantida. Valoriza-se o processo de busca de algo, de procura da emoção estética e, como tal, o que não se diz revela-se tão importante como o que se diz. O inacabado familiariza-se.

Miguel Ângelo,

Estudo para Escravo, 1516,

giz negro s/ giz vermelho, 388 x 235 mm

O conceito de inacabado remonta ao tempo de Miguel Ângelo (Frade, 2002). Esta atitude é uma das negações do academismo, ao trabalho dentro da norma, sem nada a apontar, e cujo principal valor está nesse domínio técnico. Os trabalhos assim contextualizados revelam perfeição, mas, por outro lado,também se afastam do carácter im- perfeito da natureza humana. A preocupação em demasia pelo bem acabado pode ter efeitos nefastos na expressão, uma vez que o autor fica subordinado à correspondência a expectativas que distorcem o impulso primitivo e natu-

ral da criação. As marcas da acção ficam artificialmente escondidas. A relação entre a pintura e o desenho sempre foi questionada e esta ideia do acabado e inacabado são parte do motivo da discórdia. O inacabado assume-se como um acto de maior sinceridade, uma vez que revela a mestria do artista a par com as suas hesitações e inqui- etações. Neste tipo de trabalho deparamo-nos com os vestígios das decisões, do processo seguido pelo seu autor. A obra encontra-se desnudada. Caracteriza-se pela fragmentação, pelo desequilíbrio, pela irregu- laridade. A preparação para a apreciação de traba- lhos destes foi-se constituindo ao longo dos tempos, verificando-se a existência da oposição entre obras idealizadas, onde a perfeição da totalidade e o equi- líbrio eram os valores eleitos (caso presente no séc. XVIII) e obras inacabadas que rompiam com esses princípios. A observação crítica sobre o passado e a reformulação dos critérios estéticos levou à atribuição de importância e de qualidade a muitos desses feitos, anteriormente desclassificados. Foi este passo que levou à conquista de autonomia por parte do desenho.

Quando as linhas conduzem à desintegração do de- senho e da forma o negro é considerado um apagar. As figuras existem como uma espécie de fantasmas que nunca se sabe quando vão desaparecer. São um reflexo da própria condição humana. Ressalvam o conceito de inacabado ou de quando se deve parar no desenho. Encontram-se entre o inacabado e a acumu- lação excessiva de traços.

A ideia de equilíbrio, entre o grau de acabado e inacabado, é reproduzida segundo a construção de visões do mundo. Estas possíveis imagens, represen- tativas do absoluto são de um teor mais abstracto e espiritual. Algumas delas abrem-se para o infinito ao constituírem-se, não como fronteiras, mas segundo espécies de grelhas ilimitadas, valorizando-se assim o inacabado. O artista, que implica assim a sua obra intencionalmente, deve saber quando parar, deve seleccionar atentamente o que é dito e o que fica por dizer. As marcas desenhadas devem ser insinuantes de algo mais.

Na contemporaneidade vários autores parecem dei- xar as suas obras em aberto. No entanto esta esté-

tica do inacabado não é propriamente uma temática onde se reúnam uma série de artistas. Consiste antes numa atitude que foi herdada do modo expressionis- ta de Miguel Ângelo tendo o seu eco em diferentes momentos da história da arte com predominância no período expressionista abstracto e reflectindo-se em casos onde a postura gestual está mais presente.

4.1.10