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Acerca dos manuais ou métodos de ensino

No documento Uma língua singularmente estrangeira (páginas 123-129)

PARTE I: A MEMÓRIA DO ESPANHOL NO B RASIL

Capítulo 2: A segunda cena. Confronto entre memória e atualidade

2. O diagnóstico da prática de ensino-aprendizado de espanhol

2.4. Acerca dos manuais ou métodos de ensino

responsável pela produção de determinados resultados. A prática, portanto, na maioria dos casos, ficou a mercê de tais métodos. Por isso, e em função de poder interpretar melhor os resultados mais gerais desse trabalho, passaremos a fazer aqui uma breve caracterização desses materiais didáticos.

Tentando, agora, centrar-nos na breve caracterização que desses materiais nos dispomos a fazer, é possível observar que um fator importante na hora de avaliar os resultados do trabalho da prática empreendida está relacionado com o modo pelo qual a maioria deles “encara” três aspectos de uma mesma questão: a relação sujeito do aprendizado-língua-real. Em primeiro lugar, o sujeito é visado apenas como um indivíduo com um pensamento dirigido a concretizar suas intenções e a encaminhar suas necessidades. Em segundo lugar e conseqüentemente, a língua é vista como um meio de expressão que se ajusta a esse pensamento. Essas duas concepções implicam uma visão da língua como instrumento de comunicação, com a “noção higiênica”, na formulação de Gadet e Pêcheux, de que o que se comunica são informações (1984, p. 118). Por fim, como o que está em jogo é uma teoria do mundo normal – a expressão é dos próprios autores (id.) –, esse real é encarado como a “realidade”, isto é, segundo Pêcheux, como um sistema de evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas.173 Além disso, está atravessado por uma racionalidade marcada sobretudo pelo domínio do cálculo e da previsão, e regido por uma espécie de lógica universal do cotidiano.174

Um exemplo virá esclarecer o que dizemos. Vejamos a apresentação que introduz uma das unidades de um desses métodos. À enunciação do título principal, “En el restaurante”, segue-se imediatamente a dos “objetivos comunicativos”:

• Preguntar por un deseo o necesidad

• Preguntar el importe

• Pedir la comida

dos métodos, é preciso dizer que ainda se sente uma enorme falta de certos instrumentos; e até hoje é notável a carência de dicionários bilíngües espanhol/português brasileiro (id.).

173 Cf. 1988, p. 162.

174 É possível observar, com base em reflexões de Franzoni, que esses três aspectos da relação sujeito do aprendizado-língua-real que analisamos já estavam, de alguma forma, na caracterização do “âmbito” que J. L.

Trim determinava na redação dos projetos “Threshold Level” (Nível Umbral). É preciso esclarecer que tais projetos eram liderados, no século passado, pelo Conselho de Europa, “organismo voltado para resolver questões de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras numa Europa com grandes movimentos migratórios, tanto internos – entre os próprios países europeus – quanto externos – provenientes de outros continentes”

(1992, p. 70). Como observa a própria Franzoni, o sujeito desses projetos era um “sujeito comunicador” que deveria realizar “as próprias ‘intenções’ comunicativas em um âmbito restrito: o das ‘situações cotidianas’”

(ibid.).

• Pedir que alguien haga algo

• Responder a peticiones

• Expresar los gustos

E a esses objetivos seguem-se os “gramaticais”:

• Imperativo formal

• Imperativo informal

• Presente de indicativo de poder, querer, hacer

que, somados aos itens denominados “Pronúncia” e “Léxico”, exercem em cada unidade uma espécie de “administração da língua”. O item “Léxico” trata dos:

“Alimentos: carnes, pescados, frutas y verduras”.175 As seqüências de diálogos e fragmentos que seguem a tal apresentação parecem pôr à disposição do aprendiz uma série de enunciados que – parafraseando Pêcheux (1990b, p. 31) – refletem propriedades estruturais independentes de sua enunciação: essas propriedades se inscreveriam, transparentemente, em uma descrição adequada do universo.176

175 Fizemos a citação de um dos métodos mais utilizados nessa fase inicial da prática de ensino-aprendizado de espanhol no Brasil, fortemente marcada pela improvisação: Castro Viudez, F. et alii, 1995, p. 53-62.

176 Neste ponto, merece ser comentado, mesmo que de forma sintética, o conceito de cultura implícito nestes materiais. De fato, no método que tomamos como exemplo, a enunciação dos objetivos que introduz cada unidade inclui, no geral, a dos “culturais”. Para o caso da unidade “En el restaurante”, eles são

Hábitos alimenticios Horarios de comidas

Alimentos de España e Hispanoamérica Descubriendo a Manuel Machado

De fato, ao oferecer informações sobre costumes, horários, tipos de alimentos (incluindo os pratos típicos de cada país) e até a leitura de um texto literário, essas listagens parecem responder às expectativas criadas por uma espécie de guia de turismo. O gesto, de novo, pode ser posto em relação com a elaboração do nível umbral do Conselho de Europa, pois, como observa Franzoni,

O perfil de aprendiz/destinatário desses projetos é, segundo Van Ek (1975), o de um visitante temporário ou o de um nativo que terá contatos também temporários, portanto superficiais, com estrangeiros em seus país. Esse perfil explica o aspecto de “guia turístico” presente na maioria dos manuais ligados ao projeto “Threshold Level” [...] (1992, p. 70) A partir daí e da idéia de que esses materiais se centram na amostragem daquele real homogêneo de que falamos, tudo aquilo que não está previsto ou calculado na rede racional que o compõe cai no espaço do exótico, do mundo do “natural” ou “autóctone”. Aparece, na verdade, como um “furo” ou como um defeito do real – a expressão é de Pêcheux (cf. 1990b) –, pois funciona como um resíduo anacrônico ou uma simples supervivência de interesse folclórico e turístico. Sua aparição no meio da rede racional estendida pelo avanço da “civilização” – isto é, tudo aquilo que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos acredita que leva vantagem em relação a sociedades anteriores ou às contemporâneas mais primitivas – irrompe sob a forma da dúvida, da sombra que instala a própria linha e luz da razão. Esses furos instáveis e sombrios não representam nada mais do que o fardo determinista que a civilização carrega nas costas e, em nosso caso,

De fato, a língua, pelo que já dissemos, é apresentada como um espaço logicamente estabilizado. Opera-se com a lógica da palavra e o equívoco aparece apenas vinculado a práticas humorísticas ou poéticas. Há, nesse sentido, uma espécie de “purificação excessiva” do objeto, e isso se reflete, especialmente, no plano do tratamento da heterogeneidade da língua espanhola. Como dissemos em trabalhos prévios, esses métodos focalizam uma variante – a castelhana – dentro do que se conhece como o “espanhol da Espanha”.177 Muitos são os que argumentam que essa variante constitui a base que garante o aprendizado “do espanhol”, à qual basta acrescentar informações lexicais e gramaticais sobre as variações do próprio

“espanhol da Espanha” e do “espanhol da América”. O implícito em jogo, como afirmamos com Kulikowski e Maia González, é olhar a língua a partir de um centro geográfico unificador, regulador, isto é, de um modelo de prestígio que põe as variantes – quase sempre tratadas no terreno do léxico – na categoria de desvios acidentais (cf. Celada et alii, 1994). No plano lexical, a maioria das vezes se parte da idéia de que há uma base referencial comum aos diferentes “sinônimos” – as variantes, no fundo, são tratadas como tal – e o que se apresenta é uma lista de palavras que nomeiam o “mesmo objeto” nos diferentes países ou regiões da própria Espanha e da América espanhola. Já no que se refere às variantes morfológicas ou sintáticas – isto é, gramaticais –, também suas formas são apresentadas como

“termos” que variam com relação a um mesmo referente. No entanto, o traço que é comum para todos os casos consiste em que a “variedade” – como se verá, preferiremos falar em “diversidade” mais adiante – fica reduzida, de um lado, a uma listagem de “curiosidades” e, de outro, a uma série de possíveis ameaças capazes de interferir no “canal de comunicação” e expor o sujeito aprendiz ao mal-entendido.

aparecem sobretudo quando se trata de falar da América Hispânica.

Para a formulação das observações que apresentamos, além da análise sociogenética que realiza Elias do conceito de civilização (1989), consideramos as observações de Chambers (1995), García Canclini (1995), Kusch (1953) e Morse (1990).

177 Remetemos ao trabalho de nossa autoria, publicado originalmente sob o nome “Un programa de español en la televisión española.”. In: Signo y Seña, n. 4, dedicado ao tema “Políticas Lingüísticas”, maio de 1995, p.

239-264. Posteriormente, traduzido e reformulado, foi publicado no Brasil (cf. Celada, 1995).

Nesse sentido, a aparição do equívoco também coincide quase sempre com a

“anedota”, que inclui o caso de um trocadilho ligado ao uso de uma variante fora de contexto. Por fim, é bom lembrar que em muitos casos o lugar que ocupam as variantes satélites da castelhana encontra uma expressiva – embora infeliz – metáfora não apenas no espaço gráfico que ocupam na apresentação da unidade, mas também quando, por não estarem contempladas no livro, são incluídas em “anexos”

criados para tal fim. Esse tipo de anexo – sobretudo para o caso dos manuais feitos na Espanha – proliferou no Brasil dos últimos tempos, pois foi visto como uma solução para o ensino neste país, que, pelo lugar que ocupa no Cone Sul e pelas relações que mantém com os países vizinhos, apresenta um “interesse especial pelas variantes hispano-americanas”.178

Nesse mesmo sentido, o de adaptar-se à “realidade do Brasil”, algumas editoras espanholas investiram na confecção de “anexos” – de novo a metáfora é infeliz – ao livro principal, tentando oferecer um apoio que visasse as dificuldades específicas do aprendiz brasileiro. Dessa perspectiva, isto é, a que tem a ver com o tratamento da heterogeneidade no confronto implícito entre as línguas em jogo no processo de ensino-aprendizado – “espanhol e português” (a estrangeira e a materna) –, é preciso dizer que, quase em todos os casos, fica restrito a uma diferença entre gramáticas.

Há, desse modo, um avanço com relação ao trabalho privilegiado pelo gesto que

178 É preciso dizer que, como efeito da específica situação pela qual atravessa a prática de ensino-aprendizado que estamos caracterizando, na sala de aula a “variante castelhana”, quase sempre privilegiada nos livros didáticos, entra em contato (e em fricção) com a do próprio professor, pois este, quando nativo – como já foi dito –, é geralmente hispano-americano. Nesses casos, se o docente não tiver formação específica – pelo despreparo e a conseqüente improvisação que isso normalmente implica –, a questão do tratamento da

“variedade” fica duplamente comprometida. Sob o efeito de uma relação direta, “natural” e quase espontânea com “sua língua”, esse sujeito acaba transferindo certos imaginários e ocupando posições simbólicas que legitimam e perpetuam determinadas perspectivas de prestígio ou estigma. De fato, o “nativo” da língua, em posição de ensiná-la “mais ou menos” profissionalmente, assume algumas das diversas formas de amor que por ela tem. Dentre as figuras mais freqüentes está a do “purista”, que – como observa Arrojo com base em Lecercle – “guarda a integridade da língua contra a mudança e a corrupção, `não com as armas da ciência`

mas do bom gosto” (1993, p. 98). Outra figura que é possível destacar é a do colecionador de curiosidades, que acumula, sem cessar, preciosidades lingüísticas de diversas regiões ou países.

Já se considerarmos o caso dos docentes brasileiros, é cada vez mais comum que eles também falem uma língua marcada por um sotaque ou sotaques americanos. Parece-nos interessante constatar como tudo isso trabalha na contramão da homogeneidade do espanhol – ou, ao menos, de um efeito de homogeneidade – no interior da prática de seu ensino no Brasil.

chamamos de fundador e que designamos por meio da metonímia que estava em jogo: segundo ela, dominar a língua era equivalente a ter o domínio sobre o saber encerrado por um dicionário de bolso.179 Já no trabalho atualmente desenvolvido, atingir o domínio da língua espanhola por parte de um brasileiro seria equivalente a ter o saber do dicionário + o saber de sua gramática. Nesse sentido, a prática se vê obrigada a enfrentar a pressão de um real – aquele que o gesto fundador desconheceu, denegou.

Tentando dar conta do que cataloga como “dificuldades de aprendizagem” e com o intuito de adequar-se às condições de produção da prática de ensino-aprendizado, aparecem cada vez mais materiais, inclusive elaborados no Brasil. Há, nessa direção, um caso que nos leva a caracterizar melhor o deslocamento que, em relação ao gesto fundador, observamos. Referimo-nos a Hacia el español, de Cabral Bruno e Mendoza, que também implica um esforço para trabalhar na contramão do tratamento do cultural que atribuímos aos materiais elaborados na Espanha.180 Para que fique mais claro em que consiste o mencionado deslocamento, recorreremos a formulações de Serrani-Infante.

Segundo a pesquisadora, “ao se estudarem os fatores que incidem na produção em LE/L2 dois níveis de análise do heterogêneo podem ser considerados” (1997a, p. 2). O primeiro deles é “o da diversidade, no qual se estudam as realizações discursivas de línguas (ou variedades) distintas em contextos diversos” (ibid.). Esta análise pode restringir-se apenas “à abordagem de dessemelhanças a partir de unidades resultantes da individuação por contraste” (id., p. 2-3). No entanto, há outra possibilidade: a de que tal abordagem seja realizada “considerando que há, além dessa diversidade, uma dimensão constitutiva da alteridade social e do

179 Como dissemos no primeiro capítulo, esse dicionário dava conta fundamentalmente dos falsos cognatos e, nesse sentido, a metonímia implicava, também, um conceito de erro como efeito de um engano: o de não reconhecer algum desses falsos cognatos. E até mesmo surge daí um conceito de aprendizado que, às vezes, parece passível de ser identificado com o lema: “errou, então aprendeu”, o que não deixa de vincular o aprendizado ao produto de um escarmento. Embora, como observamos, a prática esteja mudando, esse conceito às vezes está ainda presente.

180 São Paulo: Editora Saraiva, 1998, 1999 e 2000. 3 v.

inconsciente” (ibid.). Trata-se, conclui a própria autora, da alteridade discursiva que, no quadro das categorias do discurso, situa-se no nível do interdiscurso (id., p. 3).

O material de Cabral Bruno e Mendoza ao qual estamos fazendo referência representa um avanço na análise que se realiza no primeiro nível, o da diversidade, fato que contribui a aprofundar o conhecimento das relações entre o espanhol e o português brasileiro – nesse trabalho já se pode começar a falar de português brasileiro –, desenvolvendo um saber que, no início da década de 90, devemos reconhecer que estava num outro patamar de evolução. No entanto, a análise se restringe a esse primeiro nível observado por Serrani-Infante: restringe-se “à abordagem de dessemelhanças a partir de unidades resultantes da individuação por contraste” (1997a, p. 2-3). Mesmo assim, vai se deslocando, também no nível da prática de ensino, o funcionamento daquele efeito pré-construído que atravessou a primeira cena e que, na primeira parte deste capítulo, vimos que ficava submetido ao equívoco; segundo ele, a língua espanhola é uma língua parecida e fácil. Isto, aos poucos, vai deixando de ser tão certo.

Neste ponto, antes de passar à última parte deste capítulo, é preciso que formulemos uma conclusão com relação aos resultados da prática mais geral de ensino-aprendizado de língua espanhola, cujos contornos aqui tentamos traçar.

No documento Uma língua singularmente estrangeira (páginas 123-129)