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A língua “que fixa”

No documento Uma língua singularmente estrangeira (páginas 129-132)

PARTE I: A MEMÓRIA DO ESPANHOL NO B RASIL

Capítulo 2: A segunda cena. Confronto entre memória e atualidade

2. O diagnóstico da prática de ensino-aprendizado de espanhol

2.5. A língua “que fixa”

inconsciente” (ibid.). Trata-se, conclui a própria autora, da alteridade discursiva que, no quadro das categorias do discurso, situa-se no nível do interdiscurso (id., p. 3).

O material de Cabral Bruno e Mendoza ao qual estamos fazendo referência representa um avanço na análise que se realiza no primeiro nível, o da diversidade, fato que contribui a aprofundar o conhecimento das relações entre o espanhol e o português brasileiro – nesse trabalho já se pode começar a falar de português brasileiro –, desenvolvendo um saber que, no início da década de 90, devemos reconhecer que estava num outro patamar de evolução. No entanto, a análise se restringe a esse primeiro nível observado por Serrani-Infante: restringe-se “à abordagem de dessemelhanças a partir de unidades resultantes da individuação por contraste” (1997a, p. 2-3). Mesmo assim, vai se deslocando, também no nível da prática de ensino, o funcionamento daquele efeito pré-construído que atravessou a primeira cena e que, na primeira parte deste capítulo, vimos que ficava submetido ao equívoco; segundo ele, a língua espanhola é uma língua parecida e fácil. Isto, aos poucos, vai deixando de ser tão certo.

Neste ponto, antes de passar à última parte deste capítulo, é preciso que formulemos uma conclusão com relação aos resultados da prática mais geral de ensino-aprendizado de língua espanhola, cujos contornos aqui tentamos traçar.

para o caso do ensino de qualquer língua estrangeira, em nosso caso, temos uma razão específica para sublinhar tal insuficiência. Pelo fato de tratar-se do ensino de espanhol a brasileiros, a gradação do gramatical sujeita ao comunicativo na forma que em tais métodos se apresenta implica uma seqüência “pouco significativa”, porque, na maioria dos casos, não oferece a força necessária para propiciar um deslocamento: aquele que possibilite que o sujeito saia da posição simbólica que historicamente e, em geral, ocupou, denominada por nós, no primeiro capítulo,

“ilusão de competência espontânea”. Esta implica, fundamentalmente, que a ilusão de transparência pensamento-linguagem-mundo para esse sujeito não fica exposta a uma quebra diante do funcionamento da língua espanhola e, por tanto, o sujeito passa a produzir uma língua espontânea, uma continuação da própria, uma versão – se quisermos – espanholizada de seu português brasileiro. De fato, a produção de portunhol – tal como o entendemos neste trabalho – implica assumir essa posição simbólica sem restrições: no portunhol, como já dissemos no primeiro capítulo com base em formulações de Orlandi (1996, p. 114-131), o brasileiro – estando em sua língua e permanecendo nela – trabalha sua inscrição no espanhol.

De nossa perspectiva – e esclarecemos que não estamos dizendo isto por horror ao portunhol –, propiciar o deslocamento do qual falamos poderia incentivar a mobilização do sujeito (imprescindível num processo de aprendizado de uma língua estrangeira) e o acontecimento de uma certa precipitação no que, com base em formulações de Serrani-Infante (1998), podemos caracterizar como seu processo de enunciar na língua estrangeira. Pelo fato de a prática mais geral estar centrada nos referidos materiais e trabalhar nas condições expostas, desata processos nos quais, depois de um período básico de ensino-aprendizado, uma característica fundamental do funcionamento da língua espanhola no intradiscurso dos aprendizes é a aparição intensiva de certas marcas e a falta de outras. De um lado, isso produz um efeito de sobredeterminação e, de outro, um de vazio referencial. Porém, um traço fundamental é que ela se fixa em estruturas nas quais prima uma série de traços dessa língua que caracterizamos como espontânea. Ao mesmo tempo, com relação

ao sujeito, ela é fixante pois não propicia a mobilização da qual falamos e a possibilidade de que os processos de identificação aconteçam. É nesse sentido que a designamos como uma língua que fixa, qualificação com a qual não pretendemos colocar um rótulo a partir da idéia de que uma língua seguiria uma linha de desenvolvimento no processo de aprendizado (cf. Lemos, 1995); o que estamos designando é, em parte, o fruto de uma prática com impulso curto, sem fôlego suficiente.

Aliás, é preciso esclarecer que não estamos atribuindo esses efeitos apenas às condições de produção de uma prática; reconhecemos, com base em formulações que Serrani-Infante realiza num texto ao qual já fizemos referência no capítulo 1, que um fator importantíssimo na experiência do confronto com uma língua estrangeira é o de estar ou não pronto para a experiência do próprio estranhamento;

além de que esse sujeito “terá encontros com redes de memórias discursivas nas quais se inscreverá” – ou não, acrescentamos – por “filiações identificadoras”.181

Não se trata, portanto – ratificamos –, de pensar que as causas de um processo

“bem-sucedido” estejam apenas nas condições de produção da prática; não se trata apenas de discutir aspectos das condições pedagógicas – como a própria Serrani-Infante observa: a discussão sobre implementação de métodos, escolha de material didático, táticas de ensino, interações em sala de aula, dentre as principais (1997b, p. 78). Mesmo achando que tal discussão seja até necessária numa prática tão desprovida de experiência como a que aqui analisamos – pois ela, de alguma forma e em geral, implica tempos muito longos e a consolidação do que caracterizamos como uma língua “que fixa” – acreditamos ser preciso destacar a necessidade de trabalhar no terreno da reflexão, análise e interpretação das relações entre o funcionamento discursivo da língua espanhola e do português brasileiro. E esse é o caminho em cuja direção pretendemos, nesta tese, avançar.

Antes, porém, de encerrar esta parte do presente capítulo, dedicada a analisar o

181 Cf. Serrani-Infante, in: Signorini, 1998, p. 257 e 253.

funcionamento mais geral da atual prática de ensino-aprendizado de espanhol no Brasil, algumas observações se fazem necessárias. Para tanto, será preciso considerar a forma em que nessa prática vão sendo levantados os problemas e, também, as soluções que se buscam, tendo em vista dar-lhes atenção.

No documento Uma língua singularmente estrangeira (páginas 129-132)