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O gesto que unifica e normatiza

No documento Uma língua singularmente estrangeira (páginas 194-198)

PARTE II: O ENCONTRO COM UM REAL

Capítulo 4: Um singular espelhamento

3. A formulação da hipótese central

3.2. Os rodeios da língua do brasileiro

3.2.2. A quebra de uma continuidade

3.2.2.2. O gesto que unifica e normatiza

Citando um trabalho de Mariani e Souza (sem data), Gallo esclarece que, até o século XVIII, a gramática aprendida na escola era exclusivamente a latina; e isso ocorria apesar de existirem gramáticas de língua portuguesa como, por exemplo, a de Fernão de Oliveira (de 1536). Em 1759, no Brasil, o Marquês de Pombal “toma medidas de caráter sociopolítico” e altera essa situação: “ordena o aprendizado elementar de língua portuguesa, configurando-se, assim, o primeiro passo para o ensino normativo do idioma”.287 De fato, conclui a autora, essa língua portuguesa

“passaria a ser ensinada, então, como ‘Norma’ lingüística” (ibid.).

Mas o diretório de Pombal – como podemos ler em outro texto de Mariani – representa também uma ação política da metrópole num outro sentido, pois não apenas normatiza, como acabamos de observar, mas também unifica, ao intervir na relação entre a chamada “língua geral” e a língua portuguesa, inibindo os usos que não fossem portugueses.288

A própria Mariani cita parte do diretório, no qual consta, em primeiro lugar, a caracterização que diferenciava a conquista portuguesa de outras conquistas e que aqui transcrevemos em função de considerações que faremos posteriormente. Nesse sentido, no documento marca-se a diferença que no terreno lingüístico teve o processo de conquista e colonização e que daria origem à língua geral. Para tanto, descreve-se como foi esse processo quando praticado pelas nações que o

287 Cf. Gallo, ibid., p. 53.

288 O texto de Mariani que citamos é “As academias do século XVIII – um certo discurso sobre a história e sobre a língua do Brasil” e foi publicado in: Guimarães e Orlandi, 1996, p. 95-100. Essa coletânea é uma das obras dedicadas à publicação de resultados do já mencionado Projeto sobre a “História das idéias lingüísticas”, Unicamp/Paris VII. Para a citação feita no parágrafo acima, cf. p. 99.

empreenderam:

[...] sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbárie dos seus antigos costumes [...] que ao mesmo passo que se introduz neles o uso da língua do Príncipe que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe (in: Cunha, 1979, citado por Mariani, ibid.).

A seguir, realiza-se a crítica à prática conquistadora dos portugueses nestas terras:

Observando pois todas as Nações polidas do Mundo este prudente e sólido sistema, nesta conquista se praticou pelo contrário, que só cuidavam os primeiros conquistadores estabelecer nela o uso da língua que chamamos geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica, para que privados os índios de todos aqueles meios que os podiam civilizar; permanecessem na rústica e bárbara sujeição, em que agora se conservam (ibid.).

Por fim, o documento segue na direção de dar bases para a reparação do “erro cometido”:

Para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados do Diretório estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum que os Meninos e as Meninas, que pertencerem às escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua Geral, mas unicamente a Portuguesa, na forma que S. M. tem recomendado em repetidas Ordens, que até agora não se observaram, com total ruína temporal e espiritual do Estado” (ibid.) (destaques nossos).

Segundo Mariani, a situação de conflito entre a língua geral e a língua portuguesa289 também representava “um conflito entre a política da metrópole e o poder cada vez maior dos jesuítas na colônia” (ibid.) e, neste sentido, Houaiss observa que foi a expulsão do país dos jesuítas que “obrigou à criação de uma primeira rede leiga de ensino (circunscrita a uns quantos filhos-família)” e de “um ordenamento jurídico e administrativo em que a língua portuguesa passa a ser obrigatória, proscrevendo-se o uso de quaisquer outras línguas...” (1988, p. 94). A primeira delas era, ainda

289 A isso se refere dando destaque para um aspecto importante no que tem a ver com a imposição dessa língua portuguesa, língua que entrou em conflito com a geral, pois, de fato, esta “resistia e penetrava no espaço do próprio português”, diz a própria Mariane, com base em Orlandi, no texto que acabamos de citar (1990).

segundo o autor, “a geral de base tupi” (ibid.).290

A partir de considerações que Mariani realiza acerca da normatização e a homogeneização da língua, podemos interpretar o diretório de Pombal como um dos espaços cruciais de uma discursividade, pois nele se concentra um processo de constituição de memória e de produção de sentidos. De fato, a escola dará à política de Pombal uma projeção de longo fôlego que chega até nossos dias. No entanto, reconhecemos que, nessa época, o acesso à escola era atributo de poucos, por isso, cabe-nos perguntar – como se pergunta Vitral (2001) – se a reforma do ensino bastou, nos primeiros tempos, para que tivesse lugar a submissão à língua portuguesa por grande parte da população da colônia. O autor conclui, baseado em cifras muito contundentes, com uma negativa e procura a explicação mediante a análise de uma questão mais abrangente, na qual a política pombalina se inscrevia.

Assim, segundo ele, o gesto do diretório estava vinculado, de um lado, a uma monarquia absolutista que vinha se solidificando no Brasil desde a segunda metade do século XVII e, de outro, ao fato de que – como para essa monarquia o prestígio da cultura francesa era forte – ela se aliava à ideologia do que Elias (1989) denomina “processo civilizatório”.291 A partir dessa mesma época – continua Vitral, com base em Silveira (1996) – houve, como observa este último, “uma alteração na maneira de sentir o mundo natural e valorizá-lo” e

290 Segundo Houaiss, “os portugueses e seus descendentes tiveram de haver-se com as muitas línguas em confronto [...] e cada língua indígena com o português” (1988, p. 73). Mas a aparente Babel, multilíngüe – esclarece – “era em cada local uma defrontação bilíngüe” (ibid.):

Admitindo a afinidade troncal tupi-guarani, cada indivíduo de cada tribo continuava com sua língua para fins intratribais. Mas, para fins extratribais e intertribais – poderosamente estimulados pela subversão trazida pelo conquistador –, recorria à língua geral, que lhe era afim, com o que se fazia bilíngüe na mesma, digamos, estrutura linguageira (id., p. 73-4).

Em compensação, segundo Houaiss, ao português cabia sim um bilingüismo mais polarizado (id., p. 74).

As outras línguas proscritas, além da “geral de base tupi – que jamais gozou de estatuto escrito salvo para fins catequéticos [e, antes, as seis cartas de aliança dos indígenas com os portugueses, ‘escritas’ por Felipe Camarão, contra os batavos]” –, foram:

o latim – que era de rigor entre os jesuítas, para fins de prestação de provas teológicas e eclesiásticas nos cursos de ordenação seminária e seu eventual uso intra muros – e, acaso, mas no passado, o espanhol, o francês, o flamengo e, depois, o inglês eventualmente nas grossas operações de contrabando internacional de que as Minas Gerais e Goiás foram teatro (ibid.) (destaques nossos).

291 Cf. Vitral, 2001, p. 306-307.

(e)ssa revisão de valores, que não envolveu apenas os grupos privilegiados da sociedade mas serviu de referência também para as camadas populares, “apontava para uma preocupação maior ante a presença do outro, estabelecendo novos padrões morais capazes de redefinir a convivência social em termos mais civilizados” (Vitral, id., p.

307) (destaques do autor para a citação de Silveira).

Dessa forma, conclui Silveira, “uma gama de outros hábitos passaram a ser desvalorizados e compreendidos como parte do universo da ‘barbárie’”.292

Essa série de fatos que Vitral põe em relação faz com que ele conclua que a

“política do Marquês de Pombal, no início da segunda metade do século XVIII”, foi formulada no referido contexto de busca de civilidade.293 De fato, o uso da língua portuguesa era visto como critério de atribuição de civilidade, num cenário no qual o Estado português buscava controlar mais de perto a colônia e este controle se tornou premente devido à descoberta, no final do século XVII, de ouro e diamante na região de Minas, para onde afluíram aventureiros de todas as regiões do reino e da própria colônia.294 Importava, portanto, à coroa portuguesa “estabelecer a ordem institucional numa região onde a ambição e o sonho de enriquecimento rápido justificavam o desapego às leis, a crueldade e todos os excessos”.295 O embate entre civilidade e barbárie perpassou todo o setecentos mineiro e envolveu a oposição língua portuguesa, que se associada à primeira, e língua geral (ou línguas gerais), que se alinhava à segunda.296

Posteriormente, como observa Gallo, na escola do século XIX, a apresentação de uma língua (a portuguesa) como nacional e, ao mesmo tempo, como normativa contribui com força à ilusão de realidade de uma língua e de uma nação. Nessa construção é importante salientar que essa língua – o português, a língua nacional que conta a memória histórica oficial – se apresenta como normativa, excluindo o que não segue suas normas: excluindo, portanto, a língua brasileira, em desacordo

292 Apud Vitral, ibid.

293 Ibid..

294 Cf. id., p. 309.

295 Ibid.

296 Cf. id., p. 312.

com as normas.297

Interessa-nos, a seguir, revisar a relação que se trava entre oralidade e escrita no âmbito da instituição escolar de forma específica, porque essa revisão será fundamental para a formulação de nossa hipótese. No intuito de atingir esse objetivo, começaremos por dar destaque a algumas das conclusões elaboradas pelas já mencionadas autoras nos trabalhos que guiam esta exposição. Como trabalharemos, em boa parte, com as reflexões e elaborações de Gallo (1992), faremos uso, circunstancialmente, das designações “discurso da oralidade” (D.O.) e

“discurso da escrita” (D.E.), às quais chega a pesquisadora, pela especificidade das perguntas que se coloca e pelas observações que realiza para dar-lhes resposta.

No documento Uma língua singularmente estrangeira (páginas 194-198)