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4 O DIREITO PÚBLICO DE ACESSO À NATUREZA

4.3 O DIREITO PÚBLICO DE ACESSO À NATUREZA COMO EXERCÍCIO DA

4.3.2 O Acesso à Natureza e a Propriedade

O Estado possui um domínio eminente, que lhe dá diversas prerrogativas sobre a propriedade privada, podendo se servir até mesmo do instituto da desapropriação, de forma fundamentada e indenizada, se o caso em concreto o requerer. Para Gray (2002, p. 7), sem esse poder estatal de requisição compulsória, a construção de uma infraestrutura necessária à vida em sociedade seria impossível. Não haveria como construir ferrovias, rodovias, linhas de transmissão e comunicação, adutoras de águas, etc. Para o autor, embora esse tipo de poder direto do Estado sobre a propriedade seja significativo, a imposição de outras restrições gerais voltadas para a coletividade também o são (GRAY, 2002, p. 7). Nesse último caso, um conjunto de restrições estatais operam sobre a propriedade, limitando por vezes severamente a capacidade do proprietário de desfrutar plenamente do imóvel, como no caso de restrições ambientais ou do tombamento histórico. Segundo Gray, vivemos numa era de “regulamentação sem precedentes” (GRAY, 2002, p. 7, tradução nossa), e, particularmente significante é “o aumento da ênfase no incremento do acesso público às áreas recreativas e oportunidades de lazer” como uma pré-condição necessária à equidade social (GRAY, 2002, p. 8, tradução nossa).

Segundo Gomes (2004, p. 142), “Tantas e tais tem sido as restrições ao direito de propriedade, no seu conteúdo e no seu exercício, que está abalada sua própria condição tradicional de Direito Privado”. Ainda de acordo com o autor, “as limitações atingem o

exercício do direito de propriedade, não a sua substância, e em que só se justificam se uma nova concepção do direito de propriedade é aceita” (GOMES, 2004, p. 128). Godinho leciona no mesmo sentido:

A função social atinge a própria essência do direito de propriedade, modificando o seu conteúdo e criando as condições propícias para a legitimidade das restrições impostas ao domínio [...] A função social também não representa um ônus para o proprietário, pois, na realidade, a mesma visa simplesmente fazer com que a propriedade seja utilizada de maneira normal, cumprindo o fim a que se destina (GODINHO, 2000 apud CARVALHO, 2004, p. 8).

Para Gray, a abordagem absolutista da propriedade é injusta, na medida que vê quaisquer formas de limitação estatal à propriedade como um “fascismo ambiental”. Essa visão acredita que o Estado é um leviatã que, ao limitar o absolutismo da propriedade, retira dela sua essência. De acordo com Gray, os defensores do absolutismo da propriedade insistem que, “se a coletividade quer bem estar ambiental, deve comprá-lo, ao invés de simplesmente jogar seu custo nos proprietários” (GRAY, 2002, p. 11, tradução nossa), sem que estes recebam qualquer tipo de compensação.

Entretanto, Gray acredita ser inevitável que algumas limitações à propriedade acabem não sendo indenizadas, pois, “o Governo dificilmente poderia prosseguir se alguns valores incidentais da propriedade não pudessem ser diminuídos sem compensação por cada pequena alteração legal” (GRAY, 2002, p. 11, tradução nossa). Como exemplo, cita-se a situação hipotética do Estado ter que indenizar todos os proprietários rurais sujeitos à manutenção de reserva legal florestal em sua propriedade, caso em que o Estado seria demasiadamente onerado. No caso das limitações mais gerais impostas pelo Estado, que se referem a uma obrigação de não-fazer, o autor defende a desnecessidade de indenizar o proprietário quando o interesse da coletividade se sobreponha ao do proprietário (GRAY, 2002. p. 14).

Especificamente no que tange as áreas rurais e o Direito Público de Acesso à Natureza, o autor leciona que

O espaço social e legal constituído por território aberto ou selvagem é intimamente ligado a uma teia complexa de percepções e fatores relacionadas à responsabilidade ambiental, saúde pública, bem estar pessoal e psicológico, sensibilidade estética, memória histórica, senso de lugar, cidadania, direitos humanos, equidade distributiva e inclusão social (GRAY, 2010, p. 52, tradução nossa).

Há o entendimento de que a zona rural possui não só valores econômicos, mas também valores morais e psicológicos, que podem e devem ser aproveitados pela coletividade,

sem ônus para ela ou para o Estado. Assim, o ônus a ser suportado pelos proprietários seria pequeno em relação aos imensos benefícios concedidos à coletividade.

Nesse sentido, há fortes argumentos em prol do Direito Público de Acesso à Natureza no que tange aos princípios da cidadania, equidade distributiva e inclusão social, pois os valores que não são commodities representados por esse tipo de acesso “não podem ser reserva exclusiva de uns poucos privilegiados” (GRAY, 2010, p. 53, tradução nossa). Gray conclui que “áreas belas e insubstituíveis devem ser razoavelmente disponíveis a todos” (GRAY, 2010, p. 53, tradução nossa). O acesso compartilhado às áreas cênicas fomenta o senso de responsabilidade cívica e de participação numa sociedade de iguais (GRAY, 2010, p. 54).

O Direito Público de Acesso à Natureza, formalizado legislativamente pelo CRoW na Inglaterra e País de Gales, é fruto de uma nova leitura da propriedade: de domínio absoluto do proprietário, a terra passa a conciliar o direito comum de acesso aos não-proprietários (ANDERSON, 2007, p. 389).

De acordo com Gray, em um nível empírico, há consequências benéficas do contato com a natureza (GRAY, 2010, p. 55). De fato, para o autor, o impacto desse contato tem sido reconhecido como positivo em todos os aspectos do indivíduo: “físico, psicológico e bem estar moral“ (GRAY, 2010, p. 55, tradução nossa). Em um mundo de constante mudanças e descontinuidade, há uma perda de senso de lugar. As raízes geográficas e a participação de longo prazo na comunidade praticamente desapareceram, e as pessoas não se sentem mais ligadas às suas comunidades, sendo deslocadas por várias razões: oportunidades de educação, emprego, carreira, família, etc (GRAY, 2010, p. 58). Entretanto, para o autor, “um regular encontro com um mundo de beleza natural pode ser uma maneira de preservar alguns pontos de referência que transmitem um senso de permanência, localidade, segurança e continuidade para uma existência em mudança contínua” (GRAY, 2010, p. 58, tradução nossa). A Carta de Consulta que precedeu a adoção do CRoW concluiu que “caminhar é um antídoto para as pressões da vida moderna” (ENGLAND AND WALES, 1998, tradução nossa).

Adicionalmente, Gray argumenta que os benefícios trazidos pelo CRoW também são de saúde pública. Para o autor, o envelhecimento e o sedentarismo da população, juntamente com o desejo governamental de reduzir os gastos com saúde pública, foram os argumentos que motivaram a adoção do CRoW (GRAY, 2010, p. 60). A Carta de Consulta que precedeu o CRoW argumentava que a sociedade ganharia muitos benefícios em saúde física e mental, bem como em qualidade de vida, ao aumentar as oportunidades de lazer para a população (ENGLAND AND WALES, 1998).

Outro benefício do Direito Público de Acesso à Natureza que pode ser elencado é o da consciência ecológica. Para Gray, o incremento no acesso público ajuda a trazer o reconhecimento da sociedade de que vivemos em um planeta interconectado (GRAY, 2010, p. 61). Nesse sentido, a Terra deve ser vista não como propriedade humana, mas como uma comunidade biótica da qual pertencemos. Nessa visão, o homem deixa de ser o conquistador, e se torna apenas membro de uma comunidade de iguais, “o que implica respeito pelos outros membros, e respeito pela comunidade como tal” (GRAY, 2010, p. 63, tradução nossa). Para o autor, há hoje aceitação de uma nova política obrigacional, na qual os seres humanos têm deveres com animais, árvores, montanhas, oceanos e outros membros da comunidade biótica (GRAY, 2010, p. 63).

Na atualidade vive-se uma nova onda mundial de “cercamentos”, isto é, de apropriação do comum pelo privado, “comandada pelos grandes oligopólios, dos direitos de propriedade sobre o conhecimento, a natureza e a vida” (DARDOT; LAVAL, 2017). Pode-se citar o exemplo da privatização dos parques nacionais norte-americanos (NY TIMES, 2017) e da concessão do Parque do Ibirapuera à iniciativa privada (BRASIL ECONÔMICO, 2019). Há ainda o cercamento da propriedade intelectual, como o copyright de códigos genéticos e o sequestro de sementes (CHARTER OF THE FOREST 800, [2017?c]). Nesse contexto, o Direito Público de Acesso à Natureza é um movimento no sentido contrário, buscando a liberação de acesso ao que era privado e restrito.

A partir da visão de que a propriedade deve sua exercer função social, o Direito Público de Acesso à Natureza representa uma possibilidade de releitura do direito de propriedade que mantém ao mesmo tempo os direitos do proprietário e responde a um anseio social de acesso a locais antes inacessíveis. Sendo realizado de forma regulamentada, minimiza o risco de dano à propriedade e garante que mais pessoas possam acessar áreas de beleza natural, sendo beneficiadas física, moral e psicologicamente pelo contato com a natureza.

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