3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
3.1 PREVISÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO
A função social a qual se destina a propriedade foi inserida em um conceito amplo na CFRB, sendo uma ideia que permeia diversos dispositivos legais, dos quais limita-se mencionar os concernentes ao presente trabalho.
Logo em seu art. 1º a CFRB prescreve que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana e tendo como objetivos, dentre outros, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Para Bodnar (2004, p. 36), a CFRB “estabeleceu uma ideologia que deve iluminar todo o ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional em todos os campos do direito, em especial o direito de propriedade, o qual vai definir os contornos e a função da riqueza no país”. O art. 5º, XXII da CRFB, garante o direito de propriedade. Entretanto, logo em seguida, no inc. XXIII, determina que a propriedade deverá atender a sua função social (BRASIL, 1988).
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; [...]. (BRASIL, 1988).
Segundo Marmo, (2004, p. 27) o legislador, ao dispor que a propriedade será regulada não só por interesse próprio do proprietário, mas pela utilidade social, “passa a privar o proprietário de determinadas faculdades”, e impõe determinadas obrigações para exercício do seu domínio sobre a coisa.
A função social da propriedade é também elencada como os princípios orientadores da ordem econômica, conforme se observa no art. 170 da CFRB:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade; [...]. (BRASIL, 1988).
Novamente, assim como no art. 5º, há na CFRB a menção ao direito propriedade seguido pela limitação imposta pela função social da propriedade, denotando a preocupação do legislador constituinte com a aderência da propriedade à sua função social.
A CRFB também trata de forma diferenciada a propriedade urbana (art. 182) e a propriedade rural (art. 186), estabelecendo a respeito da função social da propriedade critérios específicos para cada regime proprietário.
Mais pertinentemente à temática deste trabalho, o art. 186 da CFRB estabelece os requisitos para o cumprimento da função social de propriedade rural:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL, 1988).
Para Magalhães (1993, p. 50), o inciso II do art. 186 da CFRB amplia o conceito de função social da propriedade, pois insere a função ambiental como elemento constitutivo da propriedade. Nesse sentido, segundo Bortolini (2014, p. 69),
[...] a proposta de Estado Socioambiental de Direito abraçada pelo texto constitucional brasileiro eleva o ambiente a conteúdo normativo do direito de propriedade, enfatizando que a fórmula função social engloba também um conteúdo ecológico. Daí a popularização doutrinária da expressão função socioambiental que, embora não reflita a literalidade do texto constitucional, evidencia mais fielmente a preocupação ambiental que permeia o direito de propriedade.
Dessa forma, fica evidenciado no ordenamento jurídico brasileiro o caráter socioambiental da propriedade, pois observa-se que o caráter do texto da CRFB não é somente social, mas também ambiental – daí função socioambiental -, pois a função social da propriedade também pode ser dada pelo Direito Ambiental (BORTOLINI, 2014, p. 69).
Como exemplo do desempenho dessa função, cita-se o art. 23, III da CFRB, que determina que é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios “proteger [...] os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (BRASIL, 1988). Logo, nenhum desses entes públicos pode se recusar ou restar inerte na proteção dos monumentos e paisagens naturais, devendo protegê-los em caso de ameaça, assegurando o cumprimento da função social da propriedade. Há a responsabilidade compartilhada no exercício desses deveres.
Conforme leitura dos artigos 5º, 170 e 186 da CRFB, conclui-se que a propriedade privada é um direito assegurado – desde que disciplinado pela função social. Essa perspectiva, fundada na função social da propriedade, determina que
A propriedade reconhecida e tutelada pela Constituição Federal de 1988 é apenas aquela que cumpre a função social. O direito de propriedade passa a não ser apenas um direito, mas também uma função. Valoriza-se o atendimento aos fins sociais em desprestígio aos interesses egoísticos do titular do direito. (BODNAR, 2004, p. 22).
Portanto, na CFRB, a propriedade privada é encarada dentro de sua função social. O direito de usar, gozar, dispor e reaver dos bens tem limites, prosperando enquanto não ofender a função social da propriedade. Nesse sentido conclui-se que “a concepção da propriedade, que desprende da Constituição, é mais ampla que o tradicional domínio sobre as coisas corpóreas, principalmente imóveis, que os códigos civis ainda alimentam” (LOBO, 1999, p. 107).
Na legislação infraconstitucional, a função social da propriedade é mencionada no art. 1.228 do CC (BRASIL, 2002):
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou
utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante [...].
No parágrafo primeiro, a subordinação do direito de propriedade à função social é explícita, devendo ser respeitadas as características ambientais, paisagísticas, históricas e artísticas. Também há a obrigação da preservação ambiental.
Já o parágrafo segundo do art. 1.228 veda “os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (BRASIL, 2002). Dessa forma, não pode o proprietário agir com intuito manifesto de simplesmente prejudicar um terceiro não-proprietário.
O parágrafo terceiro do art. 1.228 prevê a desapropriação da coisa “por necessidade ou utilidade pública ou interesse social [...]” (BRASIL, 2002). É o corolário da soberania da função social: caso haja utilidade pública, ou mesmo mero interesse social, o Estado pode inclusive desapropriar áreas que, de modo fundamentado, lhe convier.
Por fim, o parágrafo quarto traz a possibilidade da usucapião coletiva, no qual um grupo de pessoas que, cumprindo determinados requisitos, pode adquirir coletivamente a propriedade de um imóvel cujo proprietário não assegurou sua função social (BRASIL, 2002). Tem-se, portanto, que a função social da propriedade é a maneira legislativa que o Estado possui para direção de suas políticas e consecução de seus objetivos constitucionais contidos no art. 3º da CFRB, a saber: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais; e a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (BRASIL, 1988).
Nesse contexto, o direito à propriedade, embora assegurado constitucionalmente, passa a ser percebido também como elemento social. Nas palavras de Fachin:
Nessa esteira, passa-se a entender que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo que o direito de propriedade também começa a ser um direito à propriedade. Gera, por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso. (FACHIN, 2000, p. 74).
Verificou-se quais os dispositivos legais, constitucionais e infraconstitucionais, que embasam a necessidade de que a propriedade exerça função social. Na sequência, com o estudo do Direito Comum, indica-se como pode se dar o exercício da função social da propriedade, especialmente no que se relaciona à proteção do meio ambiente.