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O direito público de acesso à natureza como exercício da função social da propriedade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADEDOSULDESANTACATARINA

CARLOSDIEGOHARTMANN

ODIREITOPÚBLICODEACESSOÀNATUREZACOMOEXERCÍCIODA

FUNÇÃOSOCIALDAPROPRIEDADE

Palhoça 2019

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CARLOSDIEGOHARTMANN

ODIREITOPÚBLICODEACESSOÀNATUREZACOMOEXERCÍCIODA

FUNÇÃOSOCIALDAPROPRIEDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Alexandre Botelho, Dr.

Palhoça 2019

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

ODIREITOPÚBLICODEACESSOÀNATUREZACOMOEXERCÍCIODA

FUNÇÃOSOCIALDAPROPRIEDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico e referencial conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Sul de Santa Catarina, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de todo e qualquer reflexo acerca deste Trabalho de Conclusão de Curso.

Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso de plágio comprovado do trabalho monográfico.

Palhoça, 05 de dezembro de 2019.

____________________________________

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Alexandre Botelho que gentilmente aceitou a orientação do presente trabalho, por todo seu apoio, coragem, atenção e direcionamento.

Ao corpo docente do Curso de Direito da UNISUL, composto por professoras e professores que propiciaram uma jornada humana e consciente no mundo jurídico.

À Camila e à Catarina, que fazem tudo valer a pena.

Agradeço também ao Scott, intrépido companheiro de longas trilhas, e ao Lumo, parceiro de trabalho em muitas horas em frente ao computador.

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“Everybody needs beauty as well as bread, places to play in and pray in, where Nature may heal and cheer and give strength to body and soul” (John Muir)

“O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: isto é meu, e encontrou pessoas bastantes ingênuas para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil" (Jean-Jacques Rousseau)

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RESUMO

O objetivo da presente pesquisa é verificar se o Direito Público de Acesso à Natureza pode ser uma forma de exercício da função social da propriedade. O método de abordagem é o dedutivo, partindo do Direito de Propriedade para chegar na análise do Direito Público de Acesso à Natureza à luz da função social da propriedade, e de natureza qualitativa buscando compreender o Direito Público de Acesso à Natureza como exercício da função social da propriedade no contexto do direito de propriedade. O método de procedimento adotado é o monográfico. As técnicas de pesquisa são a bibliográfica, com base em doutrina e artigos; e a documental, sobre a legislação brasileira e a inglesa. No âmbito do presente trabalho entende-se que a função social da propriedade, conforme previsão no art. 5º, XXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mitiga o direito de propriedade, possibilitando a imposição de limitações aos interesses particulares do proprietário em favor dos interesses comuns. O Direito Público de Acesso à Natureza, conforme o Countryside and Rights of Way Act 2000, existe na Inglaterra e País de Gales como um direito positivado que permite o acesso para fins recreativos de terceiros não-proprietários a determinadas propriedades rurais privadas, sem consentimento expresso do proprietário. Concluiu-se que o Direito Público de Acesso à Natureza pode ser considerado como uma forma de exercício da função social da propriedade, uma vez que a propriedade continua sendo privada, mas, ao permitir o acesso de terceiros não-proprietários, garante a realização do interesse comum, que se dá pelo acesso à natureza.

Palavras-chave: Direito de Propriedade. Função Social da Propriedade. Direito Público de Acesso à Natureza.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CC – Código Civil. Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002 CFRB – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CPC – Código de Processo Civil. Lei 13.256 de 16 de Março de 2015 CRoW – Countryside and Rights of Way Act 2000

MS – Mandado de Segurança

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 11

2 O DIREITO DE PROPRIEDADE ... 13

2.1 TEORIA DO FEIXE DE DIREITOS ... 14

2.2 FACULDADES DO PROPRIETÁRIO ... 15 2.2.1 Usar ... 15 2.2.2 Gozar ... 16 2.2.3 Dispor ... 16 2.2.4 Reaver ... 16 2.3 CARACTERÍSTICAS DA PROPRIEDADE ... 17 2.3.1 Perpetuidade ... 17 2.3.2 Exclusividade ... 17 2.3.3 Absolutismo... 18 2.3.4 Elasticidade ... 20 2.4 POSSE ... 20 2.4.1 A Proteção da Posse ... 22 2.4.2 Ações Possessórias ... 24 2.4.3 Desforço Possessório ... 25

2.5 LIMITAÇÕES LEGAIS AO DIREITO DE PROPRIEDADE ... 25

3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ... 28

3.1 PREVISÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ... 29

3.2 DIREITO COMUM ... 33

3.3 A DESAPROPRIAÇÃO COMO CONSEQUÊNCIA AO NÃO-EXERCÍCIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ... 36

3.3.1 Desapropriação ... 38

3.3.2 Desapropriação para turismo ... 39

3.4 CRÍTICAS À TEORIA DO FEIXE DE DIREITOS ... 40

4 O DIREITO PÚBLICO DE ACESSO À NATUREZA ... 42

4.1 HISTÓRICO ... 42

4.1.1 A Carta das Florestas ... 43

4.1.2 O Cercamento das Terras Inglesas ... 44

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4.2 COUNTRYSIDE AND RIGHTS OF WAY ACT 2000 ... 47

4.2.1 Critérios de Acesso ... 48

4.2.2 Áreas Acessíveis ... 49

4.2.3 Limites do Acesso ... 51

4.3 O DIREITO PÚBLICO DE ACESSO À NATUREZA COMO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ... 51

4.3.1 O CRoW e a Redefinição do Feixe de Direitos ... 52

4.3.2 O Acesso à Natureza e a Propriedade ... 53

5 CONCLUSÃO ... 57

REFERÊNCIAS ... 59

ANEXOS ... 63

ANEXO A – PLACA DE ACESSIBILIDADE DE ÁREA ABERTA PELO CROW ... 64

ANEXO B – CONSULTA DE ACESSO A CASTLE BEENY FARM ... 65

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1 INTRODUÇÃO

O Direito Público de Acesso à Natureza, também conhecido como direito de vagar, é um direito que permite ao cidadão comum adentrar determinados imóveis rurais com o fim de acessar a natureza. Em uma conjuntura mundial de crescente apropriação do comum pelo privado, o acesso público à natureza foi elevado à categoria de política pública na Inglaterra e País de Gales, bem como na Escandinávia.

O presente trabalho teve sua origem a partir de uma experiência vivida pelo pesquisador. Em uma caminhada de três dias pela Serra Catarinense, o pesquisador encontrou várias porteiras fechadas, com placas de “proibida entrada”. Durante dois desses três dias, o pesquisador caminhou na propriedade de uma única pessoa, sem objetivo de esbulho e sem retirar nada do local. O único sinal visível da ação do proprietário sobre a terra era a presença de 16 búfalos, numa fazenda de 1.700 hectares e que contém, dentre outras maravilhas naturais, um cânion e uma cachoeira de 100m de altura, cujo acesso é proibido mesmo mediante pagamento. O pesquisador então questionou se era razoável uma pessoa deter uma área tão extensa sem dar-lhe destinação econômica, à exceção dos 16 búfalos, impedindo todas as outras pessoas de acessar aqueles monumentos naturais.

Após cursar as disciplinas de Direito Constitucional e Direito de Propriedade elaborou-se a pergunta de pesquisa que orientou o presente trabalho: o Direito Público de Acesso à Natureza pode ser uma forma de exercício da função social da propriedade?

Para responder a essa pergunta de pesquisa, adotou-se o método de abordagem dedutivo, partindo do Direito de Propriedade para chegar na análise do Direito Público de Acesso à Natureza à luz da função social da propriedade, e de natureza qualitativa, buscando compreender o Direito Público de Acesso à Natureza como exercício da função social da propriedade no contexto do direito de propriedade. O método de procedimento adotado é o monográfico. As técnicas de pesquisa são a bibliográfica, com base em doutrina e artigos; e a documental, sobre a legislação brasileira e a inglesa.

O presente trabalho divide-se em 5 capítulos, sendo o primeiro a Introdução. No segundo capítulo estuda-se o Direito de Propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. No primeiro momento apresenta-se a Teoria do Feixe de Direitos, bem como as faculdades do proprietário e as características da propriedade. Na sequência, descreve-se o instituto da posse e as ações possessórias. Por fim, identifica-se as limitações legais ao direito de propriedade na legislação brasileira.

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No capítulo seguinte passa-se o estudo da função social da propriedade. Primeiramente, apresenta-se a previsão legal da função social da propriedade, tanto na Constituição da República Federativa do Brasil (CFRB) quanto na legislação infraconstitucional. No segundo momento analisa-se o Direito Comum. Na sequência, estuda-se o instituto da desapropriação como conestuda-sequência ao não exercício da função social da propriedade. Por fim, apresenta-se uma crítica, com base na função social da propriedade, à Teoria do Feixe de Direitos.

O objeto do quarto capítulo é o Direito Público de Acesso à Natureza, conforme a legislação vigente na Inglaterra e País de Gales. Nesse sentido, descreve-se o histórico de tal direito, com destaque para a Carta das Florestas, o processo de cercamento das terras inglesas, a invasão de Kinder Scout e a adoção do Countryside and Rights of Way Act de 2000 (CRoW). Na sequência, identifica-se as disposições dessa legislação a respeito dos critérios de acesso, áreas acessíveis e limites de acesso. Por fim, verifica-se a identificação do Direito Público de Acesso à Natureza como forma de exercício da função social da propriedade, em especial no que diz respeito ao elemento ambiental. Nesse sentido, apresenta-se também uma nova leitura da Teoria do Feixe de Direitos. O quinto e último capítulo é a Conclusão, no qual expõe-se o resultado da presente pesquisa ao responder o questionamento que lhe deu origem.

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2 O DIREITO DE PROPRIEDADE

A propriedade tal qual a conhecemos é uma construção jurídica, social e econômica que acompanha o desenvolvimento da civilização humana. Buscando assegurar a sua manutenção criou-se ampla proteção jurídica que visa resguardar os direitos inerentes à propriedade. O presente capítulo tem como objeto o direito de propriedade tal qual disposto no ordenamento jurídico brasileiro. Sendo a propriedade um dos direitos reais apresenta-se, primeiramente, tais direitos.

Os direitos reais são aqueles que traduzem o poder jurídico direto de uma pessoa sobre uma coisa. De acordo com Schveitzer (2017, p. 10), “somente pode ser objeto desse direito aquilo que pode ser apropriado”, e a função social e a boa-fé devem ser respeitadas como princípios regentes. Para Gagliano e Pamplona Filho, o exercício de um direito real prescinde de um sujeito passivo (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018, p. 1012), e a sua existência independe de qualquer obrigação.

Os direitos reais estão elencados no art. 1.225 do Código Civil de 2002 (CC). São eles: a propriedade, a superfície, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, o direito do promitente comprador do imóvel, o penhor, a hipoteca, a anticrese, a concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso e o direito de laje (BRASIL, 2002).

No Brasil, o direito de propriedade está assegurado no art. 5º, XXII, da CFRB, e nos artigos 1.225 a 1.510-E do CC de 2002.

O direito de propriedade é um direito real, e como tal recai diretamente sobre a coisa, ou seja, não se estabelece uma relação interpessoal, mas entre o proprietário e a coisa. De acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2018, p. 1.045), “nos termos do art. 5º, XXII, da CRFB, a propriedade é tratada como um direito fundamental”. Para Schveitzer (2017, p. 56), “o sentido etimológico da palavra propriedade vem do latim proprietas, derivado de proprius, significando o que pertence a uma pessoa”. Pode ser conceituado como o pleno poder sobre a coisa, plena in res potestas. De acordo com Wald (2015, p. 133) a propriedade pode ser definida como “senhoria de um sujeito de direito sobre determinada coisa, garantida pela exclusão da ingerência alheia”. Para Katz (2008, p. 282, tradução nossa), “propriedade nada mais é do que o espaço deixado para uso da coisa uma vez que os outros sejam excluídos”.

Quanto à extensão do direito de propriedade, Schveitzer (2017, p. 171) leciona que a propriedade “é sem dúvida, o direito real mais amplo do ordenamento jurídico brasileiro”. No mesmo sentido Gomes (2004, p. 110) considera que, na perspectiva dos poderes do titular, “a

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propriedade é o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente”.

Passando ao estudo específico da propriedade aborda-se a teoria do feixe de direitos, que versa sobre a natureza do direito de propriedade. Na sequência analisa-se as faculdades do proprietário de usar, gozar, dispor e reaver, bem como as características da propriedade, que podem ser divididas em: perpetuidade, exclusividade, absolutismo e elasticidade. Aborda-se, ainda, o instituto da posse, descrevendo as ações possessórias previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, o presente capítulo apresenta limitações legais ao direito de propriedade.

2.1 TEORIA DO FEIXE DE DIREITOS

A teoria do feixe de direitos é adotada no Direito Civil brasileiro e “é uma construção jurídica que remonta pelo menos até o Código Napoleônico, constando em seu art. 544” (BORTOLINI, 2014, p. 53). Gomes (2004, p. 109) aponta que a propriedade “é um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”. Cada um desses direitos seria uma vara, que, juntas, formariam o feixe de direitos (varas) do proprietário. No mesmo sentido, Gomes (2004, p. 109) leciona que a teoria do feixe de varas coloca a propriedade não como um conceito estático e uno, mas como um feixe complexo, formado por diversos direitos: usar, gozar, dispor e reivindicar.

No Brasil a teoria do feixe de direitos está expressa no caput do art. 1.228 do CC: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (BRASIL, 2002).

Bortolini descreve o conteúdo do feixe de direitos, delimitando seu uso pelo proprietário ao afirmar que,

De acordo com essa proposta, o feixe comportaria o ius utendi (direito de uso), o ius

fruendi (direito de fruição), o ius abutendi (direito de disposição) e o ius vindicandi

(direito de reaver o bem daquele que o houver usurpado), manifestando-se, essencialmente, por meio do denominado ius excludendi omnes alios, que comporta um direito de exclusão em relação a todos aqueles que não sejam proprietários do bem (BORTOLINI, 2014, p. 73).

Assim sendo, dependendo da situação concreta o proprietário pode se valer de determinada vara/direito. Como exemplo do uso desses poderes específicos, cita-se o caso do proprietário que, sendo esbulhado, ingressa com ação de reintegração de posse, invocando para

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si o direito de reaver, constante do feixe de varas; e o caso do proprietário que, decidindo não mais trabalhar a terra, resolve arrendá-la a terceiro, baseado no seu direito de usufruto.

Após a apresentação da teoria do feixe de direitos e sua presença no CC, passa-se à análise das faculdades que o proprietário tem sobre sua propriedade.

2.2 FACULDADES DO PROPRIETÁRIO

O proprietário tem sobre a propriedade algumas faculdades, quais sejam: usar, gozar, dispor e reaver. Observou-se que esse conjunto de prerrogativas inerentes à propriedade não são denominadas uniformemente. Schveitzer (2017, p. 57), por exemplo, denomina-as de elementos constitutivos. Gagliano e Pamplona Filho (2018, p. 1.046), por sua vez, tratam-nas como poderes ou faculdades. Seguindo esse entendimento, no presente trabalho serão denominadas como faculdades. Na sequência, serão analisadas as faculdades de usar, gozar, dispor e reaver que o proprietário detém sobre a propriedade.

2.2.1 Usar

O art. 1.412 do CC dispõe que “o usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família” (BRASIL, 2002). Segundo Schveitzer (2017, p. 57), usar “é desfrutar dos proveitos diretamente proporcionados pelo bem, dentro das restrições legais, visando ao bem-estar da coletividade, não podendo ser exercido abusivamente”. Para Guilherme (2017, p. 671), é o poder de “tirar dela todos os serviços que pode prestar, dentro das restrições legais, sem que haja modificação em sua substância”. O uso pode incluir ações não-consumativas, como conservar (SMITH, 2011, p. 282). Para Marmo (2004, p. 155), “o uso, como o usufruto, é um direito real – porquanto incide diretamente sobre a coisa -, porém de extensão muito restrita e limitada”.

Entretanto, o CC, em sua parte geral, veda o uso anormal do direito de propriedade, conforme redação do art. 187: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002). Logo, conclui-se que o direito de uso do proprietário é amplo, mas não ilimitado. O proprietário deve se dobrar às imposições legais supervenientes.

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2.2.2 Gozar

Gozar, ou usufruir, é a exploração econômica, a retirada de frutos da coisa (SCHVEITZER, 2017, p. 58), prevista no art. 1.232 do CC: “os frutos e mais produtos da coisa pertencem, ainda quando separados, ao seu proprietário, salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem”. O titular do direito permanece proprietário da coisa, mas privado temporariamente dos direitos de usar e gozar, “transformando-se, portanto, em nu-proprietário” (LOUREIRO, 2004, p. 99).

2.2.3 Dispor

Segundo Guilherme (2017, p. 671), dispor é o direito de livre disposição da coisa, de aliená-la onerosamente ou não. Schveitzer (2017, p. 58) inclui dentre as prerrogativas do proprietário conferidas pela faculdade de disposição “consumi-la, de gravá-la, de destruí-la e de abandoná-la”. Embora o proprietário tenha amplos poderes, assim como na faculdade de usar, ele também aqui sofre limitações. Não pode o proprietário, por exemplo, destruir uma casa tombada pelo patrimônio histórico, ou atear fogo numa área de proteção ambiental. A faculdade de dispor, portanto, pode ser limitada por determinações que visam garantir o interesse coletivo.

2.2.4 Reaver

Reaver é o direito de reinvindicação que o proprietário detém, ou seja, é a faculdade de “mover ação para obter o bem de quem injusta ou legitimamente o possua ou detenha, em razão do seu direito de sequela” (GUILHERME, 2017, p. 672). O Código de Processo Civil de 2015 (CPC) assegura o direito de mandado proibitório no caso de ameaça, ação de manutenção de posse quando da turbação, e reintegração de posse em caso de esbulho (BRASIL, 2015).

Contudo, assim como nas faculdades mencionadas anteriormente, há algumas restrições legais ao proprietário que tenta reaver sua propriedade. Como exemplo, o desforço possessório, que pode ser invocado pelo titular do direito, mas desde que o faça de imediato (BRASIL, 2002). Se o fizer tardiamente, ou com força desproporcional, estará cometendo ato ilícito. Após a análise das faculdades do proprietário em relação a coisa, passa-se a análise das características da propriedade.

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2.3 CARACTERÍSTICAS DA PROPRIEDADE

Dando sequência ao estudo do direito de propriedade, passa-se a análise de suas características, que são: perpetuidade, exclusividade, absolutismo e elasticidade, as quais trata-se nos itens a trata-seguir.

2.3.1 Perpetuidade

É a extensão da propriedade no tempo. Para Wald (2015, p. 136), “a propriedade normalmente é perpétua. Ela continua a existir mesmo após a morte do seu titular, e somente se extingue pelos modos previstos em lei (abandono, usucapião, desapropriação) ”. No mesmo sentido, Gomes (2004, p. 114) reafirma a regra geral de que “a perpetuidade é um dos caracteres da propriedade. Daí se dizer que a propriedade é irrevogável”.

Há contudo exceções à essa regra geral. Por um lado, no título de constituição da propriedade pode haver condição resolutiva, por sua natureza ou pela vontade das partes (GOMES, 2004, p. 114). Por outro lado, há também a possibilidade de revogação da propriedade. Nesse sentido, cita-se como exemplo o caso do donatário ingrato, em relação ao qual a doação poderá ser revogada, conforme redação do art. 555 do CC: “a doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo” (BRASIL, 2002).

Tem-se, portanto, a característica da perpetuidade, que assegura à propriedade sua permanência mesmo com o não-uso, permitindo que seja transmitida hereditariamente.

2.3.2 Exclusividade

Passa-se agora a elucidar a característica da exclusividade, que, pode ser entendida como central à compreensão do instituto da propriedade. Trata-se aqui da exclusividade de exercer quaisquer das faculdades inerentes à propriedade: usar, gozar, dispor e reaver, faculdades essas indisponíveis a terceiros não-proprietários.

Segundo o art. 1.231 do CC, a propriedade se presume plena e exclusiva, até prova em contrário (BRASIL, 2002). Em outras palavras, a legislação, ao conferir exclusividade ao proprietário, nega o exercício desse direito a todos os demais sujeitos.

Para Anderson (2007, p. 376, tradução nossa), na visão tradicional de Blackstone sobre a propriedade, que remonta ao século XIX, esta é “domínio despótico sobre a res”. Assim, ocorre a “total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo no universo” (ANDERSON,

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2007, p. 376, tradução nossa). Nesse sentido, Carnacchioni (2014, p. 176) leciona que o “poder de proibir que terceiros exerçam sobre a coisa qualquer senhorio a torna um direito exclusivo. O proprietário pode afastar a ingerência alheia com relação ao bem que lhe pertence”.

De acordo com Torrente (apud MONTEIRO; MALUF, 2009, p. 100), “o jos

excludendi alios constitui a substância do direito de propriedade”. No mesmo sentido, Katz

(2008, p. 277, tradução nossa) afirma que “a propriedade é essencialmente constituída pela exclusão dos outros do objeto possuído”. Para a autora, o poder do dono sobre a propriedade é simplesmente o efeito do seu direito de excluir os outros. Dessa forma, um elemento importante da propriedade é a prioridade sobre outros que o proprietário possui para determinar seu fim (KATZ, 2008, p. 297).

Já Gomes (2004, p. 110) acrescenta que “o direito de propriedade se revela no jus

prohibendi, que consiste no poder de proibir que terceiros exerçam sobre a coisa qualquer

senhorio”. Para Smith (2011, p. 281), esse direito de excluir presente no jus prohibendi é um meio usado para a obtenção do fim, e o fim, no caso da propriedade, é seu uso.

Verifica-se que neste contexto, a exclusividade é apontada por Katz e Gomes como central à propriedade, enquanto Smith aponta que o direito de excluir é meramente um meio, e não o fim.

2.3.3 Absolutismo

O absolutismo enquanto característica da propriedade pode ser identificado já nas previsões do direito romano. Segundo Loureiro (2004, p. 109), “em Roma, notadamente no fim do Império, as leis consagravam a função individual da propriedade, que era considerada então como um direito absoluto”.

Absolutismo é a característica que garante ao proprietário plenitude para exercer seus poderes de usar, gozar, dispor e reaver (WALD, 2015, p. 135). Gomes (2004, p. 109) afirma que é um direito absoluto, “[...] porque oponível a todos. Mas a oponibilidade erga

omnes não é peculiar ao direito de propriedade. O que lhe é próprio é esse poder jurídico de

dominação da coisa, que fica ileso em sua substancialidade ainda quando sofre certas limitações”.

Katz (2008, p. 278) faz uma analogia do absolutismo com a soberania, pois para a autora ambos se baseiam em uma noção hierárquica, na qual a autoridade do proprietário para impor seu poder é suprema em relação a outros indivíduos privados. No mesmo sentido, Wald (2015, p. 133), afirma que “essa plenitude do direito de propriedade distingue-o dos outros

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direitos reais, denominados direitos reais limitados”. Para o autor, no direito de propriedade estão no polo passivo todos aqueles não proprietários do bem em questão, enquanto que os proprietários ocupam o polo ativo (WALD, 2015, p. 133).

O CC, em seu artigo 1.228, parágrafos 1º e 2º, exemplifica situações de mitigação do absolutismo da propriedade:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas

finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de

conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como

evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou

utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem (BRASIL, 2002, grifo nosso).

Portanto, a teleologia do art. 1.228 do CC vigente é claramente contrária ao absolutismo da propriedade, refutando-o em seus parágrafos 1º e 2º. É o expresso reconhecimento da função social da propriedade, limitando o proprietário no livre e pleno exercício desse direito. Gomes explica a hermenêutica do CC sobre o tema: “mitiga-se [...] o caráter irrestrito do direito real de propriedade com a adoção de um condicionamento finalístico, cuja teleologia é dada pela ordem econômica e social, e pela tutela do meio ambiente e do

patrimônio histórico e artístico” (GOMES, 2004, p. 110, grifo nosso).

Entretanto, Wald (2015, p. 135) não vê contradição entre o absolutismo e a função social da propriedade: para o autor a ilimitação que o conceito de absolutismo carrega consigo significa “apenas que inexiste outro direito real sobre o mesmo objeto quando a propriedade é plena” (WALD, 2015, p. 135). Havendo outro direito real sobre o mesmo objeto, como no caso de uma servidão ou usufruto, “a propriedade será onerada ou limitada” (WALD, 2015, p. 135). Gomes (2004, p. 114) exemplifica que “se a coisa está gravada com usufruto [...] seu proprietário tem domínio restrito, porquanto os direitos de uso e gozo da coisa passam ao usufrutuário”.

Tem-se, portanto, que a característica do absolutismo, inicialmente presente sem limitações no instituto da propriedade, foi mitigada por força de legislação superveniente, tanto na CFRB como no CC.

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2.3.4 Elasticidade

Elasticidade é a característica que garante limitação “quando houver o destacamento de um dos poderes ou pela superveniência de lei restritiva” (BODNAR, 2004, p. 25). Wald (2015, p. 137) explica que tal qualidade se refere a tendência de recuperação de sua plenitude, uma vez extintos os direitos reais limitados sobre o objeto. Assim, extinguindo-se os direitos reais que oneravam a propriedade, limitando-a, ela volta a ser plena. Nesse sentido também é o entendimento de Schveitzer (2017, p. 60), para quem a elasticidade é a característica que permite a cessão de algum dos elementos da propriedade pelo titular do direito.

Um exemplo da elasticidade da propriedade é o usufruto: quando ocorre o final do contrato de arrendamento, o proprietário volta a fazer o uso e ter a posse direta sobre o bem, antes prejudicada pelo direito de uso do arrendatário, ou a cessão não-onerosa de uso que o proprietário faz a terceiro. No momento em que a cessão é extinta, o proprietário “voltará a ter todos os poderes inerentes, ou seja, usar, gozar, dispor e reaver” (SCHVEITZER, 2017, p. 60). Wald (2015, p. 137) apresenta o exemplo da servidão: “se uma servidão onera determinado prédio e posteriormente se extingue, a propriedade, que era limitada ou onerada, torna-se plena ou ilimitada”. Gomes (2004, p. 110), por sua vez, afirma que a propriedade pode ser distendida ou contraída “conforme se lhe agreguem ou retirem faculdades destacáveis”. Nesse sentido, Loureiro (2004, p. 99) afirma que “a propriedade sempre tem a tendência de recobrar sua condição de direito real absoluto”.

Portanto, torna-se claro o uso recorrente da teoria do feixe de direitos nos textos que estudam os elementos da propriedade. A teoria do feixe de direitos se coaduna ao elemento da elasticidade – aliás, depende dela - pois sua complexidade requer flexibilidade para atender a defesa da propriedade.

Finalizada a análise das características da propriedade, passa-se ao estudo do instituto da posse, as modalidades pelas quais pode ser perturbada e das ações possessórias cabíveis.

2.4 POSSE

Para Ribas, a posse “é um estado de fato, cuja conformidade ou não conformidade com o direito é indiferente” (RIBAS, apud RIZZARDO, 2016, p. 15). Segundo Bodnar (2004, p. 23),

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A posse é a atitude ou comportamento que aparenta ser o de proprietário, especialmente protegida pela lei como meio estratégico para a tutela da propriedade presuntiva, que confere ao titular o direito de usar, gozar, reivindicar o bem possuído, bem como de dispor do direito de posse sobre o mesmo.

Para Bodnar (2004, p. 23), essa aparência externa do instituto da posse se contrasta à propriedade, que “é o direito real subjetivo de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem”. Portanto, a posse seria um estado não necessariamente de direito, mas de fato objetivo cuja existência não cabe ao direito questionar. De acordo com Ribas, “a posse é império natural ou material que os homens exercem sobre as coisas, abstração feita do direito que possam, ou não, ter para exercê-lo” (RIBAS, apud RIZZARDO, 2016, p. 15).

Rizzardo (2016, p. 15) leciona que somente podem ser objeto de posse os bens materiais, ao contrário dos imateriais. Segundo o autor, “em regra, qualquer coisa corpórea é objeto da posse” (RIZZARDO, 2016, p. 28). Nesse sentido, complementa que a posse necessariamente está vinculada a um bem – não existe posse sem um bem correlato (RIZZARDO, 2016, p. 15).

O Brasil adota a teoria da posse de Rudolf von Ihering (RIZZARDO, 2016, p. 17). Para Rizzardo, um exemplo claro da aplicação dessa teoria no ordenamento jurídico nacional é o art. 1196 do CC, o qual considera possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguma das faculdades inerentes à propriedade (BRASIL, 2002). Portanto, para ter a posse, basta ao possuidor que exerça uma das faculdades inerentes ao proprietário: usar, gozar, dispor e reaver (item 2.2).

Já a aquisição da posse se dá, conforme art. 1.204 do CC, “desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer das faculdades inerentes à propriedade” (BRASIL, 2002). Wald (2015, p. 101) enumera três modos de aquisição de propriedade: a) ato jurídico unilateral, b) ato jurídico bilateral e c) por sucessão mortis causa.

O conceito sintético que Ráo leciona resume a diferença aparente entre posse e propriedade:

A posse é o poder de fato; a propriedade é o poder de direito. Ambas, conjuntamente, podem estar com o proprietário, mas dele também podem separar-se por dois diversos modos: ou quando o proprietário transfere a posse a outrem, conservando a propriedade, ou quando a posse lhe é arrebatada contra a sua vontade (RÁO apud RIZZARDO, 2016, p. 17).

Os direitos do possuidor, assim como os do proprietário, são protegidos por lei nos artigos do Livro III, Título I, do CC.

(23)

Na continuidade do estudo do instituto da posse, passa-se à proteção da posse contra ameaça, turbação e esbulho por meio das ações possessórias previstas no CC e no CPC.

2.4.1 A Proteção da Posse

O ordenamento jurídico brasileiro prevê a proteção da posse contra distúrbios de ordem crescente: ameaça, turbação e esbulho. Nesse sentido é a previsão do art. 1.210 do CC, caput, “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”. Na sequência analisa-se cada uma dessas modalidades de perturbação da posse.

2.4.1.1 Ameaça

De acordo com o CC, a ameaça ocorre quando o possuidor direto ou indireto tenha “justo receio de ser molestado” (BRASIL, 2002). O mesmo diploma, em seu art. 1.210 prevê que há necessidade de que o temor da ameaça, turbação ou esbulho na posse seja fundado. Portanto, a ameaça deve ser direcionada à posse, ou seja, ao vínculo de sujeição da res pelo sujeito, com o objetivo deliberado de rompê-lo. Rizzardo (2016, p. 93) usa o exemplo da ameaça à posse causada por “agricultores sem-terra [...] desrespeitando o processo de reforma agrária e os critérios de seleção de áreas para desapropriação”. A ameaça é o mais leve das perturbações à posse previstas no ordenamento jurídico brasileiro.

2.4.1.2 Turbação

A turbação é um ato de terceiro que traz incômodo ao proprietário, num grau mais elevado do que a mera ameaça, mas não tão grave como no esbulho. Se na ameaça ainda não há concretamente uma invasão da propriedade, na turbação ela já existe, mas, ao contrário do esbulho, o possuidor permanece com o domínio sobre a coisa.

Segundo Marmo (2004, p.15), a turbação

É a presença de atos concretos e ameaçadores, praticados por uma pessoa contra a posse de outrem, que podem levar à presunção segura de ocorrência futura de se lhe apropriar da posse, sem, no entanto, haver sua efetiva e real perda, traço este que define a distinção entre perturbar para tomar (ato de turbação) e definitivamente tomar (ato de esbulho).

(24)

Ou seja, enquanto na ameaça há meramente a iminência de uma ação prejudicial à propriedade, na turbação há atos turbativos concretos, como a alteração clandestina de cercas divisórias entre propriedades, ou a retirada de lenha não autorizada. A alteração de marcos e a retirada de lenha buscam claramente romper o vínculo de sujeição da coisa ao proprietário da terra, no primeiro caso, e da lenha no segundo:

A turbação ocorre quando atos de qualquer pessoa põem em risco a posse de alguém sobre certa coisa [...]. Havendo a possibilidade de a conduta do agressor vir a redundar na perda da posse pelo agredido, há turbação. Não basta, porém, a simples ameaça. O turbador pratica atos com o claro objetivo de romper o vínculo de sujeição da coisa

ao seu possuidor [...] (COELHO, 2009, p. 38, grifo nosso).

Gonçalves (2012, p. 132) define turbação como “efetivo embaraço ao exercício da posse”, enquanto que para Gomes (2004, p. 100), é “todo ato que embaraça o livre exercício da posse”. Completa ainda que “há de ser real, isto é, concreta, efetiva, consistente em fatos” (GOMES, 2004, p. 100). Para Loureiro (2004, p. 83), “na turbação não há perda total da posse, mas sim um estorvo ao exercício da posse”.

Os atos turbativos podem ser classificados como positivos ou negativos (GOMES, 2004, p. 100; RIZZARDO, 2016, p. 98). Os atos de turbação positivos são aqueles que envolvem uma ação direta de terceiros sobre a posse, por exemplo, o corte de árvores, a derrubada de cercas ou a implantação de marcos e estacas (GOMES, 2004, p. 100; RIZZARDO, 2016, p. 98). Já os atos de turbação negativos são aqueles que visam impedir ou dificultar a prática de determinados atos pelo possuidor, como por exemplo a colocação de obstáculos (colocação de obstáculos).

2.4.1.3 Esbulho

O esbulho possessório é o grau mais elevado de incômodo à posse, pois há o rompimento completo do vínculo de sujeição do possuidor causado por um terceiro. Conquanto os atos turbativos praticados por terceiro causem incômodo na posse, o vínculo de sujeição do possuidor sobre a res não chega a se romper. Nesse sentido, o esbulho se caracteriza pela “presença de atos concretos, praticados por uma pessoa contra a posse de outrem, que resultam na efetiva tomada da posse” (MARMO, 2004, p. 15).

No mesmo sentido, Loureiro (2004, p. 83) define esbulho como “ato pelo qual o possuidor se vê despojado da posse, injustamente, por violência, por clandestinidade ou por abuso de confiança”. Para o autor, no esbulho há perda total da posse, seja sobre a totalidade

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do bem ou sobre parte dele. Rizzardo vai mais além, e caracteriza o esbulho não somente pela tomada da posse por atos ilícitos, “mas também com a recusa em restituir a coisa quando a isto se é obrigado” (RIZZARDO, 2016, p. 99).

Para que ocorra tanto a turbação como o esbulho, é necessário que o invasor exerça em nome próprio, qualquer dos poderes inerentes à propriedade, conforme art. 1.204 do CC.

Finalizada a descrição das formas pelas quais a posse pode ser perturbada, passa-se ao estudo das ações possessórias previstas no ordenamento jurídico brasileiro.

2.4.2 Ações Possessórias

O art. 1.210 do CC garante ao possuidor a prerrogativa de ser “[...] mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado” (BRASIL, 2002). Com redação semelhante, o art. 560 do CPC prevê que “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado em caso de esbulho” (BRASIL, 2015). Nota-se, portanto, a importância dada pelo legislador infraconstitucional brasileiro à defesa da propriedade, e, por consequência, à defesa de quem a detém.

No caso da ameaça, pode o proprietário invocar o interdito proibitório, previsto no art. 567 do CPC. Este instrumento visa afastar a ameaça para prevenir a turbação e o esbulho iminentes. Conforme Gomes, para invocar esse instrumento, “basta que o possuidor receie ser molestado em sua posse” (GOMES, 2004, p. 104).

No caso da turbação, quando já ocorreu o incômodo à posse, com o intuito de romper o vínculo de sujeição sobre a coisa, o instrumento adequado é o da ação de manutenção de posse. Como requisitos à propositura da ação de manutenção de posse o possuidor deverá provar: a) a posse que vem exercendo, b) a turbação levada a termo pelo réu, e c) a permanência do autor na posse, embora turbada (BRASIL, 2015).

No caso do esbulho, quando ocorreu a perda efetiva do vínculo de sujeição sobre a

res, cabe ao possuidor a ação de reintegração de posse. Os requisitos para a propositura de tal

ação são: a) o possuidor esbulhado ter exercido posse anterior, b) a existência de esbulho e c) a perda da posse e d) a data que ocorreu o esbulho (BRASIL, 2015).

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2.4.3 Desforço Possessório

O §1º do art. 1.210 do CC ainda prevê o chamado desforço possessório, no qual o possuidor turbado ou esbulhado “[...] poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse” (BRASIL, 2002). Portanto, pode o possuidor, desde que de maneira proporcional, defender sua posse contra quem tente lhe esbulhar. A defesa da posse é uma das poucas permissões à autotutela presentes no ordenamento jurídico brasileiro, garantindo ao possuidor o poder de agir sem revisão da jurisdição estatal, desde que proporcionalmente e tempestivamente.

O Enunciado n. 495 da V Jornada de Direito Civil esclarece sob qual forma deverá ser feito o desforço possessório: “No desforço possessório, a expressão ‘contanto que o faça logo’ deve ser entendida restritivamente, apenas como a reação imediata ao fato do esbulho ou da turbação, cabendo ao possuidor recorrer à via jurisdicional nas demais hipóteses”.

Para Rizzardo (2016, p. 93), “a defesa seguirá ao ato de força, sem uma longa demora, ou tão logo o ofendido constate a agressão”. Portanto, o desforço possessório é uma espécie de defesa da propriedade, na qual o sujeito ativo é o possuidor, e o passivo, um terceiro com intenção manifesta de turbação ou esbulho. Segundo Rizzardo (2016, p. 93), “através da defesa o possuidor mantém-se na posse; pelo desforço, ele a recupera”.

Pela leitura das disposições legais pertinentes, percebe-se que há prioridade para a resolução dos conflitos possessórios pela via judicial, devendo o possuidor fazer uso das ações possessórias à sua disposição. Contudo, o legislador brasileiro deixou aberta a possibilidade do uso da autotutela em casos específicos. Finaliza-se, portanto, a análise do instituto da posse. Na sequência passa-se à identificação das previsões legais que limitam o direito de propriedade.

2.5 LIMITAÇÕES LEGAIS AO DIREITO DE PROPRIEDADE

Embora o proprietário tenha amplos poderes, a legislação poderá impor limitações ao exercício do direito de propriedade. Wald (2015, p. 159) distingue as limitações em dois tipos: as voluntárias, que seriam “decorrentes de declaração de vontade do interessado ou por acordo entre as partes” e as legais, cuja fonte é a lei. Essas últimas Wald as subdivide em restrições de direito público, que seriam em benefício da coletividade, e restrições de direito privado, que favorecem particulares (WALD, 2015, p. 159).

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Como exemplo de limitações ao direito de propriedade pode-se citar: no Direito Civil, as regras de vizinhança; no Direito Administrativo, a proteção ao patrimônio histórico; no Direito Constitucional, a utilização temporária de bens privados e a desapropriação; no Direito Militar, a requisição de bens; no Direito Eleitoral, a requisição para uso nas eleições; no Direito Penal, no confisco; no Direito Ambiental, na imposição de reserva legal; no Direito Tributário, na imposição de tributo.

Especificamente no Direito de Propriedade previsto no CC, há mais algumas limitações que impedem o proprietário de fazer o que quiser com a sua propriedade. Nesse sentido, o art. 1.228 do CC veda ao proprietário quaisquer atos que “não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (BRASIL, 2002). Como exemplo, não pode o proprietário erigir uma chaminé falsa que visa somente fazer sombra no terreno vizinho (MONTEIRO; MALUF, 2009, p. 103). Conforme a previsão do art. 1.229 do CC:

Art. 1.229. A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las (BRASIL, 2002).

Como exemplo, não pode o proprietário impedir o tráfego de aeronaves sobre sua propriedade. Ao contrário do Direito Romano, que previa a extensão vertical da propriedade desde o centro da Terra até às estrelas (BODNAR, 2004, p. 26), no ordenamento jurídico civil brasileiro o proprietário deve sofrer resignado algumas imposições da lei. No caso do tráfego de aeronaves sobre a propriedade, por exemplo, não cabe indenização, devendo o proprietário suportar o ônus resignado.

Outra determinação importante do CC é o chamado usucapião coletivo, disposto nos parágrafos 4º e 5º do art. 1.228:

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado

consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao

proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores (BRASIL 2002).

Há aqui evidente amenização do direito de propriedade, no qual o proprietário pode até mesmo perder a propriedade para um grupo de pessoas que tenha a posse ininterrupta e de

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boa fé. O juiz, considerando o interesse social e econômico, poderá entender pela necessidade da desapropriação, neste caso cabendo indenização justa ao proprietário. Para Wald (2015, p. 161), “a desapropriação é restrição drástica e de caráter especialíssimo, tanto assim que dá direito à indenização”.

Para Wald (2015, p. 159), “a importância dessas restrições tem aumentado à medida que se intensifica a interdependência entre os homens e entre eles se consolida a solidariedade social”. Dessa forma, o raciocínio de Wald corrobora o de Arnold (2011, p. 167-193), segundo o qual a propriedade é um conjunto de conexões entre pessoas, grupos e entidades, cada qual com um interesse relacionado ao objeto localizado no centro da teia.

Mais pertinentemente a este trabalho, outra limitação da propriedade relacionada no art. 1.228 do CC que o Estado pode impor ao proprietário é no interesse da cultura (BRASIL, 2002). A CRFB traz na redação do seu art. 216 as definições de bens que se enquadram como patrimônio cultural brasileiro, e que merecem tratamento diferenciado:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

[...]

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Segundo Gomes (2004, p. 155), “tombamento, desapropriação, inventários, registros e vigilância são alguns dos meios de proteção do patrimônio cultural brasileiro”. São estes os instrumentos que possibilitam ao poder público inventariar e manter o patrimônio cultural e ecológico brasileiro.

Portanto, não obstante ser a propriedade direito assegurado na CRFB, é certo que ela deve moldar-se às imposições legais, especificamente no que tange a presente pesquisa, às imposições de cunho paisagístico e ecológico. Infere-se do texto do art. 216, inciso V, da CRFB, que a sociedade tem direito ao patrimônio cultural e que às regras deste deve submeter-se o Direito de Propriedade.

Após analisar o direito de propriedade, em especial nas suas características, as faculdades do proprietário e o instituto da posse, identificou-se que há determinações legais que limitam tal direito. No capítulo seguinte passa-se para a análise da função social da propriedade e suas consequências para o direito de propriedade no Brasil.

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3 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Se na era liberal o direito de propriedade era absoluto, sendo a propriedade domínio despótico do proprietário, no século XX passou-se a ter o advento do Estado intervencionista, que usava mecanismos legais para contrapor o poderio econômico até então ilimitado do capital e das forças de produção.

Para Farias e Rosenvald (2017, p. 306), “no estágio inicial do capitalismo importava apenas a mera apropriação de bens por parte do cidadão, sem cogitar de uma coletividade que com ele interagisse”. Os autores descrevem que nesse período inicial do capitalismo industrial do século XIX acreditava-se que a exclusão de controles por parte do ordenamento propiciaria a geração de riqueza individual e culminaria por beneficiar indiretamente a toda a sociedade (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 306). Entretanto, para os autores, a liberdade irrestrita de alguns poucos implica em opressão de uma massa de pessoas, que são privadas de acesso a bens mínimos e excluídas até mesmo de sua dignidade, num cenário no qual o valor da liberdade individual e igualdade formal não prospera.

Com o advento do Estado intervencionista, cujo aparecimento José Afonso da Silva identifica na Constituição de Weimar de 1919 (SILVA apud VIEIRA, 2011, p. 113), há uma mudança de paradigma. Em substituição ao modelo anterior, o Estado liberal da Revolução Francesa, “passou-se a considerar que também o direito de propriedade deveria conhecer limites, para que atendesse a sua função social” (LOUREIRO, 2004, p. 114). Para o Loureiro (2004, p. 114), as rápidas transformações sociais ocorridas na época justificavam a necessidade de atualização do conceito jurídico de propriedade, que deveria deixar de ser um direito individual e absoluto e converter-se em uma função social. Segundo Loureiro (2004, p. 110, grifo nosso):

No curso do século XX, notadamente após a década de 50, assistiu-se a uma

alteração fundamental no papel desempenhado pela propriedade, sobretudo imobiliária. De um direito absoluto, do ponto de vista da completa sujeição do bem

à vontade do dono, a propriedade passou a ter uma função comunitária. Se a propriedade tem uma função individual, ela tem também uma função social.

Logo, o direito de propriedade não deve ser vislumbrado como onipotente e desconectado da sociedade. Ele é parte da teia de relações sociais, e como tal, não pode ser apartado como no conceito clássico de propriedade, regido por um Estado liberal, fundado na separação completa do Estado e da sociedade civil. Para Rizzardo (2016, p. 166),

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A partir de uma visão histórica mais justa e humana que se impõe diante do aumento de população nos últimos tempos e de uma conscientização aprofundada dos direitos naturais fundamentais do homem de viver dignamente, afastam os novos diplomas o rigorismo individualista que imperava outrora sobre a propriedade privada, o que constitui uma consequência da preponderância que se vem dando ao homem, relativamente aos bens.

Portanto, nos dias de hoje, a ideia do coletivo se sobrepõe à visão absolutista do direito de propriedade. A propriedade deve contribuir para o desenvolvimento da sociedade, e não ser um fator de criação e manutenção de desigualdades sociais. Essa nova visão sócio-jurídica permite ao Estado impor sua vontade – ou a da coletividade – para exercer a função social da propriedade.

Conforme se observou no capítulo anterior, a propriedade privada pode ser limitada com base em fundamentos legais, dentre os quais merece destaque a função social da propriedade, objeto do presente capítulo. Assim sendo, primeiramente, será verificada a previsão da função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. Na sequência discute-se o Direito Comum. Em terceiro lugar, descreve-se formas do exercício da função social da propriedade e por fim, apresenta-se críticas à teoria do feixe de direitos.

3.1 PREVISÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A função social a qual se destina a propriedade foi inserida em um conceito amplo na CFRB, sendo uma ideia que permeia diversos dispositivos legais, dos quais limita-se mencionar os concernentes ao presente trabalho.

Logo em seu art. 1º a CFRB prescreve que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana e tendo como objetivos, dentre outros, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Para Bodnar (2004, p. 36), a CFRB “estabeleceu uma ideologia que deve iluminar todo o ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional em todos os campos do direito, em especial o direito de propriedade, o qual vai definir os contornos e a função da riqueza no país”. O art. 5º, XXII da CRFB, garante o direito de propriedade. Entretanto, logo em seguida, no inc. XXIII, determina que a propriedade deverá atender a sua função social (BRASIL, 1988).

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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[...]

XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; [...]. (BRASIL, 1988).

Segundo Marmo, (2004, p. 27) o legislador, ao dispor que a propriedade será regulada não só por interesse próprio do proprietário, mas pela utilidade social, “passa a privar o proprietário de determinadas faculdades”, e impõe determinadas obrigações para exercício do seu domínio sobre a coisa.

A função social da propriedade é também elencada como os princípios orientadores da ordem econômica, conforme se observa no art. 170 da CFRB:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade; [...]. (BRASIL, 1988).

Novamente, assim como no art. 5º, há na CFRB a menção ao direito propriedade seguido pela limitação imposta pela função social da propriedade, denotando a preocupação do legislador constituinte com a aderência da propriedade à sua função social.

A CRFB também trata de forma diferenciada a propriedade urbana (art. 182) e a propriedade rural (art. 186), estabelecendo a respeito da função social da propriedade critérios específicos para cada regime proprietário.

Mais pertinentemente à temática deste trabalho, o art. 186 da CFRB estabelece os requisitos para o cumprimento da função social de propriedade rural:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL, 1988).

Para Magalhães (1993, p. 50), o inciso II do art. 186 da CFRB amplia o conceito de função social da propriedade, pois insere a função ambiental como elemento constitutivo da propriedade. Nesse sentido, segundo Bortolini (2014, p. 69),

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[...] a proposta de Estado Socioambiental de Direito abraçada pelo texto constitucional brasileiro eleva o ambiente a conteúdo normativo do direito de propriedade, enfatizando que a fórmula função social engloba também um conteúdo ecológico. Daí a popularização doutrinária da expressão função socioambiental que, embora não reflita a literalidade do texto constitucional, evidencia mais fielmente a preocupação ambiental que permeia o direito de propriedade.

Dessa forma, fica evidenciado no ordenamento jurídico brasileiro o caráter socioambiental da propriedade, pois observa-se que o caráter do texto da CRFB não é somente social, mas também ambiental – daí função socioambiental -, pois a função social da propriedade também pode ser dada pelo Direito Ambiental (BORTOLINI, 2014, p. 69).

Como exemplo do desempenho dessa função, cita-se o art. 23, III da CFRB, que determina que é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios “proteger [...] os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (BRASIL, 1988). Logo, nenhum desses entes públicos pode se recusar ou restar inerte na proteção dos monumentos e paisagens naturais, devendo protegê-los em caso de ameaça, assegurando o cumprimento da função social da propriedade. Há a responsabilidade compartilhada no exercício desses deveres.

Conforme leitura dos artigos 5º, 170 e 186 da CRFB, conclui-se que a propriedade privada é um direito assegurado – desde que disciplinado pela função social. Essa perspectiva, fundada na função social da propriedade, determina que

A propriedade reconhecida e tutelada pela Constituição Federal de 1988 é apenas aquela que cumpre a função social. O direito de propriedade passa a não ser apenas um direito, mas também uma função. Valoriza-se o atendimento aos fins sociais em desprestígio aos interesses egoísticos do titular do direito. (BODNAR, 2004, p. 22).

Portanto, na CFRB, a propriedade privada é encarada dentro de sua função social. O direito de usar, gozar, dispor e reaver dos bens tem limites, prosperando enquanto não ofender a função social da propriedade. Nesse sentido conclui-se que “a concepção da propriedade, que desprende da Constituição, é mais ampla que o tradicional domínio sobre as coisas corpóreas, principalmente imóveis, que os códigos civis ainda alimentam” (LOBO, 1999, p. 107).

Na legislação infraconstitucional, a função social da propriedade é mencionada no art. 1.228 do CC (BRASIL, 2002):

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas

finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio

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ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou

utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por

necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado

consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante [...].

No parágrafo primeiro, a subordinação do direito de propriedade à função social é explícita, devendo ser respeitadas as características ambientais, paisagísticas, históricas e artísticas. Também há a obrigação da preservação ambiental.

Já o parágrafo segundo do art. 1.228 veda “os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (BRASIL, 2002). Dessa forma, não pode o proprietário agir com intuito manifesto de simplesmente prejudicar um terceiro não-proprietário.

O parágrafo terceiro do art. 1.228 prevê a desapropriação da coisa “por necessidade ou utilidade pública ou interesse social [...]” (BRASIL, 2002). É o corolário da soberania da função social: caso haja utilidade pública, ou mesmo mero interesse social, o Estado pode inclusive desapropriar áreas que, de modo fundamentado, lhe convier.

Por fim, o parágrafo quarto traz a possibilidade da usucapião coletiva, no qual um grupo de pessoas que, cumprindo determinados requisitos, pode adquirir coletivamente a propriedade de um imóvel cujo proprietário não assegurou sua função social (BRASIL, 2002). Tem-se, portanto, que a função social da propriedade é a maneira legislativa que o Estado possui para direção de suas políticas e consecução de seus objetivos constitucionais contidos no art. 3º da CFRB, a saber: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais; e a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (BRASIL, 1988).

Nesse contexto, o direito à propriedade, embora assegurado constitucionalmente, passa a ser percebido também como elemento social. Nas palavras de Fachin:

Nessa esteira, passa-se a entender que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo que o direito de propriedade também começa a ser um direito à propriedade. Gera, por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso. (FACHIN, 2000, p. 74).

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Verificou-se quais os dispositivos legais, constitucionais e infraconstitucionais, que embasam a necessidade de que a propriedade exerça função social. Na sequência, com o estudo do Direito Comum, indica-se como pode se dar o exercício da função social da propriedade, especialmente no que se relaciona à proteção do meio ambiente.

3.2 DIREITO COMUM

Além da proteção individual e da coletiva conferidas pelo Direito, o ordenamento jurídico brasileiro traz a previsão do direito comum, ou difuso. Quando um indivíduo é sujeito de direitos, trata-se de um direito individual; quando uma coletividade determinada de pessoas é detentora de direitos, trata-se de direito coletivo, como acontece, por exemplo, no caso de mandado de segurança coletivo impetrado por uma associação em defesa dos interesses de seus associados, conforme art. 5º, LXX, b, da CRFB. Tanto no mandado de segurança individual quanto no coletivo, o sujeito titular do direito tem sua identidade determinada, pois é possível identificar com precisão os membros da associação. O mesmo não acontece no direito comum. Este tem natureza difusa, protegendo os direitos de pessoas indeterminadas, que transcendem o indivíduo: os direitos transindividuais.

Dardot e Laval ao examinar as origens da expressão concluem que:

As reivindicações em torno do comum apareceram nos movimentos altermundialistas e ecologistas. Tomaram como referência o antigo termo “commons”, procurando opor-se ao que era percebido como uma “segunda onda de cercamentos”. Essa expressão remete ao processo multissecular de apropriação das terras utilizadas coletivamente (“comunais”) e à supressão dos direitos consuetudinários nas regiões rurais da Europa em consequência do “cercamento” de campos e prados (DARDOT; LAVAL, 2017).

O art. 225 da CFRB é exemplo de como a perspectiva de um Direito Comum existe no ordenamento jurídico:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de

uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder

Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

[...]

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

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[...]

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade [...] (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Inserida no título “Da Ordem Social” (juntamente com seguridade social, saúde, educação, cultura e desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, família, criança, adolescente e idoso, e índios), a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado é tida como um direito fundamental e difuso. Segundo Benjamim (2011, p. 118), “Não são poucas, nem insignificantes, as consequências da concessão de status de direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

A expressão “Todos têm direito” remete à ampla coletividade, e, por consequência, ao direito comum. Para Benjamim, o melhor entendimento da expressão “todos” no caput do art. 225 é aquele que garante a qualquer pessoa, residente ou não no Brasil, o benefício de tal direito. “Não há nisso ofensa à soberania, pois é interpretação oriunda da visão holística e universalista do meio ambiente, amparada nos tratados internacionais” (BENJAMIM, 2011, p. 125).

O direito ao meio ambiente é fundamental pois a estrutura normativa remete ao comum (“Todos têm direito [...]”), e porque o rol de direitos assegurados no art. 5º da CRFB não é exaustivo. Adicionalmente, argumenta-se que a preservação do meio ambiente é essencial para a salvaguarda do próprio direito à vida, haja vista nossa interconexão inexorável com o sistema ecológico, em outras palavras, “o direito ao meio ambiente caracteriza-se como um corolário do direito à vida” (BENJAMIM, 2011, p. 122).

Ao usar a palavra “todos” o constituinte assegurou a universalização do direito ao meio ambiente, colocando a comunalidade como natureza essencial. Além disso, insere expressamente o meio ambiente como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (BRASIL, 1988). Portanto, há uma preocupação do legislador em assegurar a preservação do meio ambiente até mesmo para a qualidade de vida humana. A conclusão é que no texto constitucional o meio ambiente não é colocado somente como uma abstração, inapreensível, mas sim como lugares naturais tangíveis, passíveis de serem acessados pelo povo. Para Benjamim (2011, p. 145), “é impossível a desafetação ou desdestinação do meio ambiente, pois sua afetação para o uso comum, além de natural, é imposição constitucional, que não pode ser contestada, sem violação frontal do art. 225, caput”. Nesse sentido votou o Ministro do STF Celso de Mello no julgamento do MS 22.164/SP:

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[...] o meio ambiente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando-se como encargo que se impõe – sempre em benefício das presentes e das futuras gerações – tanto ao Poder Público como à coletividade em si mesmo considerada [...] (BRASIL, 1995).

Para Mello, há uma titularidade compartilhada de interesses sobre o bem, que alcança, inclusive, as gerações futuras. Sendo assim, a execução das tarefas públicas de proteção ao meio ambiente não pode ser suportada exclusivamente pelo proprietário (BRASIL, 1995). Para Dardot e Laval (2017),

O público se opõe ao privado, como o comum se opõe ao próprio. De um lado, portanto, ele se opõe a tudo que é do domínio privado, mas não necessariamente se liga ao Estado: por esse motivo fala-se de “leitura pública”, isto é, feita diante de todos, ou de “opinião pública”, que não é evidentemente a opinião do Estado.

Logo, há uma diferença significativa entre estatal e comum. Porém, conforme o art. 225 do texto constitucional, cabe ao Estado a proteção do comum no que se refere às questões ambientais.

Salienta-se ainda no caput do art. 225 do texto constitucional os benefícios à saúde advindos da preservação e do uso adequado do meio ambiente, já que o legislador vinculou a qualidade de vida ao meio ambiente equilibrado. Tem-se no texto constitucional portanto uma função democrática do meio ambiente, remetente ao direito comum.

Pela função social da propriedade, é vedado tanto aos proprietários como aos não-proprietários o uso que ameace a integridade do meio ambiente, que, além de direito fundamental, também é dever de todos assegurar sua proteção. De acordo com Moreira (apud RIZZARDO, 2016, p. 166), “cada um deve ter os bens não apenas como próprios, mas como comuns, isto é, propriedade privada não é ilimitada, mas deve ter, em benefício do bem comum, uma função social”.

Para Bortolini (2014, p. 72), “o uso historicamente inadequado das terras é uma realidade a ser enfrentada. Há um dever, não só ético-moral, mas jurídico, de uso adequado dos recursos naturais por parte daqueles que lhes detém o domínio”. Tal uso adequado deve ser realizado a partir da perspectiva da função social da propriedade que, conforme se depreende do texto constitucional, deve zelar pela manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado em prol do comum.

De acordo com Dardot e Laval (2017), “embora até agora o comum tenha sido concebido como a grande ameaça à propriedade, que era dada como meio e razão de vida, hoje

Referências

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