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O acontecimento Freud

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 166-170)

Capítulo 4 – Sobre o estatuto ético do inconsciente: o tropeço, o engajamento,

4.1 O acontecimento Freud

Para retomarmos a análise do estatuto ético do inconsciente, devemos nos reportar às discussões de Lacan sobre “a ética que se inaugura pelo ato psicana- lítico”496 e sobre o que representou o “acontecimento Freud”497 na descoberta da psicanálise. O seminário XV: o ato psicanalítico discute o tipo de decisão e enga- jamento que são necessários a vários atos fundamentais da psicanálise, seja o ato de entrada em análise, o que faz com que um psicanalisante passe à psicanalista, ou mesmo o ato do próprio nascimento da psicanálise.498 Em todos eles, Lacan de- monstra que há uma certa antecipação sem a qual a análise das condições situa- cionais nunca se fecha, impedindo assim a efetivação do ato. Já é clássica a fórmu- la de Lacan segundo a qual “o analista só se autoriza de si mesmo”.499 Entretanto, devemos observar que essa a� rmação não se aplica apenas a uma diretiva clínica. Ela também nos informa sobre o engajamento de Freud, ao assumir a decisão de fundar uma nova disciplina, diante de seu encontro inesperado com o objeto pro- blemático da histeria.

Ao abordar a questão do ato de nascimento da psicanálise, Lacan se pergun- ta se o campo no qual ela se organiza e reina já existia antes. A� nal, o inconsciente já não fazia sentir seus efeitos antes do ato de nascimento da psicanálise? Na verda- de, Lacan demonstra que a questão está mal colocada. O problema não é saber se existia uma dada realidade anterior ao conhecimento, mas sim saber se aquilo que foi descoberto já estava lá ou não. E, mais ainda, se já estava lá, “quem o sabia?”500. Para esclarecer a questão, Lacan se propõe a comentar algumas descobertas em outros campos do saber. A princípio, ele recorre à álgebra e a Cantor e se pergunta,

496 Cf. o resumo de O seminário XV de LACAN. O ato psicanalítico. In: Outros escritos, p. 376.

497 Apesar de aparecer numa certa continuidade com as discussões apresentadas pelo Seminário do ato

psicanalítico, a expressão só é apresentada no Seminário seguinte: De um Outro ao outro, na seção do dia 26 de fevereiro de 1969. Não publicado.

498 Cf., especialmente, a seção de 15 de novembro de 1967 de O seminário XV: o ato psicanalítico. Não

publicado.

499 LACAN. Nota italiana. In: Outros escritos, p. 311.

do mesmo modo, se o campo da álgebra existia antes da invenção propriamente dita e antes que se soubesse manipular as cifras. Entretanto, ao comentar a des- coberta de Cantor, Lacan lembra que a dimensão do número trans� nito não é ab- solutamente redutível àquela da in� nidade da sequência dos números inteiros.501

Lacan recorre ao exemplo de Cantor mais de uma vez e em todas as refe- rências a ele aparece sempre o comentário sobre um saber inédito, sobre um saber que não estava “já lá”. Numa passagem de “O engano do sujeito suposto saber”, de dezembro de 1967, Lacan volta a falar desse tipo de saber que só se libera no engano e se pergunta se não é verdade que a descoberta de Cantor só foi possível no momento em que ele “tropeçou” no número trans� nito ao manipular diagonal- mente os decimais.502 Porge esclarece o comentário de Lacan ao nos remeter a um outro fato biográ� co curioso de Cantor. Antes mesmo da descoberta do número trans� nito, o matemático havia trabalhado no que chamou de a “potência do contí- nuo”, chegando, em 1877, a um resultado sobre a potência dos números reais intei- ramente oposto àquele que havia se dedicado a demonstrar durante vários anos. Diante do inusitado de sua descoberta, Cantor escreve a seu amigo Dedekind: “En- quanto não me teríeis aprovado, eu não posso senão dizer: vejo, mas não creio nisso”503. O fato demonstraria a vacilação de Cantor diante da necessidade de assu- mir, em seu nome, uma descoberta, em que parecia lhe faltar o apoio simbólico. O saber construído, nesse momento, não está previamente garantido por nenhuma autoridade, por nenhum Outro autor. É a isso que se refere Lacan quando se per- gunta, no Seminário do ato, se já estava lá, “quem o sabia?”504 Ao retomar o mesmo argumento no seminário seguinte, ele ainda acrescentaria: “a questão é esta: esse saber em progresso está em qualquer lugar já lá? É a questão que coloquei sobre os termos do sujeito suposto saber”505 (grifo nosso).

Outra referência ao saber inédito aparece no � nal de O Seminário XV, no mo- mento em que Lacan comenta o que ocorreu com Lavoisier no dia em que decidiu que devia submeter suas pequenas manipulações de química ao procedimento de pesar antes e depois de todas as experiências. Foi um ato decisivo. O que ocorreu depois foi a química propriamente dita. Mas, antes, “não havia nem traço disso”506. É dentro dessa mesma perspectiva que a fala de Lacan, em O seminário XVI: de um

Outro ao outro, sobre a novidade do “acontecimento Freud” no plano ético, pode

501 Cf. a seção de 15 de novembro de 1967 de O seminário XV: o ato psicanalítico. Não publicado. 502 Cf. LACAN. O engano do sujeito suposto saber. In: Outros escritos, p. 337.

503 A passagem encontra-se numa carta de 29 de junho de 1877 da “Correspondência Cantor-Dedekind”

citada por PORGE. Os nomes do pai em Jacques Lacan: pontuações e problemáticas, p. 217 – 218.

504 Cf. a seção de 15 de novembro de 1967 de O seminário XV: o ato psicanalítico. Não publicado. 505 Cf. a seção de 30 de abril de 1969 de O seminário XVI: de um Outro ao outro. Não publicado. 506 Cf. a seção de 27 de março de 1968 de O seminário XV: o ato psicanalítico. Não publicado.

lançar luz, retroativamente, sobre a tese já anunciada a respeito do estatuto ético do inconsciente em O seminário XI.507

Segundo Lacan, o “acontecimento Freud” não seria outro que a descober- ta do inconsciente e o modo como essa descoberta afetou de forma radicalmente diferente tudo o que havia sido feito até então sob o nome do prazer.508 Para en- tender essa a� rmação, devemos observar, inicialmente, que a descoberta de Freud possui tanto o aspecto acidental de um “tropeço” característico de um aconteci- mento como o caráter engajado de um ato. É a isso que Lacan já se referia ao a� r- mar que

o estatuto do inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no plano ôntico, é ético. Freud, em sua sede de verdade, diz – O que quer que seja, é preciso

chegar lá – porque, em alguma parte, esse inconsciente se mostra. E isto ele

diz dentro de sua experiência daquilo que era para o médico, até então, a rea- lidade mais recusada, mais coberta, mais contida, mais rejeitada, a da histeria, no que ela é – de algum modo, de origem – marcada pelo signo do engano.509

O médico Freud se depara com algo problemático, com aquilo que repre- senta a realidade mais recusada até então pelos seus contemporâneos. E decide sustentar por conta própria uma prática e um discurso para lidar com a histeria, que implicava um distanciamento de sua formação em medicina. Há um engaja- mento no seu ato de sustentar um discurso impossível. Daí a conclusão de Lacan sobre um certo imperativo ético, segundo o qual: “o que quer que seja, é preciso chegar lá.” Finalmente, ao manter-se � el ao postulado da existência do inconscien- te, o ato de Freud produz efeitos.

Quanto ao comentário sobre o modo como sua descoberta afetou o que já havia sido feito sob o princípio do prazer, devemos observar que a prática de Freud, além de aceitar uma “realidade” problemática, implicava também lidar di- retamente com um princípio para a ação situado além do prazer. Em resumo, a descoberta de Freud representou a aceitação de um real de estatuto aporético e uma estratégia para lidar com a atuação do gozo.

A realidade problemática que aparecia sobre o signo do engano (méprise), portanto, do que é mal apreendido, exigia, do mesmo modo, uma estratégia para lidar com ela. Isso é fundamental, pois, para Lacan, o inconsciente só se dá a conhe- cer de viés. Trata-se de um saber que só se revela no momento em que deixamos de ter a pretensão de dominá-lo. No Seminário do ato, Lacan já havia mencionado a di� culdade de se “agarrar” conceitualmente o objeto de estudo da psicanálise, ao comentar a diferença desse tipo de saber em relação ao saber suposto de uma con-

507 Cf. LACAN. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 37. 508 Cf. a seção de 26 de fevereiro de 1969 de O seminário XVI: de um Outro ao outro. Não publicado. 509 LACAN. O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 37.

dição previamente constituída.510 Mais tarde, em O seminário XXIV: L’insu que sait de

l’une-bévue s’aile à mourre, ele volta a abordar a questão ao observar que, apesar de

entender que a psicanálise revele algum tipo de saber, este não se confundiria com a apreensão conceitual do inconsciente, como a � loso� a faria com seus objetos. O saber alcançável numa psicanálise seria apenas o “savoir y faire, o ‘saber fazer com’, que é outra coisa que saber o que fazer. Isso signi� ca saber “se virar” (se débrouiller). Mas esse “fazer com” indica que não se apreende realmente a coisa, em suma, em conceito”511.

De imediato, a estratégia necessária ao “savoir y faire” exige um posiciona- mento engajado para que o problema seja reconhecido. Lacan comenta, numa passagem de O seminário XIV: a lógica da fantasia, que Freud, querendo articular a pulsão, foi levado a sustentar um discurso que ultrapassava a própria estrutura gramatical.512 A� nal, o aspecto pulsional identi� cado por ele não se apresentava adequado ao discurso, podendo apenas ser reconhecido como um certo resíduo na linguagem. Freud se manteve � el à sua descoberta, acreditando que sua técnica de “talking cure” poderia levar o sujeito a reencontrar, por meio de seu sintoma, a verda- de do que representa o desejo em sua história. Mas foi sua insistência em sustentar essa verdade contra a percepção imediata da realidade que produziu efeitos.

Finalmente, é preciso reconhecer que a decisão e o engajamento do ato éti- co de Freud foram sem dúvida essenciais no nascimento da psicanálise. Entretanto, esse ato não garante sua sobrevivência. Como observa Lacan, devemos nos lem- brar da insistência de Freud em recomendar aos psicanalistas que abordem cada novo caso como se não tivessem aprendido coisa alguma.513 Mais uma vez, se isso vale para o ato clínico do psicanalista, vale também para o ato de sustentação da própria psicanálise. Portanto, a cada nova circunstância a psicanálise se depara com novos impasses e um novo posicionamento é exigido para que se possa “saber fazer com” ele. Em outras palavras, ato deve ser reposto a cada momento. Desse modo, há sempre um novo começo e um novo engajamento. Ao longo de um sécu- lo de existência, a psicanálise veio a se deparar com novos impasses como aqueles que observamos nos capítulos anteriores a propósito da busca idealizada de um desejo puri� cado das condições imaginárias e ilusórias. Entretanto, se o próprio Lacan mudou de ideia em relação à sua percepção inicial de que a tarefa do trata-

510 Cf. a seção de 28 de fevereiro de 1968 d’ O seminário XV: o ato psicanalítico. Não publicado. 511 “Savoir y faire, c’est autre chose que de savoir faire. Ça veut dire se débrouiller. Mais cet “y faire” indique

qu’on ne prend pas vraiment la chose, en somme, en concept.” LACAN. Le Seminare, Livre XXIV: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Leçon 11 janvier 1977 (inédit).

512 Cf. a seção de 18 de janeiro de 1967 d’ O seminário XIV: a lógica da fantasia. Não publicado.

513 Cf. LACAN. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos, p.

mento analítico consistia exatamente no resgate da verdade do desejo, foi por ter se defrontado com os impasses do desejo puro. Contudo, como observaremos na próxima seção, esse impasse não foi uma exclusividade da psicanálise no século XX.

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 166-170)