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O trágico é a solução adequada?

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 121-126)

Capítulo 2 – Outros modos de apresentação do real: a coisa freudiana e

2.7 O trágico é a solução adequada?

Depois de conhecer as linhas gerais da estratégia argumentativa de Lacan, podemos proceder a um novo exame crítico das implicações ético-� losó� cas de seu comentário. Como dizíamos no início, a exaltação do heroísmo de Antígona nos parece um problema repleto de consequências, e devemos observar que Bolla- ck não é o único a criticá-la. Outros importantes comentadores da própria � loso� a reconheceram, como um traço característico das leituras � losó� cas modernas, as interpretações especulativas e a transformação do personagem trágico em um he- rói da � loso� a. Autores como Philippe Lacoue-Labarthe e Jacques Taminiaux reú- nem dados importantes para de� nir a teoria � losó� ca do trágico ou, ainda, para ca- racterizar o que poderíamos chamar de o trágico moderno. Ambos agrupam uma série de autores da � loso� a que teriam estabelecido uma apropriação metafísica da tragédia. Taminiaux, por exemplo, a� rma que as leituras de Schiller a Heidegger, incluindo quase todos os � lósofos modernos, e até Nietzsche (com a única exceção de Hölderlin), teriam caído nesse modelo de interpretação.328 Já Lacoue-Labarthe, que tem uma acurada percepção do projeto ético lacaniano e que também é capaz de nos informar sobre as consequências � losó� cas do comentário sobre a tragédia, inclui Lacan entre esses autores.329

Lacoue-Labarthe demonstra ter uma compreensão precisa das contradi-

327 LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 339.

328 Em Le teâtre des philosóphes, a tese de Taminiaux é a de que toda essa tradição havia insistido numa

apropriação ontológica da tragédia, reduzindo a importância da práxis à fabricação ou à produção de uma obra (poiesis). Em outras palavras, a tragédia teria sido transformada em um “documento ontológi- co” ou numa espécie de “teatro de ideias”. A única exceção, segundo Taminiaux, pudica e secreta, seria a da interpretação de Hölderlin. Cf. TAMINIAUX. Le theâtre des philosophes, p. 6.

329 É o que diz, por exemplo, na seguinte passagem: “Schelling acabava de inaugurar a tradição, que será

forte e tenaz, da heroização � losó� ca, do Édipo ou de Antígona (Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Heide- gger, Lacan, e até – em negativo – Deleuze)”. Em seguida, Lacoue-Labarthe, assim como fez Taminiaux, excetuaria Hölderlin dessa tradição. (Cf. LACOUE-LABARTHE. O Teatro de Hölderlin, p. 10.).

ções apresentadas pelo projeto ético lacaniano ao longo de seu comentário de Antígona. Se, por um lado, seu comentário � gura entre as interpretações especula- tivas e metafísicas de Antígona, por outro, seu projeto ético, isto é, sua investigação do que seria uma ética a ser extraída das proposições psicanalíticas de Freud, tenta exatamente pensar o problema da responsabilidade em meio a um universo de de- samparo metafísico. Em seu comentário “De l’éthique: à propos d’Antigone”, Lacou- e-Labarthe reconhece a importância desse aspecto do projeto ético de Lacan.330

Na passagem em que discute a questão da Áte de Antígona, por exemplo, Lacan sugere que a personagem, ao ir ao encontro de sua Áte e enterrar o irmão, cumprindo assim o dever para com sua família amaldiçoada, acaba indo além do limite da Áte. Como observamos, ocorreria nesse momento o enraizamento num destino particular. Antígona teria transformado em algo próprio uma herança mal- dita que já se articulava antes dela. Assim procedendo, ela teria feito desse mal um bem. “Um bem que não é de todos”, lembra Lacan.

Lacoue-Labarthe nos mostra, a partir dessa a� rmação, o sentido do projeto lacaniano de retornar ao texto trágico procurando resgatar uma ética anterior à formulação � losó� ca do bem. Na verdade, Lacan havia sugerido, numa outra pas- sagem, que, pelas consequências funestas da atitude de Creonte, o espetáculo trá- gico nos mostraria uma primeira objeção avant la lettre à ética do bem, ou seja, ele seria uma demonstração avant la lettre de como “o bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas consequências fatais nos adverte a tragédia”.331 Lacoue-Labarthe conclui, dessas duas indicações, que o limite a ser transposto seria aquele da “barreira guardada pela estrutura do mundo do bem”, e que a inspiração lacaniana deste comentário seria muito semelhante àquela de Er- nest Jünger, que, num debate com Heidegger a propósito da herança de Nietzsche, perguntava-se pela possibilidade de “transpor a linha do niilismo”332.

Lacoue-Labarthe nos ensinaria ainda a reconhecer no projeto ético de La- can uma qualidade arqui-ética, algo que também se encontra no discurso de Hei- degger em Carta sobre o humanismo.333 A arquiética seria anterior a uma formu-

330 LACOUE-LABARTHE. De l’éthique: à propos d’Antigone. In: Lacan avec les philosophes, p.21–36. 331 LACAN O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 314.

332 Segundo Lacoue-Labarthe, “trata-se, nós sabemos, disso que se passa no mundo, hoje. Além do mal-es-

tar, que descobriria Freud, isso quer dizer que o mundo do bem foi revelado, historicamente, como o mun- do do mal – e do mal radical – mas também do assassinato ao in� nito sob o reino da política da felicidade (já que a moral do bem, a ser preservada, só engendra uma política.). (Cf. LACOUE-LABARTHE. De l’éthique: à propos d’Antigone, p. 24.). Sobre o debate entre Heidegger e Jünger acima referido, cf. ainda: JÜNGER. Sobre la línea; HEIDEGGER. Hacia la pergunta del ser; ambos. In: HEIDEGGER; JÜNGER Acerca del nihilismo.

333 Lacoue-Labarthe se refere provavelmente à seguinte a� rmação de Heidegger: “As tragédias de Só-

focles ocultam – permita-se-me uma tal comparação –, em seu dizer, o ethos, de modo mais originário que as preleções de Aristóteles sobre a ‘Ética’”. (Cf. HEIDEGGER. Sobre o humanismo. In: Heidegger (Os Pensadores), p. 170.

lação do fechamento (Schranke) metafísico da ética do bem; seria, portanto, uma ética que não sabe o que é o bem.334

Contudo, Lacoue-Labarthe chama a atenção para o fato de que esta quali- dade arquiética, capaz de vencer a experiência do mal-estar, exigindo a assunção de um destino singular, só se tornaria viável a partir da contestação e desconstru- ção da ética da exemplaridade. O problema é que a fascinação que Antígona exerce sobre Lacan acaba levando-o a transformá-la numa heroína exemplar. Lacan, no exemplo de Antígona, toma sua atitude como a atitude de alguém que não abre mão daquilo que o singulariza em sua Áte familiar. Claro está que Antígona seria aquela que, em vez de permanecer no limite da Áte e vivê-la como uma maldição familiar, ela a transpõe e encontra a Coisa originária de seu desejo. Sendo assim, apesar de todo seu esforço em demonstrar uma possível saída para o desamparo metafísico, ao exaltar o heroísmo de Antígona, Lacan talvez tenha voltado a esta- belecer, contra sua vontade, uma solução metafísica.335

De fato, no momento em que começa a extrair de seu comentário a pro- metida “dimensão trágica da experiência psicanalítica”, Lacan chega a sugerir que aquilo que se pode observar na peça seria análogo ao � nal de análise. Obviamente, essa associação entre a teoria psicanalítica do desejo e o enredo trágico com solu- ções heroicas se mostraria problemática pela proximidade de seu desfecho mortal. Numa passagem bastante polêmica do Seminário VII, Lacan a� rma que “Antígona leva até o limite a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro e sim- ples desejo de morte como tal. Esse desejo, ela o encarna”336.

Não será difícil compreender tal a� rmação se lembrarmos que Lacan atribui todo fascínio da beleza de Antígona à sua claridade ofuscante. Indo ao encontro de sua morte, ela nos apresenta a visada do desejo. A beleza de um brilho ofuscante surge da imagem depurada de uma paixão repulsiva. Antígona não se detém dian- te dos apelos de todos os seus, nem diante das ofertas de bens prazerosos, das núpcias, das riquezas, do conforto etc., demonstrando a irredutibilidade de seu de-

334 Cf. LACOUE-LABARTHE. De l’éthique: à propos d’Antigone. In: Lacan avec les philosophes, p. 24. Sobre a

qualidade arquiética da ética da psicanálise e sua aproximação ao discurso de Heidegger, ver também LA- COUE-LABARTHE. A coragem da poesia. In: A imitação dos modernos: ensaios sobre arte e � loso� a, p. 297.

335 No projeto teórico de Lacoue-Labarthe, a arquiética é, mais exatamente, encarregada de contestar e

desconstruir a ética mimética do exemplo. Tal projeto envolve a desconstrução da apreensão platônica da mímesis e uma percepção de que uma certa apropriação especulativa da arte tem efeitos ético-po- líticos ruinosos. É interessante observar, ainda, que Lacoue-Labarthe atribui a recusa de Heidegger em aceitar a pretensão de Jünger de ter ultrapassado a linha do niilismo à incapacidade de Jünger de se livrar de conceitos forjados pelo discurso metafísico do Ocidente. À medida que Jünger empregava, em suas análises estéticas, conceitos como o de Figura (Gestalt), derivado do discurso eidético (do Éidos platônico), ele ainda permanecia niilista, mesmo sem o saber. (Cf. LACOUE-LABARTHE. Tipogra� a. In: A imitação dos modernos: ensaios sobre arte e � loso� a, p. 58 –63).

sejo singular. Daí Lacan concluir que ela nos apresenta esse desejo puro, um desejo que não se detém diante de nenhum bem.337

Com o tempo, percebeu-se que toda essa última articulação tem graves conse- quências e que talvez precisasse ser revista. Ao elogiar o desejo de Antígona chaman- do-o de puro desejo de morte, Lacan tê-lo-ia transformado em um desejo idealizado, o que seria desastroso, podendo até ser confundido com uma “apologia do suicídio”338. Embora Lacan tenha sido mal interpretado, a associação entre o desejo puro, a ser encontrado no � nal da análise, e o limite mortal cumpre novamente o papel de demonstrar a importância do enfrentamento de nossa incontornável condição de desamparo. Como nos mostra, numa segunda passagem, ao � nal de seu Semi-

nário VII, seu objetivo teria sido mostrar que “a função do desejo deve permanecer

numa relação fundamental com a morte”. Sugere, em seguida, numa frase interro- gativa, que “o término da análise, o verdadeiro, (...) não deve confrontar aquele que a ela (a análise) submeteu a realidade da condição humana?” para disso concluir:

É propriamente isso o que Freud, falando de angústia, designou como o fundo onde se produz seu sinal, ou seja, o Hil� osigkeit, a desolação, onde o homem, nessa relação consigo mesmo que é sua própria morte, não deve esperar a ajuda de ninguém.339

Contudo, o próprio Lacan seria levado a rever essa sua posição. O elogio ao desejo puri� cado de Antígona e a insistência em relação ao conceito de Coisa

337 Uma outra consequência pode ainda ser extraída da relação entre o desejo puro e esta zona limite

mortal. Se lembrarmos que a visada do desejo se dirige à Coisa freudiana, concluiremos que Lacan não faz mais que extrair daí consequências necessárias de seu retorno a Freud. Sabemos que a Coisa é o que produz o desejo. Mas, se a Coisa representa algo incomparável para sempre perdido e eternamente buscado pelos objetos de desejo, e se, � nalmente, esse processo do desejo é regido pelo princípio do prazer, a descoberta freudiana tardia de algo além do princípio do prazer, de um princípio ainda mais radical que busca “restaurar um estado anterior de coisas” (Cf. FREUD. Além do princípio do prazer. In: Edição standard. v. XVIII. p. 54), tal descoberta, exatamente, faz desse prazer levado às últimas conse- quências algo que se confunde com a própria pulsão de morte. Em última análise, a hipótese freudiana do além do princípio do prazer poderia ser observada no texto de Antígona. Ela estaria con� rmada exatamente no momento do desejo tornado visível, momento de aproximação do campo da Coisa, que é indicado ou tangenciado, mas não transposto, pelo fenômeno estético da beleza, que corresponde na peça àquele momento em que Antígona se encaminha para sua tumba.

338 Patrick Guyomard dedica um livro a esses mal-entendidos. Cf. GUYOMARD. O gozo do trágico: An-

tígona, Lacan e o desejo do analista.

339 LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 364. Devemos considerar que essa passagem,

ao contrário do que se poderia supor, não condena o homem a uma paralisia resignada diante de sua condição mortal, mas, antes, considera necessária a revelação de sua condição para que este possa abandonar � nalmente qualquer expectativa enganadora de ajuda e “ir à luta”. Portanto, apesar dessa passagem ter podido, de fato, se prestar a uma associação equívoca entre a ultrapassagem do limite da vida pelo desejo puro de Antígona, como “puro e simples desejo de morte”, e a função resolutiva do desejo “numa relação fundamental com a morte”, há de se dizer que o comentário de Lacan sobre a transposição do limite, como bem observou Lacoue-Labarthe, visa à transposição da apatia niilista. Cf. LACOUE-LABARTHE. De l’éthique: à propos d’Antigone. In: Lacan avec les philosophes. p. 23.

demonstravam que, naquele momento, Lacan acreditava que o real só poderia ser atingido a partir de uma completa depuração do imaginário. Sendo assim, a única forma de gozo seria aquela atingida por meio da transgressão.

Mas, a partir de O seminário XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanáli-

se [1964], Lacan opera, pouco a pouco, uma tomada de distância da ética do desejo

em direção à experiência da pulsão. Ele alerta para o fato de que se mantivermos a pureza até o � m podemos ser levados a algo desastroso como um sacrifício a um Deus obscuro.340 Disso, concluiria que “a Lei moral, examinada de perto, não é outra coisa senão o desejo em estado puro” e que “o desejo do analista não é um desejo puro”341. Lacan escreveria, ainda no mesmo ano, seu artigo “Kant com Sade” (1964) para mostrar que a apatia da pureza moral abre espaço para a per- versão. Essas constatações poderiam ser entendidas, em última instância, como as principais causas que levaram Lacan a abandonar a questão da Coisa e a teoria do desejo puro como horizonte � nal da ética. Lacan passa então a adotar estratégias menos extremistas para abordar o real. No próximo capítulo, veremos como esse movimento foi acompanhado de um afastamento não só da matriz quasi transcen- dental, na qual sustentava suas elaborações sobre o ato transgressor de Antígona, mas também das referências a Heidegger.

340 Cf. LACAN. O seminário, Livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 259. Ver ainda o

comentário de A ciência e a verdade, em que Lacan demonstra, a exemplo da relação dialética entre o desejo do sujeito e o desejo do Outro, como o desejo do religioso opera em relação a Deus: “o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício”. LACAN. A ciência e a verdade. In: Escritos, p. 887.

Uma ética para o tempo da

morte de Deus?

Vimos, no capítulo anterior, que o comentário lacaniano sobre a tragédia, além de incorrer numa série de erros de interpretação em relação à crítica especia- lizada dos helenistas, apresenta uma perspectiva metafísica de exaltação heroica da personagem de Antígona altamente problemática. O comentário sobre o desejo tornado visível e a transposição dos limites da vida não só estava incorreto, no que diz respeito à interpretação da obra de Sófocles, como também se revelou inapro- priado como possível horizonte a ser buscado por uma ética. Contudo, observamos também que Lacan não é um caso isolado de interpretações especulativas quan- do comparado ao conjunto das interpretações da tragédia presente na história da � loso� a moderna. Talvez seja o caso de dizer ainda, como sugere Taminiaux, que até mesmo os comentários de Platão e Aristóteles são orientados por objetivos te- óricos próprios ligados a seus respectivos sistemas � losó� cos e, portanto, também distanciados do “homem trágico.”342 Sendo assim, não é o caso de defender a lei- tura especulativa de Lacan, e com ela também a da referida tradição � losó� ca, do distanciamento da “materialidade” do texto sofocliano, ou mesmo das acusações de impertinência sintático-semântica e � lológica. Gostaríamos, antes, de propor

342 Cf. TAMINIAUX. Le théâtre des philosóphes, p. 58.

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