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As duas mortes, o himeros enargès e o brilho de Antígona

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 116-121)

Capítulo 2 – Outros modos de apresentação do real: a coisa freudiana e

2.6 As duas mortes, o himeros enargès e o brilho de Antígona

Os heróis sofoclianos, segundo Lacan, frequentemente aparecem numa zona limite entre a vida e a morte.313 No caso de Antígona, especialmente, poderí- amos perceber que todo o drama é desenvolvido entre duas mortes. Para demons- trá-lo, Lacan nos remete à passagem em que Antígona diz a Ismene que sua alma já morreu (versos 559 – 560), logo após o primeiro embate com Creonte. Lacan ob- serva que a morte de que ela fala deve ser algo diferente da morte natural. Tratar- se-ia do que poderíamos chamar de “segunda morte”. Esse termo bíblico, extraído de algumas passagens do Novo Testamento, refere-se à morte da alma, destinada àqueles que foram condenados ao fogo do inferno após a morte natural (primeira morte) e a quem foi negada a ressurreição no grande Tribunal. Há uma referência cruzada também em relação à fantasia sadiana, numa passagem em que Lacan cita a exigência de Sade de se arrancar uma segunda vida da vítima após seu assassina- to para que se pudesse impedir a regeneração resultante do enterro do cadáver. 314 Percebemos que esse tema está ligado à conhecida e bastante comen- tada prática ritual de enterrar os mortos para que estes possam renascer para a

313 LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 330. 314 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 258.

vida eterna.315 A segunda morte signi� caria, segundo Lacan, o aniquilamento de tudo o que constitui o sujeito. Tal seria o resultado do édito de Creonte se fosse cumprido: deixado sem enterro, Polinices seria enviado a uma segunda morte, ou seja, sem o enterro não haveria mais nada que o singularizasse. Seu ser se resumiria à carne putrefata jogada aos animais. Daí Lacan dizer que Antígona está colocada entre duas mortes. Há inicialmente a morte do irmão e há a segunda morte. E ela recusa a segunda morte ao preço de sua própria vida. Polinices não é um cão, inde- pendentemente do que fez, “aquele que pode ser situado por um nome deve ser preservado pelo ato dos funerais”316.

Se Antígona se recusa a essa destruição, daquilo que singulariza seu irmão, ela não o faz só por ele, mas também por si. O cadáver encarna para ela uma causa que também a singulariza, por isso Lacan diz que o cadáver se transforma nesse objeto causa de seu desejo. Sendo assim, a segunda morte in� igida a seu irmão é também uma segunda morte in� igida a ela mesma, ou seja, uma morte de sua alma, uma morte em vida.317 Segundo Lacan, Antígona faz “o sacrifício de seu ser para a manutenção desse ser essencial que é a Áte familiar – motivo, eixo verdadei- ro, em torno do qual gira toda essa tragédia. Antígona perpetua, eterniza, imorta- liza essa Áte”318.

Como observamos, Lacan, no exemplo de Antígona, toma sua atitude como a atitude de alguém que não abre mão daquilo que o singulariza em sua Áte fami- liar. Em vez de permanecer no limite da Áte e vivê-la como uma maldição familiar,

Antígona o transpõe e encontra a Coisa originária de seu desejo. Essa experiência,

como dizíamos, corresponde àquela do ex nihilo pela qual o desejo se forjou. Em última análise, Antígona ilustra para Lacan a possibilidade de o sujeito transpor a barreira do mal-estar que lhe é oferecido em direção a uma experiência criadora do desejo (ou mesmo criacionista).

Percebemos aqui, mais uma vez, a relação existente entre a Coisa e o mode- lo do criacionismo cristão, que cria a partir do nada. A Coisa, pensada como a causa do desejo, põe em ação o poder aniquilador da pulsão de morte na dissolução do universo simbólico, antes que algo que represente o desejo possa ser criado. Esse processo promove a queda das ilusões e a puri� cação do imaginário. É por isso que

315 Hegel, por exemplo, nos fala desse ritual pela lógica especulativa da “negação da negação”. Uma vez

que a morte produz uma primeira negação da vida, o enterro do irmão representaria em Antígona a vitória do espírito sobre a natureza, capaz de negar aquilo que nega. Na Fenomenologia do Espírito a mesma lógica é empregada para caracterizar a ressurreição de Cristo.

316 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 338. Ver também o destaque que Lacoue-La-

barthe dá a essa frase no comentário à ética de Lacan formulado em: De l’éthique: à propos d’Antigone. In: Lacan avec les philosophes, p. 21 et seq.

317 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 339. 318 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 342.

buscar a Coisa originária do desejo signi� ca “não ceder de seu desejo”319, não trocar sua singularidade pela satisfação dos bens socialmente valorizados do ponto de vista utilitário.

A propósito do aspecto político que representa esse posicionamento do de- sejo de Antígona, Zizek acrescenta que ela assume publicamente essa posição-limite do próprio gesto instituidor da ordem simbólica, a posição impossível e indefensável do nível zero da simbolização. Por essa razão, ela defende a pulsão de morte, pois, apesar de estar ainda viva, ela já está simbolicamente morta, excluída das coorde- nadas sociossimbólicas. Defensora da chegada ao limite, da passagem ao exterior da ordem, “Antígona solapa a ordem simbólica existente não apenas de seu exterior radical, mas do ponto de vista utópico de buscar sua rearticulação radical”320.

A singularidade do desejo de Antígona se revela na maneira pela qual ela se guia por uma causa única, ligada à � delidade ao nome de sua família. Lacan observa que é por isso que, quando se explica a Creonte, diz: “é assim porque é assim.” Sua causa é única, Antígona não evoca nenhum outro direito, é o que é, e pronto321. Na verdade, quando Creonte pergunta a ela por que ousou infringir sua lei, ela responde:

Porque não foi Zeus quem a ditou, 450

nem foi a que vive com os deuses subterrâneos – a Justiça (Dike) – quem aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força

que a um mortal permita violar aquelas

não-escritas e intangíveis leis dos deuses. 455

Lacan propõe que a tradução seja “pois de maneira alguma foi Zeus quem proclamou essas coisas para mim”; e gostaria que lêssemos “não foi Zeus quem me ordenou fazer isso”, no lugar de “não é Zeus quem te dá o direito de fazer isso” para chamar atenção para o fato de que ela se dessolidariza. Ainda assim, Lacan reco- nhece que ela se orienta pelas leis não escritas, mas lembra também que

Não se tratam mais de leis (nomos), mas de uma certa legalidade conseqüen- te das leis ágraphas – traduzido sempre por não-escritas, porque isso efeti- vamente quer dizer isso – dos deuses. Trata-se da evocação do que é, como efeito, da ordem da lei, mas que não está desenvolvido em nenhuma cadeia signi� cante, em nada.322

319 Não incorrendo, portanto, numa falta em relação ao principal critério ético da psicanálise formulado

por Lacan ao observar que “a única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo”. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 385.

320 ZIZEK. Bem-vindo ao deserto do real!, p. 119.

321 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 336. 322 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 336 – 337.

Nessa passagem, Lacan pretende destacar algo que é da ordem da lei, mas que não está escrito em lugar algum. Seu comentário ilustra a maneira como po- demos conceber a relação do desejo inconsciente com a lei da articulação signi� - cante à qual o sujeito está submetido. Há algo de singular no desejo inconsciente que não pode ser nomeado. Essa singularidade não pode ser recoberta pela do- minação absoluta desse Outro como universo simbólico. A própria linguagem não pode recobri-la. As ordens expressas também não. É assim que Lacan entende a obediência de Antígona à lei ética não escrita: ela obedece a algo que não pode ser nomeado e isso a salva da dominação absoluta do Outro, isso a salva de uma submissão total.

Vimos, portanto, que Antígona recusa a segunda morte ao preço de sua vi- da.323 Lacan a� rma que a peça se desenrola nesse espaço entre duas mortes e que

Antígona está em relação a esse limite da segunda morte desde o início da peça.

Entretanto, ele assinala que essa relação só se de� ne, tornando seu desejo visível, no momento do suplício, quando Antígona é levada em direção à sua tumba para ser enterrada viva. A expressão “o desejo tornado visível” é a tradução lacaniana da expressão grega himeros enargès que aparece no terceiro canto do coro.

Para Lacan, o momento do desejo tornado visível coincide com o momento de transposição e realização da Áte de Antígona. Coincidiria também com o efeito do belo no desejo como índice de que o sujeito entrou em contato com esse limite da segunda morte.324

A beleza de Antígona resplandece e faz cegar os olhos, há um brilho intenso, uma iluminação violenta, naquela que se dirige a uma ultrapassagem de uma últi- ma barreira antes do horror. Sua beleza cega até mesmo o coro, que já não sabe o que se passa na tumba de Antígona. Diante da imagem fascinante de sua beleza, o coro perde a cabeça, o aspecto tocante da beleza de Antígona paralisa seu julga- mento crítico.325

Quando Antígona entra em contato com esse limite da segunda morte, há uma beleza intensa, porém seu ato se dirige a uma ultrapassagem dessa barreira e, além da beleza, há alguma coisa que não pode ser olhada por muito tempo.326 Tratar- se-ia, segundo Lacan, do ex nihilo, de onde surge o sujeito do desejo, no momento em que a linguagem estabelece a morti� cação de seu ser, e ao qual esse sujeito se vê impelido a voltar, comandado pelo retorno ao inanimado de sua pulsão de morte.

323 Cf. LACAN.O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 342. 324 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 315. 325 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 340.

326 Lacan lembra, a propósito desse efeito de cegamento da beleza intensa, a semelhança desse tema

com a análise de Kant na Crítica do juízo sobre o sublime matemático, que estoura os limites de nossas capacidades de representação e apreensão cognitiva. (Cf. Op. cit, p. 345 – 346).

Em poucas palavras, pode-se dizer que o comentário de Lacan ilustra o efei- to de beleza que acompanha o desejo tornado visível (himeros enargès) e essa de- monstração repousa sobre a interpretação do fascínio que Antígona exerce sobre o coro no momento em que este assinala a maneira como Eros, não vencido no combate com as grandes leis, o teria seduzido (versos 781 – 805).

Bollack também contesta essa interpretação. Na verdade, Antígona se faz objeto de desejo para poder reinar. Seu poder desa� a o poder do governo. An-

tígona se faz objeto do amor de Hemon, � lho de Creonte, desde o início da peça e

encontrará nesse amor a arma de sua vingança contra Creonte, levando seu � lho e sua esposa Eurídice ao suicídio. Daí o comentário sobre o himeros enargès que aparece no terceiro canto do coro. Bollack nos lembra que, de acordo com a com- posição do texto trágico, o comentário do coro só pode se referir a acontecimentos passados. Nesse caso, o coro comenta a disputa entre Hemon e Creonte quando da condenação de Antígona à morte. Hemon reage com violência à determinação do pai, anunciando a catástrofe que se seguiria ao dizer que seu pai acabaria reinando sobre um deserto (verso 739). Apaixonado, Hemon desa� a o próprio pai e o poder da cidade. O comentário do coro que se segue a essa cena representaria, portanto, a vitória de Eros sobre o poder político.

Lacan teria se enganado, por conseguinte, ao sugerir que o himeros enar-

gès fosse um comentário prospectivo do cortejo fúnebre que viria logo adiante.

Segundo Bollack, seu erro teria sido utilizar aí o modelo de interpretação psicana- lítica: sabemos que, na análise, quando alguma passagem se mostra enigmática, espera-se que sua sequência a esclareça. Mas a passagem da peça que parece enig- mática, na verdade, diz respeito ao que teria acontecido anteriormente: o coro diz que Eros compromete o poder e conduz ao delírio. Ele põe em contenda pai e � lho e seu poder passa pelo desejo (himeros). Finalmente, “sem lutar, brinca conosco a divina Afrodite”. “Clara”, traduz Bollack, é “a vitória do desejo no olhar da jovem noiva feita para o leito” (versos 795 – 800).

Como se vê, não se trataria tanto de uma claridade insustentável da heroína levada ao suplício quanto da claridade erótica de Antígona que causa o desejo de Hemon. Bollack sugere, ainda, que Lacan, em seu erro, lança mão de um paradigma de interpretação que combina Eros e Thánatos, ligando esses versos ao suplício que se segue adiante na descrição do cortejo fúnebre.

Parece correto a� rmar, com Bollack, que as conclusões de Lacan indicariam alguma in� uência de Heidegger, pois percebemos que, em sua análise, o momento do desejo tornado visível coincide com aquele em que o sujeito assume seu “ser-para -a-morte”. Na análise de Lacan, a aproximação do objeto causa do desejo seria acom-

panhada pela pulsão destrutiva (pulsão de morte), por essa ultrapassagem dos limi- tes da vida. A entrada de Antígona no campo central do desejo corresponde àquele campo da Coisa ligada à pulsão de morte. Não é à toa que Lacan chegaria a sugerir que aquilo que se pode observar na peça seria análogo ao momento do passe, como � nal de análise, pois aí se produziria a experiência de que “a vida só é abordável, só pode ser vivida e re� etida a partir desse limite em que ela já perdeu a vida, em que ela está para além dela – mas de lá ela pode vê-la, vivê-la sob a forma do que está perdido”327. Ao abordar esse limite, portanto, a análise poderia dar origem ao desejo do analista. O desejo do analista deveria ser, por de� nição, o desejo alcançado no � m de um processo analítico, um desejo já advertido de uma zona central da Coisa.

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 116-121)