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A kátharsis e a beleza trágica

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 109-111)

Capítulo 2 – Outros modos de apresentação do real: a coisa freudiana e

2.4 A kátharsis e a beleza trágica

Antes de apresentarmos a apropriação lacaniana do tema da kátharsis, devemos situar o seu comentário dentro da tradição. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Lacan não faz um uso médico-psicanalítico da kátharsis, atribuindo a ela um sentido meramente terapêutico como função purgatória ou ab-reativa, como havia feito Freud em seus primeiros trabalhos ao lado de Breuer.289 Voltando- se ao texto aristotélico, Lacan se propõe a esclarecer a controvertida passagem do Capítulo VI da Poética, em que Aristóteles de� ne a tragédia como:

representação (mímesis) de uma ação (práxis) de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama), que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a puri� cação (kátharsis) dessas emoções.290

Lacan é sensível a toda controvérsia que recai sobre o tema da Kátharsis. Se não bastasse toda a história dos percalços pelos quais passou o texto da Poética, desde a má conservação dos originais à possível perda de uma segunda parte do manuscrito e até a deformação produzida pelos copistas do século V – e há quem

289 Cf. BREUER e FREUD. Estudos sobre a histeria. In: Edição standard. v. II. p. 46. Nota 1. 290 ARISTÓTELES. Poética. VI, 1449 b 28.

diga que o termo Kátharsis sequer aparece originalmente na Poética291 –, temos que nos haver também com a aparente contradição colocada na exigência de que algo destinado a suscitar emoções desprazerosas como o terror e a piedade possa gerar prazer através do teatro.292

O problema, já revisitado por inúmeros autores desde o Renascimento, é saber como se pode sentir prazer ao suscitar e expurgar ao mesmo tempo os sen- timentos de terror e piedade. Uma saída possível, como nos mostra o comentário dos tradutores franceses da obra de Aristóteles, Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, seria remeter a solução do problema a outras passagens da própria Poética e lem- brar, por exemplo, aquela do Capítulo XIV, em que Aristóteles a� rma que a íntima conexão dos fatos é mais importante que o espetáculo cênico em si. Está dito nessa passagem que o terror e a piedade poderiam ser despertados naquele que ouvir a trama mesmo sem vê-la encenada. Na sequência, Aristóteles diz que o poeta deve despertar o prazer inerente à piedade e ao terror, provocados pela representação (dia mimèseos). Disso se poderia concluir que o terror e a piedade não deveriam ser entendidos como espécies de sensibilidade que contagiam o espectador co- movido, mas antes como produtos da atividade mimética. O prazer que acompa- nha a puri� cação da catarse seria ainda da mesma ordem daquele de que nos fala Aristóteles no Capítulo IV, consequente da reprodução de imagens cuidadosas das coisas, cujo olhar na realidade nos é penoso, a exemplo do que ocorre quando estamos diante da representação de animais ferozes e de cadáveres. Segundo essa visão, haveria lugar para falarmos de uma Kátharsis estética:

a substituição do padecimento pelo prazer repousa sobre uma transforma- ção do olhar promovida pelo trabalho mimético de depuração da forma: do simples olhar das coisas mesmas – penosas à medida que o espetáculo é re- pugnante – passamos a uma contemplação (theôrein) que é acompanhada de intelecção/inteligência, e, portanto, de prazer.293

Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot lembram de algo que também é ob- servado por Lacan, com relação ao fato do termo Kátharsis aparecer isolado no Capítulo IV da Poética, di� cultando uma apreensão mais clara de seu sentido. Há, contudo, uma outra passagem em que o termo aparece na Política de Aristóte- les.294 Ali, Aristóteles nos fala propriamente da Kátharsis musical num sentido mais próximo ao uso médico da purgação, quando se refere ao efeito apaziguador que

291 Como exemplo dessa posição, con� ra a obra do � lólogo e helenista português Antônio Freire: A

catarse em Aristóteles. Braga: Publicações da Faculdade de Filoso� a, 1982.

292 Cf. LACAN. O seminário, livro VII: a ética da psicanálise, p. 297 – 298.

293 Cf. os comentários de DUPONT-ROC e LALLOT nas notas da tradução francesa La Poétique de Aristó-

teles, p. 190.

a música tem sobre afecções de uma parte vulgar do público. O aspecto mais im- portante dessa referência, no entanto, é que Aristóteles, pouco antes dessa mesma passagem, promete esclarecimentos futuros do termo remetendo-nos exatamente à Poética e à Kátharsis trágica.295

Para Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot existe entre essas passagens uma relação de contiguidade, mas não de identidade. O envio à Poética pretenderia de- monstrar como a Kátharsis trágica poderia promover uma depuração maior do que aquela que a Kátharsis musical promovia de forma imediata. A música, por analogia com a tragédia, também produziria um efeito catártico ao representar e depurar os sentimentos, mas o faria de forma menos elaborada. Já o teatro, contando com um público mais re� nado, produziria uma intelecção das formas aterrorizantes e lamentáveis por meio da história dramatizada.

Passando propriamente ao comentário de Lacan, percebemos que sua aná- lise se interessa exatamente pelo efeito de prazer ligado à puri� cação dos senti- mentos de terror e piedade.296 Ele também destaca quão inessencial é em si mesma a encenação do espetáculo para produzir o efeito da tragédia segundo Aristóte- les.297 Segue-se daí não exatamente uma defesa da chamada Kátharsis estética, mas a demonstração da relação entre a ação trágica e a beleza situada numa zona limite mortal. Nesse quadro limite, é a Kátharsis que estabeleceria uma imbricação entre o prazer gerado pela peça e sua relação com o efeito da beleza. O aspecto principal de seu comentário sobre a Kátharsis é, por conseguinte, a demonstração de sua estreita relação com o efeito do belo, e a a� rmação de que o belo, por sua vez, resultaria da relação do herói com o limite de� nível por sua Áte.298

No documento A ÉTICA DESDE LACAN (páginas 109-111)