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O acusado como portador de direitos

Capítulo IV A busca da verdade e a liberdade do acusado

4.1. O acusado como portador de direitos

A postura do poder jurisdicional do Estado, sofre limitações quanto ao poder punitivo e seus procedimentos, diante do indivíduo acusado criminalmente, que é portador de direitos subjetivos indisponíveis, conquistados a partir desses ideais libertários que narramos até então.

Essas limitações de tratamentos tem reflexo direto para esse indivíduo que figura nas páginas do processo penal, o qual é formado por atos que se sucedem, que figuram nesse veículo onde o direito será dito, e onde a “verdade” qual seja, processual, judicial, ou alcançável será sustentada.

Há nesse contexto, a premissa, exaustivamente tratada no discurso dos iluministas, notadamente Beccaria, que mesmo infrator é o indivíduo também participante, deste “pacto social” sujeito de todos esses nobres ideais, corolários de direitos, que paulatinamente temos engajado em nossos ordenamentos. Vejamos:

(...) do espírito antagônico aos ideais mais nobres que a humanidade poderia sonhar no que concerne aos ideais de equilíbrio e razoabilidade, se tornam incabíveis vozes que se ergam

a fim de preconizar os direitos deste ser humano, mesmo infrator e sujeito de condutas condenáveis.158

Karl Engisch159 assevera que:

(...) nos apercebemos da meramente negativa libertação do desprazer quando a perdemos, assim como só aprendemos a apreciar a frescura da juventude, a saúde e a energia para o trabalho quando estas vão gradualmente desaparecendo, também só damos conta da bênção que representa a concessão de direitos quando os imperativos cada vez mais nos limitam a liberdade.

Abordando direitos e as implicações que envolvem a sua efetividade prática Canotilho lança mão do argumento da participação do indivíduo, no processo político. Podemos estender o entendimento, em face da liberdade, no sentido de administrá-la inserindo novas contextualizações, então temos:

(...) que da mesma maneira que os direitos fundamentais são um dos elementos constitutivos do Estado de Direito, também o são de um Estado Democrático, então os direitos fundamentais têm uma função democrática. Destarte todos os cidadãos devem contribuir para o exercício do poder para que seja democrático com participação livre e contribuindo assim para a abertura do processo político, e assim podendo haver a criação de direitos sociais, direitos econômicos e direitos culturais.160

158 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2004,

p.125.

159 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001,

p.43.

Caio Tácito, ainda corroborando na questão, apresenta um modo amplo de entendimento:

Os direitos individuais e coletivos estão enunciados no art. 5º da Constituição Federal em setenta e sete incisos e em dois parágrafos. Em confronto com a Constituição anterior (a de 1967, emendada em 1969), na qual a Declaração de Direitos correspondia a trinta e seus parágrafos, teria havido aparentemente um alargamento de direitos fundamentais. Em verdade, os direitos e liberdades são praticamente os mesmos, com desdobramentos e particularismos que visam a coibir abusos de direito. De outra parte diversas garantias e direitos que tradicionalmente figuram no direito comum passam a ter status constitucional.161

A intervenção penal, a partir de uma conduta que está criminalizada; em face a intolerância do corpo social, ante a lesão a determinado bem jurídico, deve receber a proteção antecipada com medidas punitivas, e na lição de Alice Bianchini, ainda em atos preparatórios do inter criminis se esta lesão imponha risco de se concretizar.162

A tutela penal que será promovida no âmbito do processo penal deve ser invocada quando os outros ramos do direito e outras forças controladoras do Estado forem insuficientes, pois a utilização exacerbada do direito penal provoca efeito contrário, a penalização de qualquer bagatela, não abriga o que modernamente se vislumbra, a ultima ratio do Direito Penal e seu caráter subsidiário.

161 TÁCITO, Caio. Constituições Brasileiras, A Constituição de 1988 “Os direitos Fundamentais, Senado

Federal, Ministério de Ciências e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, Brasília, 1999.

Por outro lado no dizer de Celso Lafer citado por Maria Garcia163 “temos óbices que tolhem os meios adequados para a vida ( pré-requisitos materiais para participar na vida da comunidade, por exemplo, habitação e alimentação)”, incluo outro, a educação, que é responsabilidade do estado em termos do art.205 e ss da CF, o que de certa forma, não explica a criminalidade de uma forma simplista mas confirma o elucidado por Ortega y Gasset “o homem (também) é a sua circunstância”.164 (acréscimo nosso)

Não partilhamos da idéia de um pré-determinismo, da Escola Positivista Criminológica, do final do século XIX, que suplantava as raias da liberdade, fulminando o livre arbítrio induzindo o homem ao crime. Partilhamos do entendimento que por este direito indisponível do homem lhe é facultado a opção de escolha, mas é pertinente que se ressalte que o não cumprimento das tarefas precípuas do Estado faz-se certo a limitação da tutela desses direitos individuais.

Já que estamos no capítulo que trata da liberdade, não podemos deixar de colocar o posicionamento de Luigi Ferrajoli, tratando do cerceamento da liberdade quando aborda da prisão como medida preventiva, antes do julgamento, de modo resoluto pontua:

A admissão da prisão ante iudicium , qualquer que seja o fim que se lhe queira associar, contradiz na raiz o princípio de submissão à

163 Celso Lafer apud GARCIA, Maria Garcia, Desobediência Civil- Direito Fundamental, 2.ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2004, p.38.

jurisdição. Que não consiste na possibilidade de detenção apenas por ordem de um juiz, mas na possibilidade de sê-lo só com base em um julgamento. Além disso, toda prisão sem julgamento ofende o sentimento comum de justiça, sendo entendido como um ato de força de arbítrio. Não há de fato qualquer provimento judicial e mesmo qualquer ato dos poderes públicos que desperte tanto medo e insegurança e solape a confiança no direito quanto o encarceramento de um cidadão, às vezes por anos, sem processo. E é um mísero paralogismo dizer que o cárcere preventivo não contradiz o princípio nulla poena sine iudicio- ou seja a submissão à jurisdição em seu sentido mais lato- pois não se trata de uma pena, mas de outra coisa: medida cautelar, ou processual ou, seja como for, não penal.Com semelhantes trapaças nas formalidades, (...) dissolveu-se- em nosso e em outros ordenamentos- a função de tutela do direito penal e o papel mesmo da pena enquanto medida preventiva exclusiva, alternativa a outras medidas certamente mais efetivas mas não tão garantistas.165

Em corroboração ao posicionamento autor, no que concerne à limitação da liberdade física, relacionada ao uso indiscriminado de algemas, também antes de um julgamento, que é vedado conforme o art. 284 do Código de Processo Penal quando desta se prescinde, pois: “Não será permitido o emprego da força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso” e ainda o artigo 292 do CPP esclarece que somente no caso em que houver resistência à prisão em flagrante ou determinada por autoridade competente,(...) “o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência (...)”.

Conforme Luiz Flávio Borges D”Urso166, temos que nos nortear por essas duas normas, posto que o artigo 199, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) afirma que “o emprego de algemas será disciplinado por Decreto Federal”, o que ainda não ocorreu, passados 20 anos da promulgação dessa lei. Tramita na Câmara um projeto de lei que estabelece casos específicos para o uso de algemas durante o cumprimento de prisão, proibindo sua utilização, quando o réu for primário e com bons antecedentes, não resistente à prisão, ou não se tratar de prisão em flagrante e não empreender fuga.

Na falta da lei específica, sistemicamente encontramos o respaldo necessário, em uma das Declarações Internacionais de Direito, pois sendo o Brasil signatário do pacto de São José da Costa Rica, lá temos previsto: “Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” (Art 5, 2).

Voltando ao veio fulcral deste estudo o encontro da verdade no processo fica prejudicado, não só por falta de lei como no exemplo acima descrito mas convenhamos: a lei não é a única fonte de decisões jurídicas. Na lição de Roxin167, “atualmente, porém, a tarefa da lei não se esgota mais nesta função garantista ” e dessa forma se contrapõe a antiga idéia positivista que hoje já reconhece a influência de valores políticos.

166 D’URSO, Luiz Flávio Borges, “Sobre o uso de algemas ”. Jornal do Advogado, Ano XXXI, n. 299.

outubro de 2005, p.15.

167 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. para o espanhol de Diego Manuel Luzón

Quando escrevi sobre “A função essencial do Direito” observei esse embate entre o legal e o justo, assim temos:

(...) o juízo da legalidade se distingue do juízo da justiça, pois das atrocidades que a humanidade tem vivido, quais sejam (...) na Inquisição, nos campos de concentração, na Inconfidência Mineira, nos terrores da escravidão e na vigência dos regimes totalitários, a despeito da lei posta, refletindo um regime formal e legalista, a injustiça emergiu revestida de terror, sangue e força notável que infestou o propósito maior do Direito estatuído, deixando marcas indeléveis na história.168

Na busca da verdade processual ou da judicial há que se socorrer da dogmática atual, nos moldes do consagrado tridimensionalidade jurídico de Miguel Reale, ou seja a aferição da conduta não pode apenas manter um silogismo com a norma, mas com ênfase a influência de valores e realidade dos fatos devem presenciar com equivalência essa dinâmica.

No entanto, afirma Gustavo Junqueira:

No Brasil pode ser percebida uma visão avalorativa do Direito, influenciada pela escola técnico-jurídica de Rocco,(...) divorciando-se da filosofia e da política: (...) sempre è vero que se deve tenere distinta

l’indagine propriamente e strettamente giuridica de quella filosófica e politica, se si vuol evitare uma periculosa intrusione ed inframettenza di elementi filosofici e politici nella lógica limpidezza della ricerca.169

168 FERREIRA, Rosana Miranda. A função essencial do Direito. Revista Prática Jurídica. Brasília: Ed.

Consulex, ano IV, n. 34, janeiro de 2005, p.12.

Continua o autor a discorrer que não é coincidência que a idéia toma força com as barbáries do holocausto, entretanto, com a guerra o homem toma novamente ciência de sua importância e busca exigir respeito por sua esfera mínima de direitos. Há de se ressaltar que vigora muito em nosso País a cultura da lei posta como a solução completa de todo conflito apresentado, numa leitura pouco contextualizada da escola técnico-jurídica, ou relegando à extinção a máxima plausível ao contexto“ a letra mata mas o espírito vivifica”.170

Realçando apenas esse tratamento técnico da questão criminal deságua-se na aplicação de um sistema inquisitório, visto conforme Ferri como uma “forma superior de ordenamento processual”171 , pois reconhecia na visão de Garofalo “verdadeira essência do processo, isto é uma indagação crítica e imparcial da verdade”.172

Florian173, um dos mais notáveis expoentes desse pensamento onde a pesquisa da verdade efetiva, material, histórica constituía o escopo específico

do processo subordinado ao escopo geral da defesa social contra a

delinqüência, se expressa:

(...) alto interesse público, que inspira e move o processo penal, coloca uma exigência à qual o mesmo deve prover o mais eficientemente

170 Bíblia Sagrada , , II Coríntios 3:6 Trad. João Ferreira de Almeida. rev.atual. Brasília: Sociedade Bíblica

do Brasil, 1969.

171 Ferri apud MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio. Direito à prova no processo penal. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997, p. 34

172 Garofalo apud MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio, ob.cit. p. 34. 173 Florian apud MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio, ob.cit. p. 34.

possível: a realidade dos acontecimentos (...) deve aparecer inteira, genuína, sincera, sem manipulações, nem restrições.

A busca obsessiva dessa verdade advém da inquisição, e presencia o Direito canônico, conforme estudado no Cap. II desta dissertação, caracterizando os Estados Absolutos, que encontravam no Positivismo Criminológico a realização indisfarçável de objetivos políticos.

Temos procurado demonstrar que a busca da verdade não é o fim do processo mas o meio de fazer-se efetivar o Direito e se fazer brotar dele as sementes da Justiça. Essa dinâmica advém não só da prova mas de um juízo translúcido advindo da valoração, ponderação argumentativa que agregue, também, elementos valorativos.