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O princípio da dignidade da pessoa humana e o humanismo

Capítulo II Síntese histórica

3.1. O princípio da dignidade da pessoa humana e o humanismo

mesmo em face a uma imputação penal. Na busca da verdade o processo segue em normas e princípios pré-estabelecidos que buscarão aferir, por meio de atos que lhe incorporam, a busca da verdade dos fatos que culminaram e/ou giraram na órbita do ilícito penal apontado.

Figueiredo Dias se manifesta dizendo que “o próprio pensamento filosófico mais recente veio mostrar que toda a verdade autêntica passa pela “liberdade” da pessoa, pelo que a sua obtenção à custa da dignidade do homem é impensável”.120

A dignidade da pessoa humana é :

(...) irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente.121

O valor da pessoa humana, no magistério de Miguel Reale, consiste em colocá-lo sob a óptica de duas correntes, a do Direito Natural transcendente e a do Direito Natural transcendental que assim preleciona:

Segundo os primeiros, o valor da pessoa humana não seria mais que a expressão da natureza humana mesma (...), visto estar assente numa verdade reconhecida a priori como expressão perene e absoluta da vontade divina transfundida à sua criatura, e, como tal, insuscetível de mutação histórica. É manifesto, penso eu, o sentido implicitamente religioso do Direito Natural transcendente, que é inseparável da idéia do homem criado por Deus, à sua imagem e semelhança, e, desse modo, considerado uma pessoa dotada ab

origine de dignidade intocável. Bem diversa é a colocação do

problema à luz do Direito Natural transcendental, cuja a idéia mestra remonta a Kant, ao apresentar a pessoa humana como “condição transcendental de possibilidade” da experiência jurídica, uma vez que “a autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhes correspondem”, sendo este um corolário da lei fundamental da razão pura prática, que determina:

121 WOLFGANG SARLET, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição

“Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer, em todo tempo, como princípio de uma legislação universal.122

Não há como falar de dignidade humana sem citar os artigos trazidos pela Constituição Federal de 1988, quais sejam: 1º, III, 170, caput e 226 parágrafo 7º, pois é notório que ela se constitui o eixo a partir do qual todos os sistemas constitucionais devem ser aplicados, e o processo penal não deixa de ser efetivamente o direito constitucional aplicado.123

Não podemos falar desse imperativo categórico, mesmo em sede de uma persecução penal, sem aventar o termo humanismo que Guido Gonella assim conceitua:

O caráter humanístico do Direito foi claramente demonstrado pela jurisprudência romana, a qual declara que o Direito é constituído “hominum causa” (Digesto, 1, 5) e que o homem é não somente causa eficiente do Direito, mas ainda, causa final. Ou seja, o Direito é do homem e para o homem (...) A humanidade do Direito é condição de sua ética: os que negam a eticidade do Direito, consequentemente são aqueles que, partindo da negação do primado e da dignidade da pessoa, terminam por considerar naturalisticamente todo o mundo jurídico: analisam e classificam as normas de Direito como se classificam os estratos geológicos, sem levar em conta que o Direito observa, sim, fatos reais, mas não fatos da natureza, fatos do homem, porém, isto é, atos humanos, relações entre os homens.124

122 REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.60-61.

123 HASSEMER, Winfried. Fundamentos de Derecho Penal. Trad. de Francisco Munhoz Conde e Luiz

Arroyo Zapatero Barcelona: Bosch Casa Editorial S.A., 1984, p.150.

O discurso do humanismo foi ganhando consistência ao longo dos séculos, recebendo, na atualidade, uma codificação mais verticalizada por parte de Emmanuel Mounier e especialmente de Jacques Maritain, no “humanismo integral”.

A construção do humanismo é obra da humanidade aberta, ecumênica e inteira, cujos reflexos, poderão fazer brilhar todos os recônditos mais escondidos e esquecidos deste mundo, que abriga uma gama imensa de povos, culturas, e modos de vida.

A tradição do humanismo atingiu sua expressão máxima na obra dos grandes teólogos do século XIII, sobretudo na obra de Santo Tomás de Aquino que já falava expressamente em dignitas humana.

A idéia fixou-se definitivamente no século XV nas academias eruditas da Renascença italiana, onde alcançou plena maturidade com algumas figuras proeminentes, tais como Marsílio Ficino, Erasmo de Rotterdam, São Tomás Moro, Pico della Mirandola e Concordia125 que apresentou a sua tese, segundo a qual (...) “partindo da racionalidade como qualidade peculiar, inerente ao ser humano, advogou ser esta a qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente sua própria existência, seu próprio destino”.126

125 COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2000,

p.4.

A grandeza original do homem, independendo de onde geograficamente se encontre, o faz “participar de tudo quanto pode enriquecê- lo na natureza e na história; e também possa desenvolver as virtualidades nele contidas, as suas forças criadoras e a vida da razão, labutando assim por fazer das forças do mundo físico instrumentos de sua liberdade”.127

A idéia de ser humano, embora em tempos recentes tendo sido contestadas pela filosofia e as ciências humanas em geral, fundiram-se na síntese da tradição grega, tradição latina e a tradição bíblico-cristã.

A tradição grega, advinda do conceito socrático da interioridade racional “alma” (psyhé), na sequência doutrina platônica da inteligência (Noûs), o mundo transcendente da idéias ou do inteligível puro. Já Aristóteles elabora o conceito de uma “natureza humana” como substância (ousía), dando origem a definição clássica “animal possuidor da razão”.

A partir desses três conceitos a imagem ocidental do homem guardará estes traços marcantes e helênicos; o ser humano é interioridade espiritual, é inteligência aberta às realidades transcendentes, e é natureza racional adequada, pela razão, no que concerne ao conhecimento do ser em sua universalidade.

127 MARITAIN, Jacques. O crepúsculo da civilização. Trad. Arlindo Veiga dos Santos. São Paulo: Cultura

Destas origens, a tradição latina (romana) recebe a cultura de um outro mundo (grego), não perdendo, contudo, suas características essenciais. Os pais do humanismo latino são Cícero, Virgílio, Sêneca, Horácio e outros.

Da herança romana não podemos deixar de mencionar a noção fundamental de humanitas, daí a expressão ciceroniana de studia humanitatis, que passou a designar a tradição do humanismo, os estudos que contribuíam para formar ao jovem as qualidades próprias da humanitas, enfim humanizá-lo.

Edgar Morin expandindo o significado da essência da natureza humana deixa a idéia de traços humanos universais se referindo que:

(...) apesar da diáspora etnocultural, todos os seres se exprimem fundamentalmente pelo sorriso, pelas lágrimas. Eles dispõem não só dos mesmos meios de expressão, mas também exprimem uma mesma natureza afetiva, e isto apesar dos floreados, das variações, dos estereótipos, das codificações, dasritualizações que as culturas introduziram no sorriso, no riso e nas lágrimas.128

É claro que a dignidade da pessoa humana não se perfaz em um conceito transcendental, mas de imprescindibilidade à condição humana. Sua concretização é imposição dos tempos atuais, do grau de desenvolvimento das sociedades e do nível de aprofundamento da investigação científica a que se propõe a nascente dogmática dos direitos fundamentais.

128 MORIN, Edgar. O Paradigma Perdido. A Natureza Humana. Trad. Hermano Neves. Europa América:

O sistema de direitos fundamentais, segundo Canotilho, assenta-se sobre uma base antropológica, que é constitucionalmente estruturante do Estado de Direito. Pela análise dos direitos fundamentais “constitucionalmente consagrados, deduz-se que a raiz antropológica se reconduz ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e administrado”.129

Das premissas apresentadas a dignidade da pessoa humana atua também como limite a interpretações restritivas de direitos fundamentais, e independente de texto da norma é conteúdo da Constituição de 1988, e como tal capitaneia a interpretação concretizadora dos direitos fundamentais. O acesso à justiça, como discorreremos infra se constitui em um deles, conforme assente Marco Antonio Marques da Silva:

A partir da Constituição Federal de 1988 que no seu art. 1º afirma ser o Brasil um Estado Democrático de Direito, isto implica na necessária oferta, como decorrência daquela condição, a todo cidadão, pelo Estado. De um serviço judicial que possibilite a composição pacífica dos conflitos ocorridos dentro da sociedade. De outro lado, além do oferecimento de um serviço judicial capaz de atender e compor os conflitos sociais, ele deve ser acessível a todo o cidadão, isto é, não podem existir obstáculos jurídicos e, principalmente, econômicos, a impedir que o cidadão, efetivamente, exerça seu direito de pedir ao Estado, por meio do Poder Judiciário, uma prestação jurisdicional.130

129 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 367 . 130 MARQUES DA SILVA, Marco Antonio. Acesso à justiça penal e Estado Democrático de Direito. São