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Capítulo IV A busca da verdade e a liberdade do acusado

4.2. O direito ao silêncio

“É cousa (sic) tão natural o responder, que até os penhascos duros respondem, e para as vozes têm ecos. Pelo contrário, é tão grande violência não responder, que aos que nasceram mudos fez

a natureza também surdos porque se ouvissem, e não pudessem responder, rebentariam(sic) de dor”.

Pe. Vieira174

O direito ao silêncio ficou inserto neste capítulo porque representa uma amostragem de um sistema constitucional que garante e prestigia a liberdade

do indivíduo. João Baptista Vilela pode, em sua lição, respaldar nossa linha de entendimento, sobre a matéria:

O direito de manter-se calado é a expressão ao mesmo tempo mais apurada e mais radical do direito à privacidade (...) faz, do foro interior o reduto inexpugnável da identidade. Se a casa é o “asilo inviolável do indivíduo”, como declara a CF (art.5º, XI) o que não dizer da consciência, uma espécie de morada espiritual, onde o mais íntimo do “self” de cada um encontra abrigo e agasalho?175

Como direito preconizado por nossa carta maior, o direito ao silêncio se constitui num dos temas

(...) mais emblemáticos do processo penal, sublinhando a diferença entre uma concepção inquisitória, que vê o saber do acusado como fonte de prova que não pode ser desprezada- até porque se culpado, ele é um detentor privilegiado de informações-, e uma posição mais ligada à preservação das garantias processuais, para a qual o seu reconhecimento constitui decorrência inarredável da presunção de inocência e da amplitude do direito de defesa.176

A defesa no processo penal se apresenta sob dois aspectos a defesa técnica e a auto defesa. A defesa técnica é indisponível, e imprescindível para a concreta atuação do contraditório (Cap.VI, 6.5). Já a autodefesa apresenta duas características importantes que deverão ser observadas pelo juízo: a) direito de audiência, b) direito de presença.

175 VILELA, João Baptista. Habeas Corpus para manter-se calado? O Sino de Samuel: Jornal da Faculdade

de Direito da UFMG, n. 83, julho- agosto de 2005, p.13.

176 COUCEIRO, João Cláudio. .A Garantia Constitucional do Direito ao Silêncio. São Paulo: RT, 2004, de

prefácio de Antonio Magalhães Gomes Filho, p.11.

O primeiro ocorre na possibilidade do imputado influir na formação do convencimento da autoridade e o segundo acontece quando na oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, ante as alegações e as provas produzidas.177

Representada a autodefesa, como direito de audiência no interrogatório, este passa não ser mais necessariamente meio de prova, como ainda o considera o Código de Processo Penal nos seus artigos 185 e seguintes, a despeito das modificações da Lei 10.792, de 1º.12.2003.

No caminhar desse estudo, (V. Cap V, 5.4) quando falamos de meios de prova, inserimos interrogatório, nesse rol, justamente por ele estar ainda ínsito no CPP, no Título VII, “Da prova”. Achamos por bem seguir essa linha metodológica, mas isso não nos impede de apresentarmos posições diversas desse entendimento.

Entretanto, parece que em assentimento a essa metodologia escolhida, José Cláudio Couceiro178, comenta que com a introdução da Lei 10.792 de 01.12.2003, é negado de vez a oportunidade da nova lei em atribuir qualquer efeito ao silêncio, ou seja valorá-lo como elemento de prova o que contraria dispositivo expresso no Código de Processo Militar (Lei 1002/69 art.305) e

177 Não se pode esquecer, também, com aspecto da autodefesa, a manifestação pessoal do acusado quando

intimado da sentença, sobre seu desejo de recorrer. (GRINOVER, Ada Pellegrini, MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio e FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 95), ou a possibilidade do mesmo ajuizar sem advogado, certos tipo de ação, como a revisão criminal (artigo 623 do CPP) e o habeas corpus (artigo 654 do CPP). Essas hipóteses são casos de autodefesa.

também a faculdade concedida aos jurados no julgamento do Tribunal do Júri, ferindo-se assim o princípio da isonomia.

O autor preleciona ainda que optando o acusado em se manifestar,( e ainda o interrogatório não sendo ato obrigatório), deveria deixar de ser livre para se dizer o que quer.

Se optou em falar, continua Couceiro, não pode o interrogado se eximir de dizer, a versão real dos fatos, não estando livre para mentir, pondo-se fim no sistema inquisitivo, que o encara como meio de defesa, então quando realizado passaria a ser efetivamente um meio de prova.

Diferentemente pensa Ferrajoli e externa assim seu posicionamento:

O interrogatório do imputado, em uma visão não inquisitória de processo, não é uma necessidade da acusação, mas um direito de defesa, que deve servir não para formar prova da culpabilidade, mas só para contestar a imputação e para permitir a defesa do acusado. Sua coercitividade é não só um escopo desnecessário, mas um propósito francamente ilegítimo, cuja realização “para arrancar a confissão do réu” nas palavras de Francesco Carrara- mostra “ não estar morta a semente daqueles que secretamente lamentam a abolição da tortura: já que a masmorra, utilizada no sentido como acima se ensina, não é outra coisa que uma tortura disfarçada.179

Em uníssono ao entendimento de Ferrajoli temos a posição de Antonio Magalhães Gomes Filho180 no sentido de que valorar o silêncio como elemento probatório seria negar-lhe o caráter profilático como instrumento apto a evitar as conhecidas pressões para obter-se a confissão a todo preço e a todo o custo, além de dificultar o seu uso como estratégia de defesa.

É de se afirmar, entretanto, que mesmo com as mudanças efetuadas, pela lei supra citada, permanece ainda no Diploma Processual Penal, o artigo 198 que aduz: “o silêncio do acusado não importará em confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”.

O direito ao silêncio do acusado, não pode ser valorado pelo julgador, provavelmente por alguma omissão a Lei 10.792/ 2003 não alcançou esse dispositivo, se faz mister, então, buscar amparo em nossa Carta Magna no art. 5º, LXIII. Desse direito fica implícito efetivamente a liberdade do acusado em se defender, da forma que lhe aprouver, estando presente ou ausente na audiência, falando ou calando-se. Da não valoração desse emudecimento, ou premissa conferida em abster-se de participar em um ato processual consagra- se ainda mais a presunção de sua inocência.

No entendimento de Ennio Amodio181, temos que a regra procura evitar a obtenção de declarações pela coerção exercida contra a liberdade moral do

180 COUCEIRO, João Cláudio, ob, cit., prefácio, p.12.

181 AMODIO, Ennio. Diritto al silenzio o dovere di colaborazione. Rivista di Diritto Processuale. Pádua, n.3,

imputado, ainda que tal represente sacrificar o interesse da informação do ”fato-delito” com a exclusão do uso de declarações que poderiam revelar-se úteis no plano probatório.

Dessas declarações úteis que o acusado poderia revelar, no seguimento da linha desse estudo, pendemos mais, e forçosamente, no sentido que o direito ao silêncio, pode vir a ser considerado como um óbice ao estabelecimento da verdade, posto, que o acusado deixando de falar, poderá omitir o que em algum aspecto pudesse contribuir para o convencimento do juiz, na valoração das provas.

No entanto, o autor, pontua ainda mais sobre o direito ao silêncio :

(...) é o selo que garante o enfoque do interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de consciência do acusado e dessa forma deixa de ser somente meio ou objeto da investigação e passa a adquirir a qualidade de efetivo sujeito do processo.182

Na mesma esteira João Baptista Vilela:

(...) outra forma de exercitar a verdade, é manter-se calado.Quem o faz está preservando a verdade, embora apenas de modo passivo, isto é, não a está lesando nem agredindo. Por que não colaborar ativamente para trazê-la a luz? Aqui penetramos no sacrossanto recinto da intimidade individual.Cada pessoa pode ter variados motivos para não fazê-lo ou simplesmente não ter motivo algum. Pelo exercício do que constitui a projeção jurídica de nós próprios

não devemos explicação. Calamos ou falamos porque somos pessoas. E porque somos pessoas também detemos a soberania única e intransferível de nosso destino individual”.183

Na liberdade de declaração consagra-se o estatuto do imputado de autêntico sujeito processual e mesmo assim isso não significa que o mesmo deixe de ser “objeto de prova” 184.

Portanto, o imputado aparece atualmente nessa visão democrática do processo penal, de um lado como sujeito, enquanto é parte processual e, assim titular de direitos, obrigações e ônus processuais e de outro lado, como objeto, pois, como se verá existem diversos atos de investigação e de prova que se desenvolvem tomando como base indispensável precisamente o próprio imputado, em diferentes perspectivas.

No entanto, há limitações no que tange a utilização do imputado como objeto de prova, nesse sentido Figueiredo Dias ensina:

(...) princípio da presunção de inocência, ligado agora diretamente ao princípio- primeiro de todos os princípios jurídico- constitucionais- da preservação da dignidade pessoal, conduz a que a utilização do argüido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade – tanto

no inquérito como na instrução ou no julgamento: só no exercício de uma plena liberdade da vontade pode o argüido decidir se e

183 VILELA, João Baptista, ob.cit. p.13.

184 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1961. vol.2,

como deseja tomar posição perante matéria que constitui objecto (sic) do processo.185

Há de se observar que qualquer “coerção estatal contra seu direito de liberdade deve observar o princípio da proporcionalidade e a proteção de sua dignidade como já assentimos, pode até submeter-se a medidas coercitivas, mas jamais está obrigado a participar ativamente em sua aplicação e possui a possibilidade de optar pelo silêncio, quando este caminho lhe parecer mais conveniente para a sua defesa”. 186

Literalmente preconizado por nossa Constituição está o princípio nemo

tenetur se ipsum accusare “ninguém é obrigado a acusar-se a si mesmo” e já

é praticamente pacífico o reconhecimento de outros advindos deste primeiro que avocam a autopreservação, tais como : nemo tenetur se detegere”

ninguém é obrigado a se manifestar”, ou nemo contra se edere tenetur “

ninguém é obrigado a se denunciar, ou “nemo testis contra se ipsum “ ninguém testemunhe contra si mesmo”, ou “ nemo tenetur detegere propriam

turpitudinem” ninguém é obrigado a declarar a própria torpeza, é uma

conquista dos tempos modernos e das democracias liberais.

185 FIGUEIREDO Dias, Jorge de. Sobre os sujeitos processuais.Jornadas de direito processual penal- O

Novo Código de Processo Penal. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 27.

186 DIAS NETO, Theodomiro.O Direito ao Silêncio: Tratamento nos direitos alemão e norte – americano

Ademais, não é só por meio de declarações que uma pessoa pode se auto-incriminar, por vezes sua presença na audiência para reconstituição de crime, reconhecimento da vítima, para verificação de sua versão dos fatos pode até impender na sua condenação, e com o incremento da tecnologia, outros meios de prova foram descobertos, os quais implicam em impor ao imputado determinadas condutas que podem permitir sua incriminação (extração de sangue para verificação de dosagem alcoólica, a emissão de palavras para exame de voz, ou extração de cabelo ou de esperma, para a realização de exame de DNA).

O princípio nemo tenetur se ipsum accusare passou a ter significados distintos, relacionados entre si a) direito genérico a não se auto-incriminar b) um direito de não ser interrogado pelo juiz e c) um direito de, quando interrogado, se manter em silêncio.

Do direito a não se auto incriminar que se referia, no início, apenas ao direito de não ser obrigado de emissão de declaração que pudesse incriminar o acusado, passou-se atingir outros tipos de condutas, conquistando abrangências mais extensas, por exemplo a não imposição na realização de qualquer exame ou exibição de documento e recusa em apresentar-se.

Hoje já colhemos os resultados, ainda não de forma geral e pacífica mas do direito da não incriminação que impõe limites à atividade do Estado.

Tratando da matéria o STF decidiu que:

(...) qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais, ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado.”Nemo tenetur detegere”. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal. (STF-1ªT-HC 68.929-SP- rel.Min.Celso de Mello- j. 22.20.1991-RTJ 141/512).

Em seu voto o Ministro Celso de Mello, afirmou que:

(...) o privilégio contra a auto-incriminação traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, deferido e expressamente assegurado, em favor de qualquer indiciado ou imputado, pelo artigo 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política, de forma que “qualquer indivíduo figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Esse direito- que se reveste de valor absoluto- é plenamente oponível ao Estado e aos seus agentes. Atua como poderoso fator de limitação das próprias atividades penais-persecutórias desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes e Tribunais) RTJ 141/515.

Esse direito, a despeito de visível desenvolvimento, tanto no sistema pátrio como nos tratados e convenções internacionais não pode impedir que o

Estado, a seu turno, venha a explorar modernas tecnologias para a repressão da criminalidade e com isso caminhar, também, na busca incessante do bem comum e no equilíbrio das partes.

Em que pese, o que discorremos até então, e entendimentos diferentes, é pacífico que consagrado está em nossa Carta Maior o direito ao silêncio, portanto, acolhido está nas malhas do processo penal, mesmo até em detrimento da verdade processual e do deslinde circunstâncias que giram em torno do “fato-delito”.

Entretanto, por um princípio geral da ponderação, advindo das cortes alemãs187(Cap. VII,7.1) que qualifica a realização efetiva da justiça penal como sendo de transcendente interesse do Estado de Direito, admite que em sua salvaguarda se sobreponha aos direitos fundamentais a ponto de legitimar o sacrifício destes.

Não querendo relegar a plano inferior esse direito, ora tratado, mas apenas no sentido de trazer a voz de alguém que pode lançar luz em discussões sombrias ou, quiçá, ativar a chama da inconformação que invade o espírito crítico, advindo da pesquisa que se arrima o trabalho científico, temos a reflexão de Santo Tomas de Aquino ao falar da linguagem como o receptáculo das grandes intuições de sabedoria do homem :

187 ANDRADE, Manuel da Costa Andrade. Sobre as proibições de prova em processo penal. Portugal.

Nós não podemos expressar em uma única palavra tudo o que há em nossa alma e, devemos valer-nos de muitas palavras imperfeitas e, por isso, exprimimos fragmentária e setorialmente tudo o que conhecemos.188(grifo nosso)

188 AQUINO, Tomas de. Verdade e Conhecimento .(Questões disputadas “Sobre a verdade” e “Sobre o

verbo” e “Sobre a diferença entre a palavra divina e a humana”). Trad.Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999 p.1, “A linguagem é receptáculo das grandes intuições de sabedoria do homem: ao contrário de Deus, que tudo expressa em seu verbo”. ob.cit., p.80.

CAPÍTULO V - A PROVA E ALGUNS ASPECTOS DA TEORIA