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AD e DP: cinquenta anos de uma inquietante invenção

CAPÍTULO 1 DISCURSO POLÍTICO: UMA TRAJETÓRIA HISTÓRICO-

1.1 AD e DP: cinquenta anos de uma inquietante invenção

A Análise do Discurso surgiu na França no final da década de 1960 como um campo de pesquisa interdisciplinar, tendo como seu objeto primeiro, o discurso político. O privilégio dado a esse objeto13 deu-se pelo fato de que a própria história da Análise do Discurso passa pela história política francesa e se confunde com a produção dos discursos políticos. Era uma conjuntura de mudanças políticas e, também, de transformações no plano teórico.

Como a história da fundação e do desenvolvimento da AD já foi sobremaneira detalhada em muitos trabalhos (Cf. INDURSKY, 1998; PÊCHEUX, 1990; MALDIDIER, 1990; GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D.; ROBIN, R, 1989; STAFZZA, P, 2010)14, não é nosso objetivo aqui repeti-la. Privilegiamos, no entanto, uma abordagem teórica desse campo de

13 Veremos mais adiante, que a partir da década de 1980 a Análise do Discurso passa a se interessar por analisar outros objetos, de forma efetiva.

14 INDURSKY, Freda. A Análise do Discurso e sua inserção no campo das ciências da linguagem. Cadernos do IL, Porto Alegre, n.20, 7-21, 1998 ; MALDIDIER, D.L'inquiétude du discours. Textes de Michel PÊCHEUX choisis et présentés par Denise MALDIDIER Paris, Editions des Cendres, 1990, 334 pages ; GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D.; ROBIN, R.. Jalons dans l'histoire de l'analyse de discours en France: un trajet des historiens du discours. Discours Social /Social Discourse, 1989, vol. 11, number 3, Montréal. ;PAULA, Luciane de; STAFUZZA, Grenissa (Orgs.) Da Análise do Discurso no Brasil à Análise do Discurso do Brasil: três épocas histórico-analíticas. Uberlândia, MG: EDUFU, 288p, 2010.

pesquisa atrelada aos estudos em torno do discurso político – objeto que nasce na fundação da disciplina – pensando como esse objeto se constituiu à época de constituição desse campo e sofreu mutações até agora, como foi pensado em diferentes momentos, provocando inquietações e transformações teórico-metodológica na disciplina, visto que as especificidades do objeto discurso político já não são mais as mesmas de antes. Além disso, as novas materialidades também permitiram que os analistas refletissem sobre o discurso político de outra forma. Retomaremos algumas questões para melhor compreender o percurso epistemológico da AD e as transformações históricas do objeto discurso político.

A história da Análise do Discurso vai se constituindo ao longo dos anos e seus aportes teóricos vão se modificando nos entremeios de continuidades e descontinuidades da “ordem do discurso” e da história política e social do Ocidente. Dessa maneira, seus métodos de análise vão se transformando e reverberando de acordo com o desenvolvimento e a mutação do objeto de estudo.

Desde a sua emergência, esse campo de pesquisas nunca gozou de homogeneidade teórica e metodológica. A problemática central que circunscrevia esse campo teórico era, segundo Courtine, “elaborar uma concepção de discurso que fizesse dele um objeto essencial para a compreensão das realidades histórica e políticas, um nível de intervenção teórica crucial para quem desejava, ao mesmo tempo, compreender a sociedade e operar sua transformação” (2006, p. 32). Nesse viés, a AD objetivava, desde sua fundação, uma aliança entre a linguística e a história, instituindo-se na interdisciplinaridade a partir de uma “tríplice aliança”: da linguística – por meio da releitura do CLG de F. Saussure; do materialismo histórico – a partir dos trabalhos de L. Althusser que faz uma releitura da obra de Marx; e da psicanálise – da releitura que J. Lacan faz de S. Freud. Grosso modo, a Análise do Discurso tem sua configuração determinada pela influência do estruturalismo, do marxismo, da psicanálise, da epistemologia histórica, da linguística saussuriana e, certamente, apresenta-se de forma distinta em cada uma de suas linhas.

Para D. Maldidier (1994), a AD teve uma dupla fundação: pelos trabalhos desenvolvidos separadamente do lexicólogo Jean Dubois e do filósofo Michel Pêcheux, cujos textos fundadores foram: o artigo Lexicologie et analyse d'énoncé, de Jean Dubois, apresentado no Colloque de Lexicologie Politique de Saint-Cloud, em abril de 1968, e a tese Analyse automatique du discours, defendida por Michel Pêcheux, em 1968, e publicada no ano seguinte. De fato, a maioria dos trabalhos de análise do discurso produzidos no período mencionado foi realizada com base nos conceitos e métodos formulados por esses dois autores. Podem-se, entretanto, identificar outros projetos de análise do discurso contemporâneos àqueles referidos

pela autora – por exemplo, aquele de Michel Foucault, da fase arqueológica. (GREGOLIN, 2004).

A linha de análise do discurso iniciada por J. Dubois, direcionada principalmente por Marcellesi e Gardin, que, lançando-se no projeto de constituição de uma nova linguística, a Linguística social, concebiam a AD enquanto campo de pesquisas no seu interior. A perspectiva de Dubois, cuja Análise do Discurso insere-se numa sociolinguística, busca evidenciar a individuação linguística dos grupos sociais, centrada nos traços formais que diferenciam os discursos e os tipos de discurso (MARANDIN, 1979). Já a linha formulada pelo o filósofo M. Pêcheux, desenvolvida a partir de conceitos herdados de seu mestre Althusser, visava ao desenvolvimento da teoria marxista, embora não fosse restrito a isso, uma vez que seu projeto não era apenas epistemológico, mas, acima de tudo, político. Assim, ele concebeu a Análise do Discurso para ser um dispositivo instrumental para as ciências sociais, com objetivo de suplantar o emprego da Análise de Conteúdo, muito presente nas pesquisas em ciências humanas e sociais à época.

Mas vale ressaltar que a AD projetada por Michel Pêcheux não se restringia ao estatuto de um dispositivo instrumental. O método era apenas uma parte de um todo cuja outra parte era a teoria do discurso. Teoria e método, para M. Pêcheux (1993, 1997), eram inseparáveis, pois não é possível construir um método sem uma teoria. Dito diferentemente, a AD proposta por Pêcheux não foi projetada apenas para análise automática do discurso político15, embora tenha sido aplicada muito mais para o discurso político. Os fins de Pêcheux são políticos, mas os meios são teórico-epistemológicos. (NARZETTI, 2012, p. 11).

A AD pecheutiana derivou-se do/no entrecruzamento do Materialismo Histórico com a Linguística e a Psicanálise, agrupando certo número de inquietações sobre o sujeito, a linguagem e a história a partir de um modo específico de ler essas estruturas como relativas, contraditórias e heterogêneas. Ler Pêcheux significa, por conseguinte, ler um grupo de pesquisadores preocupados com o processo de a língua fazer sentido, com o objetivo inaugural de analisar os documentos políticos por intermédio de um dispositivo computacional com a intenção de trazer à leitura crítica, em um primeiro momento, o problema da ideologia nestes textos eminentemente com teor político.

Nas leituras de Gregolin, para Pêcheux (1981a), a Análise do Discurso foi pressionada – desde a sua fundação – por duas determinações, por dois estados de crise: a evolução das teorias linguísticas e as transformações do campo histórico-político. Desde sua origem, ela

tomou como objeto de estudos os “discursos políticos”, pois foi fundada para se constituir, ao mesmo tempo, como uma intervenção científica e como uma intervenção política. (GREGOLIN, 2006, p. 173).

A noção do discurso político foi implementada consoante a constituição do campo teórico da AD, com suas continuidades e descontinuidades. Esse objeto centralizador, voltava- se para os grandes corpora dos textos de teor político (comunistas, de direitas, de esquerdas, pró ou contra a dominação francesa na Argélia, guerra do Vietnã).

É inegável que o discurso político atual não goza do mesmo status nem do mesmo prestígio que nos anos 1960, quando Michael Pêcheux e seus seguidores fizeram dele o tópico central da Análise do Discurso por sua relação com o fenômeno ideológico. Todavia, se existe hoje uma crise de democracia representativa, que tem como base a atuação e a fala dos homens (e mulheres) políticos, a perda de prestígio dos agentes políticos não implica necessariamente a perda de relevância do domínio político, ou da Política, na vida social. Tampouco isso implica menos relevância do discurso político como investigação científica. Ao contrário, a natureza semiológica sincrética do discurso político atual é fonte de grandes reflexões e inquietações, colocando em evidência tanto a intensidade de interesse, quanto a sua complexidade atual como objeto de estudos. (EMEDIATO, 2016, p. 9)

Apesar da diversificação de objetos de análise e a perda da exclusividade do discurso político entre os objetos da AD, isso não representa, conforme já dissemos, um desinteresse em relação a ele, pois de acordo com o analista em discurso político, Piovezani (2009), “o discurso político continua sendo frequentemente matéria de análise e de reflexão no campo da análise de discurso, embora tenha oscilações entre “retornos” e “refluxos” da política que marcaram o período que se prolonga desde a década de 1970/80 até os nossos dias”16. (PIOVEZANI, 2009, p. 169, aspas internas do autor)

16 Poderíamos destacar as várias pesquisas sobre o discurso político na França e no Brasil que continuaram a ser produzidos, desde então. No interior de uma grande produção deste campo, podemos destacar os seguintes trabalhos elencados por Piovezani (2009) e complementados por nós: - Osakabe, Argumentação e discurso político ([1979] 1999]; Courtine, Analyse du discours politique (1981), “Langage, Political Discourse and Ideology” ([1985] 2006a), Corps et langage (1989), “Les glissements du spectacle politique” ([1990] 2003), “Les dérives de vie publique: sexe et politique aux États Unis” ([1994 2006a)]; Bonnafous, Processus discursifs et structures lexicales: les congrès de Metz (1979) du Parti Sociealiste (1983), “L’analyse du discours politique” ([1997] 1999) e Argumentation et discours politique, et al. (Org.) e 2003b); Seriot, Analyse du discours politique sovietique (1985); Orlandi, “A fala de muitos gumes” ([1985] 1996); Fiorin, O regime de 1964: discurso e ideologia (1988); - Guilhamou, La langue politique et la Révolution française. De l’événement à la raison linguistique (1989); vários números da revista Mots. Les langages du politique (1998); Zoppi-Fontana, Cidadãos modernos: discurso e representação política (1997); Indursky, A fala dos quartéis e outras vozes (1997); Le Bart, Le discours politique (1998); Group Saint Cloud, Présidentielle: regards sur les discours télévisés (1995). L’image candidate à l’étection présidentielle (1995). Analyse des discours dans les médias (1999); Mayaffre, Les poids des mots. Le discours de gauche et de droit dans l´entre-deux-guerres (2000), Paroles de président Jacques Chirac (1995-

Observar e analisar a discursividade da fala pública é perceber o processo de transformação, de mutações constantes na história da humanidade, desde a sua formulação “dura”, “sólida”, “de ferro”, como observada por Patrick Sériot, em Analyse du discours politique soviétique (1985)17. A língua de madeira, passou ao estatuto de língua de vento, “fluída”, “líquida”, “movente”, tão peculiar nos tempos de agora. Ademais, para Piovezani, em História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso (2015), obra organizada conjuntamente com Courtine, “as práticas discursivas modificam-se no tempo e no espaço, conforme se alteram os regimes de governo e os sistemas de produção, os padrões sociais e as tendências culturais, os dispositivos tecnológicos e os fatores subjetivos”. (PIOVEZANI, 2015, p. 291).

Dessa maneira, retomando a epígrafe no início desse capítulo, J.-J. Courtine nos convida à reflexão para o que, muitas vezes, embora pareça óbvio, seja um fator deveras desprezado pelo analista: de que as transformações dos métodos da Análise do Discurso refletem as metamorfoses de seu próprio objeto. Nesse sentido, o objeto discurso político sofreu mutações na sua existência material e, por isso, não devemos negligenciar essas mudanças nos modos de sua produção, recepção e circulação.

Outrossim, o movimento e as transformações no discurso político, além da forma de se fazer política, não se dão apenas com o passar dos anos, ou com a irrupção dos grandes acontecimentos e as modificações profundas da estrutura política (os modos de governar, as instituições econômicas, a justiça etc.), mas, também, nos pequenos acontecimentos, que proporcionam novos modos de dizer, novos suportes de materialização dos discursos e maneiras que o levam a circular. (SÁ, 2011, p. 15).

Por isso, dedicamos este capítulo para pensar na história do objeto discurso político e suas mutações, considerando a própria conclusão de Courtine (2006, p. 50) ao problematizar as metamorfoses e derivas do discurso político na contemporaneidade: “[...] não fazemos a mesma

2003) et le discours présidentiel sous la Vème République (2004); Coulomb-Gully, La démocratie mise en scènes (2001); Sargentini, A teatralidade na geração de empregos (2003); Charaudeau, Le discours politique: les masques du pouvoir (2005); Cezarin, Identificação e representação política: uma Análise do discurso de Lula (2005); Courtine, Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública (2006); Piovezani, Verbo, corpo e voz: dispositivos da fala pública e produção da verdade no discurso político (2009); Emediato, Análises do discurso político (2016); Indursky, Os (des)caminhos do discurso político na contemporaneidade (2016); Sargentini, Mutações do discurso político no Brasil, espetáculo, poder e tecnologias de comunicação (2017).

17 Ao analisar o discurso político soviético, Patrick Sériot (1985) discute sobre o funcionamento da “langue de bois’’, a língua de madeira, expressão que surge no discurso oficial polonês e que se difunde para outras línguas. O autor chama a atenção para inúmeros predicativos que podem ser atribuídos à expressão ‘língua de madeira’, segundo sua tradução no âmbito do discurso político soviético, francês, italiano ou inglês. Assim, compreendida como língua oficial de partidos socialistas, língua da burocracia, língua cristalizada, dogmática, impessoal, língua com funcionamento argumentativo que se enoda sobre si mesmo, essa é a língua de madeira.

análise do discurso político quando a comunicação política consiste num comício que reúne uma multidão em torno de um orador e quando essa comunicação toma a forma de shows televisivos, aos quais cada um assiste em domicílio”, e ainda acrescentamos, quando esse discurso se constitui no ciberespaço, com o surgimento da Internet, das mídias digitais e a consolidação da sociedade da tela (MONGIN, 2004, p. 219). Isto é, ao prever as mutações das discursividades nos anos de 1980, Courtine aponta que as transformações históricas e políticas reclamavam deslocamentos teóricos. Ele tratará insistentemente dessa necessidade, mostrando essas metamorfoses como novas exigências (teórico e políticas) a serem inseridas aos percursos da AD.

Por isso, vale destacar que não apenas o objeto discurso político passou por transformações, mas também os estudos desenvolvidos pela Análise do Discurso sofreram várias modificações ao longo do tempo, desde sua formação inicial, no final de década de 1960, por M. Pêcheux. Isso se deu tanto na forma de analisar os mecanismos de constituição e formulação dos discursos, como na busca por qual tipo de discurso tomar como objeto. Assim, de acordo com Sá (2011):

Esses movimentos se deram, em grande medida, pelas inúmeras transformações ocorridas com o discurso político, objeto primeiro e ponto de partida para os estudos em Análise do Discurso na França, e sua relação com outros discursos – científico, religioso, literários etc. Esse fato pode ser observado em uma virada na obra de M. Pêcheux na década de 1980, além dos trabalhos desenvolvidos por J.-J. Courtine que, em sua tese sobre o discurso comunista endereçado aos cristãos (1981), observa a heterogeneidade dos discursos, os enunciados divididos (a presença do outro no interior de uma FD – a fala cristã presente no discurso comunista), e considera a necessidade de se agregar às análises o ritual que envolve as intervenções dos porta-vozes; e, partir de trabalhos posteriores, propõe mudanças nas formas de análise do discurso político estabelecidas, também, em função de mudanças no próprio discurso político. (SÁ, 2011, p. 17).

De fato, o discurso político foi e continua sendo um campo fértil para pesquisas e tem sido um domínio bastante requisitado pelas diversas áreas do conhecimento. A natureza heterogênea das pesquisas e perspectivas desenvolvidas neste campo evidenciam sua potencialidade, além da sua complexidade atual como objeto de estudo, pois os problemas se renovam quando se trata de analisar o discurso político. As mutações de que tratam Courtine (2006) e comenta Sá (2011) vão se evidenciar de modo muito notável em nosso corpus, cujas materialidades põem em evidência a figura de uma outra figura política perfomatizada nas relações que são estabelecidas com os potenciais eleitores nas ruas e nas redes direcionados às urnas através de seus sufrágios. Mostraremos nos capítulos 4 como o discurso político nas redes

sociais se constitui como uma cena na qual o ator joga com mudanças de posições entre figura política (desejo de representante do povo) e homem do povo (mais um indivíduo, pai/mãe de família, filho, amigo etc. no meio do povo). Veremos, também a cultura da selfie assumir materialmente o lugar de uma das notáveis mutações.

Para pensarmos na trajetória do objeto discurso político e suas modificações, propomos a priori, pensar as transformações epistemológicas da escola francesa de Análise do Discurso, para depreender seus desdobramento e evolução do seu objeto na França e no Brasil. Desse modo, o objetivo deste capítulo é resgatar a historicidade do objeto na constituição e desenvolvimento da Análise do Discurso, focalizando o nosso olhar para, justamente, o objeto privilegiado desde a fundação desta teoria: o discurso político. Por isso, pensamos nas seguintes questões: como o discurso político foi abordado pelos analistas do discurso da França e do Brasil ao longo dessas últimas cinco décadas? O discurso político ainda continua a ser o objeto privilegiado da AD? Os trabalhos desenvolvidos sobre o discurso político revelam as mutações do objeto? Há uma historicidade no próprio conceito/objeto discurso político? O que mudou e o que há de repetível no interior das anunciadas mutações?