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Adequação de capital e estabilidade financeira

3. BASILÉIA 2 E PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO

3.4. Adequação de capital e estabilidade financeira

Como discutido no capítulo 1, a emergência de períodos de instabilidade financeira pode ser associada a processos endógenos, resultantes da forma como evoluem as expectativas e o endividamento dos agentes. O uso do crédito, da mesma forma incentiva o crescimento dos investimentos ou atua como alavanca para os processos de valorização financeira, propicia o aumento da vulnerabilidade da economia. Diante de reversões das expectativas, ocorre um círculo vicioso entre deterioração da capacidade de pagamento das unidades econômicas endividadas e a contração do crédito bancário, num processo que contribui para acentuar a incerteza. O aumento da inadimplência concorre para a deterioração dos balanços bancários e das condições de solvência e de liquidez (Minsky, 1986; Aglietta, 2004).

Este fato pode se intensificar em decorrência da postura dos depositantes. Como os bancos operam alavancados e com descasamento de prazos, estes dependem fundamentalmente da confiança dos depositantes para a continuidade de suas operações. Períodos de maior incerteza que elevem a desconfiança do público sobre a capacidade das instituições financeiras em honrar seus compromissos podem acarretar aumento dos saques e gerar crises de liquidez (Mendonça, 2002).

De modo geral, crises sistêmicas se manifestam por meio de crises de liquidez. Problemas em um banco determinado podem se espalhar para os demais, seja pela conexão de relações interbancárias, seja pelo pânico dos depositantes. Mesmo bancos considerados solventes podem ser afetados por crises de liquidez e se transformarem em insolventes.

Um dos objetivos declarados de Basiléia 2 é o alcance da estabilidade do sistema bancário internacional. Para tanto, sua base é um mecanismo de “auto-regulação supervisionada”, no qual os mecanismos de adequação de capital constituem sua base (Guttmann, 2006). Na expectativa de aproximar o capital regulatório do capital econômico dos bancos, há o reconhecimento de que a utilização das melhores práticas de gestão financeira utilizadas pelo mercado pode contribuir para a sua solidez. Deste modo, Basiléia 2 visualiza uma lógica circular, na qual o uso das melhores práticas do mercado conduz a maior estabilidade, cuja disseminação é incentivada por seus pilares.

Há uma identificação entre o nível de capital regulatório e a solvência dos bancos. A solvência das unidades individuais tende a gerar a estabilidade do ponto de vista sistêmico. Diante de condições normais, as exigências de capital evita que os bancos, analisados de modo isolado, assumam posições mais arriscadas que o nível convencional. Deste modo, incentiva que as instituições financeiras se comportem de acordo com a média do sistema.

Entretanto, como discutido na seção anterior, por sua característica procíclica, fator reforçado pelo uso de modelos, Basiléia 2 pode intensificar movimentos de euforia e pânico, gerando maior instabilidade do ponto de vista agregado. Como argumentado por Gutmann (2006), estas característica de Basiléia 2 fazem com que, embora tenha sido elaborado com vistas a impedir perdas extraordinárias, justamente quando estas ocorrem, pode deixar de ser efetivo127.

Kregel (2006) critica o desenho de níveis mínimos de adequação de capital do Acordo. Comenta que as perdas normais associadas à operação bancária devem ser supridas pela renda corrente, e que diante de perdas em condições anormais resultantes de uma crise de liquidez, o capital não constitui forma suficiente de cobertura. Deste modo, mais importante que requerimentos de capital seriam instrumentos de disciplina para a atividade bancária, como forma de penalizar os bancos mal administrados, durante condições normais, e a ação efetiva dos emprestadores de última instância em ocasiões extremas.

É importante reconhecer que Basiléia 2 possui aspectos positivos, principalmente quando incorpora uma cultura de administração de riscos e de controles internos para os bancos, e possibilita meios de ação para os supervisores no Pilar 2. Em situações normais, nas quais as variações dos mercados financeiros são pouco significativas, pode ser considerado um instrumento que contribui para manter o nível de capital dos bancos individuais dentro de condições aceitáveis, que não destoem do restante do sistema e não operem com um nível de risco maior que o considerado seguro em termos convencionais.

Entretanto, possui capacidade limitada de impedir processos cumulativos sobre as expectativas que conduzam ao aumento da fragilidade financeira de modo agregado, possuindo componentes em sua estrutura que concorrem para esta evolução. Quando a fragilidade se transforma em crise, tende a acentuar o potencial de retração, pelo aumento das ponderações de

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Usando a analogia feita por Persaud (2008a:1), “é como um cinto de segurança que deixa de funcionar quando se acelera o carro”.

riscos e redução do capital contábil. Bancos considerados solventes antes do processo reversivo podem assistir seus ativos perderem o valor, transformando-se em ilíquidos.

Para os países em desenvolvimento, os efeitos em termos de sua estabilidade também podem ser adversos. Em primeiro lugar, o Acordo tende a excluir os devedores considerados de maior perfil de riscos. Isto pode afetar principalmente os países mais pobres. Em segundo lugar, pode acentuar as dinâmicas de boom e bust de acordo com a oscilação dos ciclos de liquidez, por meio de uma maior volatilidade dos fluxos de crédito.

Deste modo, Basiléia 2 não pode ser entendido como uma panacéia para que se evite o surgimento de crises financeiras, podendo inclusive acentuá-las, a despeito de fatores positivos. São necessárias ações de caráter anticíclico que visem atuar de modo complementar ou mitigador de seus defeitos, atenuando a geração de processos de crescimento da vulnerabilidade nas fases de euforia e amortecendo os processos reversivos durante as crises.

Neste sentido, pode ser vislumbrada a necessidade do uso pelos órgãos supervisores, de instrumentos macroprudenciais que permitam observar a evolução do comportamento dos bancos ao longo dos ciclos, e de expedientes de cunho corretivo e punitivo128 (Guttmann, 2006).

Griffith-Jones, Kregel e Ocampo (2007), em adição, comentam a possibilidade de correções no Acordo que permitam atenuar seu viés procíclico. Entre os principais pontos neste sentido, sugerem a incorporação dos benefícios da diversificação internacional aos cálculos dos requerimentos de riscos de crédito, como comentado na subseção 3.3.4, e a introdução de elementos through-the-cycle na forma de contabilização dos ativos ou de cálculo dos requerimentos de capital129.

No caso dos países em desenvolvimento, diante de sua vulnerabilidade acentuada, cabe a discussão sobre a adoção de regulamentações sobre suas contas de capital, com o intuito

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Neste aspecto, podem ser citados mecanismos abrangentes de supervisão bancária, focados em riscos, que conciliem avaliações por meio de cenários econômicos e indicadores, e o entendimento do negócio bancário por meio de suas atividades, estratégias, tipos de riscos a que estão expostos e controles adotados (Sarajwala e Van der Bergh, 2000).

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Como exemplo, Griffith-Jones, Kregel e Ocampo (2007) discutem o mecanismo de provisões para perdas de crédito, baseado nas condições correntes, o que tende a ocasionar flutuações procíclicas no valor líquido das operações de crédito. Neste sentido, a adoção de provisões baseadas em situações de longo prazo, reduziria estes impactos. Os autores comentam o mecanismo de proviões forward-looking adotado na Espanha, baseado em perdas esperadas durante os ciclos.

de reduzir a instabilidade dos fluxos de capitais para estes países. De acordo com Griffith-Jones, Kregel e Ocampo (2007), estes procedimentos procuram “remar contra a maré” e contribuem para diminuir as tendências de descasamentos de moedas e de prazos, típicos destes países, abrindo espaços para a adoção de políticas macroeconômicas anticíclicas. Adicionalmente, podem ser vislumbrados mecanismos de coordenação supranacional, que possibilitem aprimorar o acesso dos países mais pobres a fontes de financiamento ou que possuam componentes que suavizem seu ônus financeiro durante períodos reversivos.

Como meio de amortecer a intensidade das crises, é importante a atuação dos emprestadores de última instância, com a capacidade de injeção de recursos em situações de liquidez restrita. A adoção de mecanismos eficazes de supervisão é importante como meio de evitar que este instrumento estimule posturas arriscadas e o risco moral.

Adicionalmente, com a maior complexidade da atividade bancária e a interdependência entre as diversas economias e mercados, há um maior potencial de contágio, o que demanda que estes mecanismos possam atuar de forma abrangente, além do escopo restrito sobre os bancos comerciais e das fronteiras nacionais, ainda que de modo informal (Aglietta, 1998; Buiter, 2008; Guttmann, 2006).