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“N ÃO ADIANTA QUERER SABER E NÃO APRENDER E NÃO SABER E NÃO SABER E APRENDER É MUITO MAIS VANTAGEM APRENDER E SABER ”

A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS EM MEIO ÀS PRÁTICAS DE

“N ÃO ADIANTA QUERER SABER E NÃO APRENDER E NÃO SABER E NÃO SABER E APRENDER É MUITO MAIS VANTAGEM APRENDER E SABER ”

O contexto de produção do episódio

O episódio que apresento a seguir se insere no projeto sobre a história de vida dos alunos, desenvolvido no início do ano de 2003 e que resultou em um livro intitulado “Nossas histórias – Lembranças de nossas vidas” que foi entregue a cada um dos alunos, ao término do ano letivo. O texto, em sua versão final, vinha acompanhado de uma foto e de uma legenda e foi a conclusão de um conjunto de atividades realizadas anteriormente.

A princípio, pesquisamos e partilhamos, no grupo, as origens de nossos nomes, tanto no que diz respeito aos sentidos etimológicos, quanto às razões de sua escolha pelos pais e parentes. Objetos que haviam marcado de alguma forma nossas vidas – medalhinhas, fotos, cartões recebidos em ocasiões especiais - também foram levados para a sala de aula e exercitamos um olhar que procurava apreendê-los como documentos que traziam pistas de

nossas experiências e evocavam lembranças. Depois nos detivemos nas fotos, procurando compreender de modo mais cuidadoso, como podem servir como fontes que trazem pistas sobre diferentes aspectos da experiência humana, presente e passada. Nesse momento, tratamos da história da fotografia e fizemos um exercício de comparação sobre como as famílias são representadas em fotos de diferentes momentos históricos.

Lemos duas biografias – a de Garrincha e a de Patativa do Assaré – e, na discussão, procuramos relacioná-las com nossas vidas, atentos às particularidades e às similitudes que nelas encontrávamos. Propusemos que destacassem momentos significativos de sua trajetória e registrassem numa linha do tempo. Por fim, em pequenos grupos, solicitamos que comparassem suas vidas, novamente atentando para alguns aspectos singulares de suas trajetórias e para aqueles que as inscreviam em experiências comuns. Numa etapa final, cada grupo partilhou suas conclusões com os demais colegas.

Previamente, eu e Manuela já havíamos lido os registros de cada equipe e formulamos algumas questões que nortearam nossa mediação na discussão que se seguiu às apresentações, com o intuito de destacar aspectos relacionados a quatro grandes temas: educação, migração, família e trabalho. A nossa intenção, como professores, era a de, posteriormente, desenvolver um trabalho de investigação histórica sobre cada um destes temas, com o objetivo de levar os alunos a entender que suas experiências se inscrevem em um quadro de referências histórico-culturais mais amplas.

No entanto, só foi possível fazer isso com o primeiro e o último tema. A greve dos funcionários públicos municipais, iniciada em fins de maio e que se estendeu por mais de um mês, foi um dos fatores que fizeram com que revíssemos nossos planos.

Com a retomada das aulas, depois do recesso do mês de julho, propusemos que os alunos escrevessem suas histórias de vida, orientando-os para que procurassem levar em conta as atividades e discussões que havíamos realizado até então.

Na orientação geral, feita para a elaboração dos textos, retomamos com os alunos um dos eixos do trabalho desenvolvido sobre a história de vida: a idéia de que a história pessoal é construída a partir do entrecruzamento com as histórias de outros sujeitos, em tempos e lugares distintos. Nesse momento também retomamos as etapas que percorremos, indicamos possíveis aspectos que poderiam ser incluídos e os orientamos a recorrer aos registros escritos de que dispunham e nos quais haviam elaborado aspectos das discussões e

leituras que antecederam a proposta de elaboração do texto sobre a história de suas vidas. A proposta feita supunha a capacidade de reapropriar-se dos registros escritos, bem como reorganizar, através da escrita, tantos outros aspectos que haviam circulado apenas no âmbito da oralidade, articulando-os na composição de um novo texto.

Entregue a primeira versão dos textos produzidos, eu e Manuela lemos e fizemos, em cada um deles, indicações e sugestões para reformulações. Essas orientações foram lidas e trabalhadas individualmente. A idéia também era a de nos colocarmos como escribas dos alunos que apresentavam um menor domínio da escrita. Foi nesse contexto que ocorreu o episódio descrito abaixo:

Sentei junto com o Eduardo, Célia, Mara, Rosa e José. Manuela orientou a reformulação do texto de outros alunos. Um dos aspectos que me chamou a atenção foi o modo como algumas sugestões de acréscimo de informações ao texto suscitaram lembranças que oralmente eram narradas numa grande riqueza de detalhes e com um forte tom afetivo que me fazia criar mentalmente as situações descritas. Foi o que ocorreu quando sentei-me ao lado de José.

José era identificado por nós, professores, como um aluno que tinha dificuldades no domínio da escrita. A idéia de colocar-me como escriba partira da suposição de que ele teria dificuldades na reestruturação de seu texto e que, cumprindo este papel, eu estaria não só fazendo junto como compartilhando com ele possibilidades de enfrentar os desafios postos pela escrita.

Ao ler seu texto eu encontrara passagens interessantes, escritas de modo singular, mas no todo ele me parecera sucinto e com algumas idéias pouco claras.

Passei a ler o texto para ele. Diante de alguns trechos, pedia que esclarecesse o que quisera dizer. Em outros, sugeri que acrescentasse aspectos de sua vida que ele já havia relatado em nossas aulas.

Minhas solicitações suscitaram as lembranças de experiências vividas por José que me impressionaram pela forma como eram narradas. Numa fala concisa, com um enorme poder evocativo, recriava imagens de lugares, de pessoas, vozes que se alternavam em diálogo, e em tonalidades que, em vão, eu procurava registrar através da escrita. Por vezes, eu o interrompia, olhava para o papel e para ele, e pensava alto, procurando redizer suas palavras, numa busca, um tanto desconcertada de ser fiel ao que acabara de ouvir. Escrevia de modo ligeiro palavras com que procuravam traduzir as suas para a escritura. Escrevia, falando em voz alta, depois retomava, lendo, e perguntava-lhe se "assim estava bom?" Ele consentia com uma tranqüilidade que me trazia um certo incômodo. Talvez quisesse dizer que "podia ser assim", pois aquela história não era mais só dele. Talvez quisesse dizer que a partilha de sua experiência bastava por si e minha intenção de escrevê-la era outra história. A linguagem escrita talvez fizesse parte de um código cujos sentidos ainda lhe causavam uma certa estranheza. Mas se a sensação de estranheza de José em relação à escrita era uma hipótese, minha estranheza em relação a alguns de seus modos de dizer era real e misturava-se ao meu encantamento por ouvi-lo. Algumas vezes eu não entendia o que ele havia dito ou não sabia o significado das palavras ditas. Ele então esboçava um sorriso, achando graça da minha expressão de desconhecimento. (Registro de campo, 18 de agosto de 2003)

O esforço de re-estruturação resultou no seguinte texto:

Minha vida, minha história

A minha vida é viajar. Não porque eu sou turista. Era pra trabalhar, eu acompanhava meu pai no trabalho. Trabalhava em vários lugares em busca de serviço. Em busca de melhor preço. Meu pai trabalhava cortando pedra para fazer paralelepípedo, meio-fio. Eu gostava de ir com ele para o trabalho e aí fui me acostumando a viajar. Nisso meu pai falava: “vai ou fica?” Eu pulava da rede e ia. As vezes, quando o serviço era em outra cidade, tínhamos que sair bem cedo.

Do jeito que ele me acordava para ir ao trabalho se ele me acordasse pra eu ir pra escola eu não estava nessa dificuldade para aprender a ler e escrever.

Vim de uma cidade do Rio Grande do Norte chamada Montanhas. Nasci em 1977 e saí muito cedo de minha cidade. Tinha mais ou menos um ano e meio. Lembro-me que já estava andando. Lembro vagamente da casa onde morei. Tinha uma caixa d’água em frente.

Morei com minha família em outras cidades: Belém, Lagoa Seca e Alagoa Nova, todas na Paraíba. Nessa última cidade lembro-me que participei de três corridas. Na primeira, de bicicleta, cheguei a ganhar uma medalha.

Como a venda da pedra não ia bem, vim para Campinas com um serviço arrumado. Esta viagem foi um momento de alegria pra mim mas para meu pai era tristeza porque eu sou o filho mais velho dele.

Já estou há oito anos em Campinas. Depois de dois anos minha esposa e minha filha vieram também. Passados cinco anos, nasceram mais duas meninas, gêmeas, Vanessa e Vanielle. Trabalho numa fábrica de lajes. Lá faço de tudo: dirijo o caminhão, carrego e descarrego, faço viga, corto ferragem. Desse modo, o trabalho acaba sendo muito cansativo. Uma das coisas que estranhei aqui são as carnes congeladas. Na Paraíba, o frango, o boi, eram matados na hora. As vezes eu penso em voltar para morar em Alagoa Nova, onde estão meus irmãos e meu pai. Mas caso eu consiga comprar uma casa ou um terreno, talvez fique mais um tempo por aqui.

O texto original de José traz as marcas da linguagem oral: o fluxo entrecortado porque apoiado nos gestos, no olhar focado no interlocutor, no contexto compartilhado entre ambos. As repetições e elisões. As pressuposições que não precisam ser explicitadas, pois o interlocutor presente indaga por elas. A leitura em voz alta da primeira versão, feita por mim, evoca suas lembranças, fazendo-o narrar outras experiências ou continuar as já iniciadas. Explicito meu encantamento com suas narrativas. Repito suas palavras na tentativa de redigi-las. Mas ao redigi-las, o encanto se quebra. Leio o modo como tentei inscrever o dito no escrito, busco a aprovação de José e retomo incomodado à leitura do texto. O que é feito dos sentidos produzidos nos enunciados de José quando procuro trazê- los da oralidade para a escrita? Na dificuldade em realizar a tarefa a que me propusera, compreendo que a oralidade e a escrita representam modos próprios de funcionamento da linguagem. Uma não é transcrição da outra. A escrita transforma o texto oral em um processo complexo de recriação, mais do que de tradução.

Nesse momento lembrei-me de que nas discussões em sala, eu dizia sempre aos alunos que, à medida que expressavam-se oralmente, participando dos debates, desenvolviam com mais facilidade o registro das idéia por escrito.

Essa afirmativa era verdadeira no tocante à explicitação e clarificação da atividade mental, conforme destaca Bakhtin:

Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação, a orientação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala, e, acima de tudo, aos interlocutores concretos.” (Bakhtin, 1995, p. 117)

No entanto, era parcial por não tornar explícitos os processos de reorganização por que passa a linguagem oral ao ser convertida em linguagem escrita. Assim enunciada, minha orientação aos alunos acabava sugerindo a idéia da escrita como transcrição da fala. Uma ilusão e um equívoco dos quais eu também participava e que estavam presentes no modo como assumi a função de escriba. Embora a inadequação dessa identidade possa parecer uma constatação óbvia, na condução prática de meu trabalho eu a supunha, bem como muitos outros professores ainda o fazem. Mas outros aspectos podem ser vislumbrados em minha interlocução com José e seu texto. Se a tentativa da transcrição mostrou ser um caminho impertinente, no contexto da tarefa, o escrito e o oral

apresentaram-se em possibilidades dialógicas, em seus modos de funcionamento discursivo específicos, instaurando um campo tenso de circulação e produção da palavra e seus sentidos, num contexto de estranhamento recíproco. José parece estranhar sua história inscrita nas letras. Eu estranho seus modos de dizer e, por vezes, não o compreendo. Do lugar dessa minha incompreensão face à oralidade do outro, interrogo-me sobre sua incompreensão diante da escrita, que ainda não é de seu domínio. Escrita inscrita de modos tão distintos em nossas histórias de vida. Em meio aos sentidos produzidos, o sem-sentido é acolhido e participa da constituição de aluno e professor.

A intensidade do momento de re-estruturação do texto compartilhado com José, aproximou-me dele, de seus modos de dizer e de suas produções escolares. Nessas aproximações eu buscava compreender seus processos de elaboração e continuar aprendendo com eles.

Um dos momentos dessa aproximação, que foi particularmente interessante para mim, por trazer indícios da relação de José com a palavra escrita, fora da escola, dizia respeito a entrevista que concedeu a uma equipe de filmagem a que já me referi no capítulo anterior. Nessa entrevista José fala de suas experiências de leitura:

Entrevistadora: E você tá em que série? José: Tô na quarta.

Entrevistadora: Na quarta. Já tá dando pra ler bem então?

José: Ah, não pressão... é... apressando muito, sabe. Mas devagarzinho... Entrevistadora: E você, na sua casa, tem o hábito de ler alguma coisa? José: Ah, eu tenho uma revista lá do... típico nordestino que eu... Entrevistadora: Que revista?

José: Uma revista que eu tenho lá de... eu leio um bocado ela! Entrevistadora: É nordestino!? O que que é?

José: É vaquejada. Tem canção de vaquejada. Entrevistadora: É cordel? Tipo cordel, não? José: “Conexão”.

Entrevistadora: “Conexão”!? Conta como é essa revista que eu não conheço.

José: Não tem tipo assim a vida do vaqueiro, com ele começou, o que ele era antes. É igual

o que você tá perguntando pra mim hoje. Ele tem... ele ganhou alguma coisa, troféu, ganhou medalha, ganhou...

José: Não fui.

Entrevistadora: Mas você vai em rodeio, essas coisas.

José: Não, eu ia muito em vaquejada. Que lá não tem rodeio. É vaquejada. Entrevistadora: Onde?

José: No Nordeste.

Entrevistadora: De onde você é?

José: Ah, Rio Grande do Norte, nasci no Rio Grande do Norte, me criei na Paraíba. Entrevistadora: E qual que é a diferença do rodeio pra vaquejada?

José: É porque o boi... o cara monta no boi, né! E lá não, pega o boi pelo rabo. Pega e

derruba.

Entrevistadora: Aaahhh! Tem que derrubar o boi!

José: É. Tipo assim. [João abaixa o corpo como que mostrando as marcações no chão. A

câmara procura se deslocar também mas não chega até suas mãos] Tem uma listra.Tipo aqui, oh. Aqui tem uma listra de cal. Aqui tem outra. O boi tem que cair aqui pra você ganhar alguma coisa.

Entrevistadora: E derruba com o rabo, pelo rabo?! José: É. Você puxa o boi até ele cair lá, dentro da área. Entrevistadora: E você gostava de ir bastante?

José: Eu ia porque eu trabalhava também vendendo alguma coisa, né. Mas tinha como eu

gostar de alguma coisa.

Entrevistadora: E essa revista você trouxe de lá?

José: Não eu com... Como tá vendendo aqui eu tô comprando, eu comprei um monte. Eu

tenho vinte e quatro revistas.

Entrevistadora: Todo mês sai uma?

José: Todo mês. Agora eu parei porque dificultou em dinheiro. Mas... vou comprar...

compro com CD. Vinha CD e revista junto.

Entrevistadora: E o CD toca o que? José: Forró.

As práticas de leitura extra-escolares de nossos alunos, invariavelmente, são desconhecidas por nós, professores, em nosso trabalho cotidiano que inclui, em seus horizontes formativos, a ampliação do domínio das habilidades de leitura e escrita. Essas práticas mostram os modos como se relacionam com o universo da leitura e da escrita, com objetivos distintos, inclusive a simples fruição de bens culturais, de modo não pragmático. Práticas que, tal como enunciadas por José, produzem sentidos à margem dos padrões escolares que definem as leituras legítimas e os modos corretos de ler. Sentidos que são

constitutivos de dimensões de sua subjetividade, relacionadas ao seu estilo de vida e interesses, à sua condição de letrado.

No curso da entrevista, duas facetas articuladas em José ganham visibilidade: a do leitor e a do homem marcado pela cultura oral. Nesse episódio por ele vivido, encantou-me, sobretudo, o modo como ele descreve a vaquejada num amálgama de corpo e palavra que obriga a câmara a ser deslocada do foco fixo no rosto do entrevistado, enquadramento planejado pelos autores do documentário. Ele se curva e, enquanto fala, traça uma área imaginária com as mãos, explicando que o vaqueiro tinha que derrubar o boi num espaço determinado por listras de cal. Não é possível descrever, apenas em palavras. A linguagem gestual e verbal de que José se utiliza, leva-me a considerar o quanto a escola, ainda que trabalhando em favor da apropriação da escrita, função que lhe é atribuída e reconhecida socialmente, empobrece este processo ao não atentar para a interlocução entre linguagens.

Finalmente, um outro momento do trabalho desenvolvido com os alunos, que gostaria de destacar, refere-se à avaliação que eles fizeram sobre as atividades que desenvolvemos durante aquele ano, através de uma conversa individual comigo. Nessa conversa, José assim se refere ao seu processo de aprendizagem:

Pra mim todos os momentos foram legais... eu não sabia de nada e... até agora eu também não sei, mas tô aprendendo. É... alguma coisa que tem de... como é que fala... história de alguma coisa assim... eu nunca, nunca ouvi falar de... de história, agora eu tô ouvindo, eu tô aprendendo alguma coisa. Não adianta querer saber e não... aprender e não saber. E não saber e aprender. É muito mais vantagem aprender e saber. Então... História eu nunca... história só meu pai contando... Da vida dele... da vida dos outros... (Registro de campo, 3 de dezembro de 2003)

José coloca-se na condição de quem “não-sabe-e-está-aprendendo”. Condição na qual, raramente nós professores de EJA, conseguimos nos colocar. Colocar-se à escuta dos complexos processos de constituição dos sujeitos e dos modos como se relacionam com os conhecimentos e com eles aprender, “devagarzinho”, afirmando-se também no exercício de nosso ofício, como possibilidade de vir-a-ser. “Tô aprendendo”, condição de quem busca o nome de coisas de que nunca tinha ouvido falar. “Tô aprendendo”, as histórias do pai, em meio a tantas outras, contadas por tantos outros. “Tô aprendendo”, “devagarzinho”, “não

pressão... é... apressando muito”. Vir-a-ser como possibilidade de sentido. Em meio às categorizações fixas – ou se “é” ou se “não é” – a possibilidade de afirmar-se, sendo.

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